terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11160: Blogpoesia (322): Não sou nada, não sou ninguém (Ernesto Duarte)

1. Em mensagem datada de 19 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) enviou-nos um poema de sua autoria a que deu o expressivo título:


Não sou nada, não sou ninguém

Aqui no alto das minhas recordações 
Aqui do alto da minha serra 
Aqui do alto de onde as recordações têm outro sabor 
Eu sempre soube o amanhã 
Eu sempre soube que todos os amanhãs são passos para o fim 
Eu sempre soube que nada é eterno 
Eu sempre soube que mesmo os amanhãs passos gigantescos para o futuro, são igualmente passos para o fim 
Eu já andei muitos passos 
Eu já me sinto cansado de tanto descer 
Eu já estou num patamar em que tenho mais passado do que futuro 
Eu sei que passo mais tempo a recordar do que a sonhar 
Eu sei que já posso dizer com um sorriso, que não sou ninguém, não sou nada porque eu sei que lutarei até ao fim, até para lá do fim 
Eu sei que posso dizer que a minha terra está muito longe 
Eu sei que posso dizer que a terra onde vivo não é a minha 
Eu sei que não conheço as pedras das calçadas 
Eu sei que não conheço as gentes que se cruzam comigo 
Eu sei que vivi sempre em terras que não eram as minhas 
Mas eu vou voltar à minha serra, nem que seja só por um dia, pelos caminhos de ontem de muitos ontens
As serras algarvias são diferentes das outras 
São mais pequenas 
Chove pouco, cai neve uma vez por século 
Mas têm uma luz única 
A paisagem é deslumbrante 
O Sol incide naquela extensão enorme de Oceano 
Naquela estrada marítima, naquele caminho marítimo 
Refletindo-se nas dezenas de barcos que a cruzam constantemente 
No muito ontem 
Já tocado pela história, fico horas ali tentando imaginar os grandes Portugueses do passado 
Os seus grandiosos feitos 
Como seriam surpreendentes aqueles novos pedaços de Portugal 
Coisas deslumbrantes e arrebatadoras com certeza 
Muito maiores do que a história 
Não a história maior do que eles 
E desejava mesmo um dia poder lá ir 
Extasiar na sua grandeza física, mas muito mais na sua grandeza humana 
O tempo foi passando e eu fui esquecendo mais, mas sempre tocado 
Sempre imaginando os feitos naquelas terras, as suas grandezas 
E um dia quase sem perceber apareci dentro de um barco, o Niassa 
Daquele barco naquele Atlântico eu olhei a minha serra com saudade 
Chego à Guiné e a desilusão é muito grande 
Eu chego mesmo a pensar que estou em 1400 
Interior comigo, encontro os de 1963 a quem vamos render 
Eles falam connosco, tentam nos dizer o máximo 
Cada palavra que nos dizem, é uma afirmação de que aquilo, esteve, continua a estar igual 
Quase dois longos anos se passam 
E um dia aparecem outros para nos render 
E nós temos para dizer o mesmo, nada 
Naqueles primeiros anos deram-se muitos tiros 
Limparam-se muitas estradas 
Fez-se muitos golpes de mãos, trabalhou-se duro e com sacrifício 
Resultados! 
Em cada rendição estava sempre tudo igual, para não dizer pior 
Mais triste me sinto hoje no meu emaranhado de recordações 
Quanto mais penso, mais confirmo a inutilidade 
E como posso dizer sou nada 
Não sou ninguém

Ernesto Duarte
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 17 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11104: Blogpoesia (321): Não à filha-de-putice-da-vida, camarada! (Luís Graça)

4 comentários:

Bispo1419 disse...

Interessante expressão:
"Em cada rendição estava sempre tudo igual, para não dizer pior"

Ernesto, meu amigo, gostei deste teu poema-desabafo mas não quero que o leves à letra para os teus tempos de hoje onde "não sou nada, não sou ninguém" só pode ser uma força de retórica no que te diz diretamente respeito.
É que quem escreve assim só pode ser ALGUÉM!
Um grande abraço do
Manuel Joaquim

Luís Graça disse...

Ernesto, adorei o poema, só não concordo com o título!...Qual nada, qual ninguém!... Eu sei que os poetas, algarvios ou não, têm liberdades criativos que não são permitidas aos outros... Um abração. Luis

Anónimo disse...

Grande Ernesto, que bem versejas. Afinfa-lhe mais que, tens aqui um leitor e sobre o que dizes do "nada e ninguém", isso é o que dizes, mas nós não deixaremos que assim seja. Somos o que quisermos, como fomos o que quiseram, mas sobrevivemos e aqui estamos dispostos para a luta. Não foi Manhau que nos destruiu, não foi Mansabá, nem o K3. Animo rapazão e prá frente é que é o caminho.Abraço do
Veríssimo Ferreira

Hélder Valério disse...

Caro Ernesto

Um desabafo!
Tristeza, revolta, mas bem escrito.
De facto 'um homem só, não vale nada', isto em termos de mais-valia aparente para a efectivação da 'mudança', mas 'muitos homens sós' são decisivos.
É com eles que é preciso contar. Com vários, com muitos 'homens sós'.

Cada parte do todo é importante e, afinal, decisiva.

Abraço
Hélder S.