quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11168: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (2): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Parte II): Buba-Aldeia Formosa, 39 horas dolorosas para fazer uma picada, de 35 km, em 24/25 de julho de 1968

1. Mensagem de 25 do corrente, do Zé Teixeira, que vive em Matosinhos, gerente bancário, reformado, e cidadão ativissimo em prol dos outros e das causas solidárias [, foto à esquerda, Farosadjuma, Cantanhez, Região de Tombali, Guiné-Bissau, 2011]


Grande Régulo Luís.

Apanhaste-me na curva. tens insistido comigo para repor “O meu Diário” (*).  Resisti à tentação porque não sinto que tenha o valor que lhe dás e sobretudo porque há vivências de tantos camaradas que merecem muito mais que eu serem valorizadas... Mas já que insistes, vamos lá...

Com tempo pude vasculhar a correspondência com a minha ex-namorada e atual companheira de vida, bem como da minha família, o que me despertou para outras situações vividas e que não foram passadas para o “Diário”, talvez por perguicite, medos, etc.

Assim, tomo a liberdade de reenviar “O meu Diário” acrescido com letra em itálico para não se confundir com o que escrevi em cima dos acontecimentos em que procurava falar para mim mesmo, de partes de aerogramas e recordações que o tempo não consegue apagar. Se vires que tem interesse podes publicar.

Junto algumas fotos para enriquecer toda esta “tramoia”que me pregaste.

Abraço fraterno do Zé Teixeira

Comentário de L.G.:

Grande Zé: Just in time!... Vou reformular os postes... Assim há um motivo acrescido para ler ou reler o teu diário (que é, sem favor, um notável documento)... Tu mereces esta pequena gentileza e muito mais!... Um xicoração. Luis



2. 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (2): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Os Maioriais, Buba e Empada, 1968/70) (Parte II):  Picada Buba/Aldeia Formosa, 24/26 de julho de 1968

Fotos: © José Teixeira (2005): Todos os direitos reservados


Continuação da publicação do "diário" do José Texeira (ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70), agora aumentado com correspondência:

Aldeia Formosa,  24/26 de julho de 1968

Comecei a guerra. Saí de Buba dia vinte e quatro às seis da manhã e cheguei a Aldeia Formosa dia vinte e cinco às vinte e uma, depois de durante dois dias batalhar com o IN, com o tempo e ultrapassar outras dificuldades.

A estrada (picada) está num estado lastimoso: buracos de minas, pontes destruídas e outros obstáculos que a muito custo se venceram. Os primeiros sete quilómetros, foram percorridos em oito horas e meia.

O primeiro ataque foi de abelhas. Eram tantas que mais pareciam uma pequena nuvem e era ver quem mais corria a fugir da sua picada. Eu fiquei quedo como um penedo,  sentado na berma, entre os arbustos, a conselho de um africano que estava a meu lado e não sofri uma picada. Assustado e perturbado pelo zumbido à minha volta e pela cor que o meu corpo foi tomando na medida em que se fixavam à minha roupa, na cara e na cabeça. Neste estado pude apreciar a confusão de uma fuga precipitada um tanto hilariante. Se o IN tivesse atacado nesse momento era um desastre total, tal foi a desorganização gerada

Depois... Veio aquela mina roubar mais uma vida e pôr duas em perigo... Inimigo cobarde!... frente a frente não consegue atingir os seus objectivos e ataca à traição, num pequeno descuido dos picadores.

Que culpa terá aquele jovem que me morreu nas mãos, que os homens não se amem? Que culpa tenho eu?

A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h) ficamos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista. Isto é guerra...

Quando nos dispúnhamos a montar acampamento o RT morreu. Com o impacte do rebentamento tinha ido ao ar e caiu de peito, rebentando por dentro. Eu e o Catarino [, o outro 1º cabo aux enf, ] nada pudemos fazer.

Esperávamos que o IN atacasse de noite pois tinha sido detectado pela aviação durante o dia. Felizmente durante a noite não houve surpresas e eu entregue totalmente ao ferido que sobrou para mim, o condutor da viatura sinistrada, um pouco mais conformado recomecei, melhor recomeçamos a marcha com toda a cautela, pois no dia anterior, além da mina que rebentou, foram localizadas mais três.

