sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10958: O cruzeiro das nossas vidas (20): Viagens de avião de ida para a Guiné, e volta, patrocinadas pelo Estado Português (Henrique Cerqueira)

1. Mensagem do nosso camarada Henrique Cerqueira (ex-Fur Mil da 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4610/72, Biambe e Bissorã, 1972/74), com data de 11 de Janeiro de 2013:

Tal como solicitado e por vontade própria vou tentar contar as minhas viagens de avião para a Guiné "patrocinadas" pelo Estado Português em 1972 e logo no dia 19 de Junho desse mesmo ano em que fazia o meu vigésimo segundo aniversário. Vou ainda tentar usar um pouco de ironia para aligeirar a "aventura".

Inicialmente a minha companhia estava destinada a embarcar para a Guiné no dia 24 de Junho de 1972, que era dia de S . João no Porto, mas por "tralhas ou malhas" o embarque foi antecipado para o dia 19. Eu ainda hoje penso que foi por minha causa, pois que os nossos chefes da altura devem ter reparado na data do meu aniversário e resolveram me presentear com uma "Viagem" de Avião. Como na altura estava em moda o "Destino" Guiné-Bissau, eles, pimba... é mesmo para aí que vais Henrique. Vais num avião da Boeing, o 707 dos TAMs (Transportes Aéreos Militares).

Claro que quando soube do presente até comentei com a família :
- Ainda bem que vou de avião, porque de barco não podia ser, visto que enjoo no mar. Se tivesse que viajar de barco, ainda por cima em dia de aniversário, de certeza que me recusava e acabava por não ir á Guiné. Mas os nossos Governantes sabiam mesmo como nos convencer (ainda hoje sabem). Daí juntaram o útil ao "agradável" e lá me enfiaram no avião e para não me aborrecer, mandaram o resto da companhia comigo.

Então, no dia 19 de Junho pela fresquinha e depois do pequeno almoço, a Companhia formou em parada no RI 16 de Évora. Estavam lá todos os senhores importantes civis e militares, deram umas palavrinhas de circunstância (mau grado que se esqueceram de me dar os parabéns e ainda hoje tenho um trauma quando me cantam os "parabéns a você" que até já pensei pedir uma pensão vitalícia por "Trauma prá Guerra".

Tenham paciência, foi uma desconsideração, depois de tanto trabalho que tiveram a mudar datas por minha causa... mas enfim nem tudo pode ser prefeito. Mas como ia a dizer, depois da parada, a malta foi em viaturas do Estado (Mercedes, Berliet e outras), eu lá me desenfiei e fui com um amigo Alferes, mais a sua mulher, e também a minha Ni, no seu carrinho civil já que ele era de Lisboa. Grande Camarada o Alferes Coelho de qume nunca mais soube nada.

Resta dizer que a Ni foi comigo ao aeroporto porque eu tinha recebido o primeiro pré de Furriel dias antes, e vai daí telefonei para ela vir passar o fim de semana comigo, porque ela ainda não sabia que eu embarcaria no dia 19 e não a 24, como estava previsto. Foi só durante o almoço no dia 18, um domingo, e junto de mais alguns camaradas que ela ficou a saber que seria no dia seguinte a minha partida para a Guiné. Por isso acabou por ir até Lisboa e só até ao portão do aeroporto onde se despediu de mim.

Diga-se de passagem que a viagem de avião para a Guiné, em termos de despedidas, até foi bastante benéfico, pois assim se evitaram aqueles momentos de sofrimento com lenços a acenar, gritos de dor dos familiares e aquele lento zarpar que, quanto a mim, quem os viveu deve ter sido de muita dor e angústia. 

Então lá entramos no avião e aquilo era novidade para todos. Havia um misto de prazer e "cagaço" medo... misturado com a ânsia do desconhecido. O avião levantou voo e logo que foi possível desapertar os cintos vieram uns "rapazes" bem fardados com uns cestinhos de rebuçados de fruta e, de lugar em lugar, foram distribuindo um (sim só UM) rebuçado de fruta que era para a malta não enjoar. Eu claro que não enjoava pois que até poderiam me mandar para trás (fundo do avião) e isso eu não queria, é preciso não esquecer que fazia anos, não é?

Entretanto pelo caminho o avião fez uma paragem na ilha do Sal em Cabo Verde, mas a malta nem saiu do avião. Diziam eles (os chefes) que era para não nos perdermos e que a paragem foi só para os pilotos fazerem um chichi. Lá retomamos a viajem (ainda pensei: lá vamos comer mais um rebuçadinho, mas não, já não havia o perigo de enjoar).

Chegamos ao nosso destino ao fim dumas três horitas de viagem. Sobrevoamos a Guiné com a malta a espreitar pelas janelitas para admirar aquele emaranhado de rios e riachos que em boa verdade era mesmo lindo visto de cima.

Guiné-Bissau > Maio de 2007 > Vista aérea de braços de rio
Foto e legenda: © Fernando Inácio (2007). Direitos reservados.

O avião aterrou e aí é que foram elas... É que os nossos chefes não sabiam nada sobre o ambiente da Guiné e do seu clima na altura. Como eram bons chefes, exigiram que desembarcássemos com a farda n.º 2, com blusão e tudo. Claro, como éramos muito obedientes (que remédio), começamos a descer as escadas do avião e passados uns breves momentos a malta começou a cair no chão como "tordos" afogueados de calor.

O que valeu é que estavam lá uns "chefes" tipo comitiva de receção que mandou a malta despir imediatamente os blusões e arregaçar as mangas da camisa . Ainda ouvi um dizer entre dentes :
- Estes chefes piriquitos são mesmo burrinhos, querem matar a malta antes mesmo de irem à bolanha.

Bom (mal), mais uma vez nos meteram nos Mercedes e Berliets e ala, que se faz tarde, até ao Cumeré.

Ainda pensei que pelo nome era onde se "comia bem " e, como ainda estava em aniversário, vinha bem a calhar. Mas não, nada disso.

Em Julho de 1974, data do regresso.
O percurso e transporte até ao aeroporto de Bissalanca foi idêntico ao da chegada, só que... um... qual idêntico qual quê?

Para abreviar: não éramos mais piriquitos, não éramos mais os mesmos jovens da chegada... não...
Éramos muito mais maduros, sei lá... mais sofridos... hã... já passou.
Entramos no avião, não havia medo nem novidade, não havia rebuçados e os pilotos não parraam para mijar em Cabo Verde, e ao fim de duas horas mais ao menos, estávamos a entrar no Ralis em Lisboa para a desmobilização final e virar as costas "ÁQUILO".

Ainda me admirei um pouco com a "bandalheira" da tropa na altura, mas depressa o calor humano e o carinho dos meus familiares me envolveram de tal modo que tudo foi passando para trás.
Bem, tudo não. Ainda hoje não perdoo de, na parada em Évora, não me terem cantado os parabéns a você. Mas também como paga eu jamais passei cartão à tropa.

Um abraço a todos os Tertulianos Camaradas da Guiné
Henrique Cerqueira
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10949: O cruzeiro das nossas vidas (19): A minha viagem de avião da Guiné para o Porto, com escala em Lisboa (Maria Dulcinea)

6 comentários:

Tony Borie disse...

Olá Henrique.
Que maneira "pitoresca", e agradável de ler, com que amacias o rebuçado do enjôo, com a tua ida para um cenário de guerra!.
...para te aborrecerem, mandaram o resto da companhia contigo!.
...a Ni, foi ao aeroporto, porque tinhas recebido o pré!.
...havia um misto de prazer e "cagaço"!.
...os pilotos, desta vez, não pararem para o xixi!.
A separação dum jovem, da sua amada, da sua família e dos seus amigos, era dolorosa, pois ia para um destino perigoso, mas naquela idade havia coragem para tudo.
Nascemos na Península Ibérica, éramos, descendentes, de serracenos, finícios e visagodos, e até talvez, da bretanha ou vikings, havia um pouco de aventureiros em todos nós, que nos fazia ocultar o medo.
Obrigado, pelos momentos de boa disposição que me fizeste passar, contando-me coisas sérias, que em algumas palavras, me fizeram sorrir!.
Um abraço para ti e para a tua Ni, e por favor diz-lhe que gostei da história dos "piriquitos", em especial dos nomes!.
Já me esquecia, a desenvergonhada da menina Teresa, continua a dar problemas ao Cifra, agora lá em Portugal!.
Tony Borie.


Antº Rosinha disse...

"exigiram que desembarcássemos com a farda n.º 2, com blusão e tudo."

Henrique Cerqueira, de uma maneira simples classificas a preparação dos nossos militares profissionais.

A malta lá se foi adaptando como sempre.

Foi muito emigrante para Luanda e Rio de Janeiro com bons fatos à medida, em lanifícios da Covilhã e manta de papa dobrada ao ombro.

Isto em porões, com mulheres e crianças para "bombordo" e homens a "estibordo".

Era a 3 contos 1 viagem Lisboa/Luanda nos anos 50.

Saía caro porque ainda somava o tal enxoval.

Henrique, de facto sem lenços a despedida é mais fácil

admor disse...

Caro Henrique,

Realmente contas bem o nosso filme e todos os que tiveram a felicidade de chegar já não eram nem de perto nem de longe aqueles que partiram.
Mas para não ficares traumatizado para toda a tua vida vou-te dar os parab´ens não como ex-ministro da Guerra mas como ex-ministro do Ultramar referidos a 19 de Junho de 1972.
Muitos parabéns e um dia com tudo de bom.

Muita saúde!

Um grande abraço.

Não, não digas aquilo que dirias a quem se dirigisse a ti desta maneira naquela altura.

Já agora deixa-me dizer-te que a tua NI teve uma sorte do caraças por não a obrigarem a pagar a taxa de desinfecção do avião e ainda a ajudaram a apanhar os piriquitos.

Um grande abraço para todos.
Adriano Moreira

Henrique Cerqueira disse...

Grande malta esta do nosso blogue.
A minha estoria das viagens,foi só para nos divertir-mos um pouco com as nossas "aventuras e desventuras" de quando eramos uns "rapazinhos" mas com uma grande carga em cima dos nossos ombros.Uns duma maneira com mais ou menos graduação ou até nunhuma , mas tão responsabilizados por algo que ainda hoje a mim me custa entender ...
Malta a Ni agradece os vossos cuidados no seu texto . Fui realmente um felizardo na possibilidade que tive.Há quem me diga ainda hoje que fui um grande maluco.Mas digam lá quem é que com 22 anos de idade não cometeu loucuras?
Um abraço para todos meus e da Ni.Tony diz ao Cifra que nós somos paciêntes,mas a familia continua á espera.
Henrique Cerqueira

Antonio Melo disse...

Grande henrique que frescura ler aquilo que escreves com a nossa edade e ainda levas dentro o humor para te rires de ti proprio que continues assim po muitos anos
e agora um pouquito retrazado mas ai vai
parabens para voce menino henriqueperdona mas nao tenho coro
um abraça do Antonio Melo

FARINHA disse...

Caro Amigo. Talvez te recordes do furriel Farinha da 1ª companhia de Encheia?

Fiquei mais tarde em Bissau como delegado do batalhão. A minha viagem foi igual á tua só que não fazia anos.
Um grande abraço para ti.