Para alimentação deste dia não tínhamos nada. A ração de combate, mal chegou para o primeiro dia. À frente havia elementos do IN,  "manga dele", havia buracos, pontes interrompidas; havia minas, só não havia comida.

Ainda não tínhamos percorrido três quilómetros, quando caímos na primeira emboscada. Dois bi-grupos esperavam-nos. Felizmente a Milícia do Candé (Aliu Candé) que protegia os flancos descobriu-os e sem compaixão, todas as máquinas de guerra funcionaram. O meio e a retaguarda da coluna embrenhados no mato aguardavam prontos a intervir o que não foi necessário. Quinhentos metros à frente é a vez da retaguarda ser flagelada e obrigar o soldado português a mostrar as suas capacidades de luta. Deste segundo encontro há registar dois feridos.

A coluna recompôs-se e continuou a sua marcha de 30 viaturas carregadas de mantimentos e armamento (três obuses de 140 mm, entre outro material). A meio da manhã chegaram os Fiat. Com a aviação sentimo-nos mais seguros e confiantes. Os feridos foram evacuados de Hélio. Uma coluna que normalmente se faz em oito horas, demorou dois dias.

Agora que sinto o barulho do matraquear das armas, que sinto o sibilar das balas assassinas sobre a minha cabeça, começo a sentir um tremendo ódio a tudo o que seja guerra. Sim. Odeio os homens que em vez de se amarem se guerreiam. Que culpa tenho eu que os homens não vivam o amor?

Quando abriu a emboscada escondi-me debaixo de uma viatura e senti bem perto as balas a assobiarem, pois um IN. estava em cima de uma palmeira à minha frente a fazer fogo. Ainda tentei usar a arma que tinha comigo, mas esta encravou à primeira tentativa e ainda bem. Fui apenas um espectador.

Senhor!, que eu jamais faça guerra!... Que eu ame sempre!

Hoje, 26, recebi uma carta, a que tanto precisava para acordar o meu espírito... Dou-te graças, Senhor,  porque me deste um anjo, porque me deste um amor que está sempre comigo, até nos momentos mais difíceis.

Aldeia Formosa, o meu novo poiso, também foi atacada ao anoitecer . O IN teve fraca pontaria e não meteu uma dentro do Quartel. A mesma sorte não foi para Gandembel,  há cerca de quinze dias, quando atacaram aquele Destacamento com 11 canhões sem recuo, mataram um Alferes e feriram vários militares.

[Foto à esquerda: O Zé Teixeira, em Empada, junto ao pau da bandeira, em 1970, a escrever o seu diário]

Extrato do bate estradas que escrevi à minha namorada

A lição que a G3 me deu, ao recusar disparar e,  ao mesmo tempo, não rebentar o cano em tiras, o que possivelmente me mataria, levou-me a pensar no pedido que minha mãe me tinha feito na minha despedida e ao compromisso que assumi perante mim mesmo de não dar um tiro, nesta guerra. Ser enfermeiro curador de feridas e nunca causa de dor ou morte. Quero ser só e apenas enfermeiro durante o resto da comissão. Afinal é a minha missão.

Entreguei a arma ao quarteleiro e nunca mais quero ter uma G3 na mão. Senti que Deus esteve comigo naquele momento.

Mas aquela vida. Aquele olhar a apagar-se e nós sem lhe poder valer. A sede que o fazia agonizar. Os gritos de desespero de quem sente a vida a fugir-lhe. Depois o adormecer suavemente para sempre.

Meu Deus, que jamais eu faça guerra, nesta missão ingrata de viver em guerra, quando apenas quero viver em paz. Construir a paz.



MATARAM O FUTURO

O destino, no tempo o marcou.
Aquela hora!
A mina escondida!
Aquela viatura!
Quando a quinta passava, deflagrou,
Uma vida cheia de vida,
A morte a levou.
Destino cruel.
Demasiado duro.
Deixou de ser a esperança, no futuro.
Para sempre partiu,
Aquele jovem.

Cheio de saudades de um tempo,
De quem nem sequer se despediu.
Um tempo, para com garra viver,
Mas. . .
Ficou sem tempo, para o conhecer.
Já não vejo!
Já não vejo!
Vou morrer!
Com ténue voz.
Balbuciou.
Tremendo grito.
Eu quero viver!
E . . .
Ali se ficou.
Até morrer.
Sede.
Muita sede.
Aquela vontade danada de viver,
E um corpo a arrefecer!
Vida.
Quase sem vida.
E eu. . .
Sem lhe poder valer.
Tremendo momento.
Num mundo mais pobre,
Um futuro em sofrimento.


(Continua)
_____________

Nota do editor:

(*) Vd. poste anterior da série > 25 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11150: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (1): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Parte I): Buba, julho de 1968

5 comentários:

Juvenal Amado disse...

Teixeira

Fizeste-me a mim e a muitos recordar os momentos que nos marcaram para sempre, mas a mensagem que tu nos envias é de a guerra é uma opção estupida que os humanos tem tomado escusadamente.
Mas não tem remédio esse mal como o temos visto.
Negares-te a usar a arma foi uma atitude corajosa com risco da tua vida.
Quem conhece mínimanente o teu trabalho solidário, facilmente percebe o homem que foste e que és hoje.

Obrigado Teixeira e recebe um abraço.

Zé Teixeira disse...

A minha atitude libertou-me. A guerra tomou outra feição para mim. Estava mais disponível para acorrer aos feridos, pois não tinha o empecilho da arma e carregadores e sobretudo não precisava, no fim do curativo, andar á procura dela, como aconteceu desta vez, que o Salvaterra pegou na minha G3 e deixou-me a dele com areia no cano oque podia provocar-me a morte se o cano abrisse em leque. Por outro lado, quando emboscava ou caía debaixo de fogo, só tinha uma preocupção. Arranjar um bom lugar para me proteger ou deitar-me e aguardar os acontecimentos sem stresse. As grandes marchas tornavam-se mais suaves porque a arma pesava ...e a bolsa de enfermeiro também, quando não tinha de levar a maca!!!
Abraço amigo
Zé Teixeira

Arménio Estorninho disse...

Caro Irmão Maioral Zé Teixeira, Recordar é viver.

Tens uma boa narração de factos havidos na coluna-auto de Buba/Aldeia Formosa "Operação Grande Ronco" em Julho/68, a qual teve um desenrolar muito complicado em que na mesma ninguém ficara excluído e que ficará perdurável nas nossas lembranças.

Com Um Abraço deste Maioral
Arménio Estorninho

Zé Teixeira disse...

Irmão Maioral Estorninho foi escrito no dia seguinte logo de manhã.

Fernando Pereira disse...

Escrevo estas linhas para saudar os camaradas que estiveram na Operação Grande Ronco, coluna entre Buba e a Aldeia Formosa, que a C.Caç. 1792 concretizou com o apoio de outros militares. Grande esforço de todos e cerca de 2 dias para fazer 32 Km, esta terá sido ao que julgo saber a coluna que mais tempo levou a realizar, sobretudo pela distancia/tempo de duração.
Associada a várias emboscadas, muitas minas: anticarro e anti pessoais…
Abrir uma estrada que estava fechada há anos… para levar os 3 obuses 14 rebocados por "Matadores", veículos impróprios para circular numa picada toda esburacada…
E o filme foi mais ou menos aasim: de Aldeia Formosa para Buba ao reabrir-mos a estrada levantámos 3 ou 4( não me lembro bem) minas anticarros e várias antipessoal,cheegámos a Buba já tarde e pouco depois o IN atacou Buba com canhões sem recuo e morteiros,o meu abrigo foi a fossa da cozinha...No regresso, já com pessoal da 2381, foram emboscadas, mais minas, mais ataque de abelhas, dormir na mata, com os olhos abertos...Mas chegámos à Aldeia, não todos infelizmente. Fenando Pereira (ex-furriel miliciano) do 2º Grupo de combate da CC.1792. Os lenços Azuis.