quarta-feira, 6 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11202: (In)citações (49): Quando os vencidos é que fazem a história... Ou, como lá diz o provérbio, "dunu di boka más dunu de mala" [, mais vale ter uma grande boca do que uma grande mala] (Cherno Baldé)


1. Comentário de Cherno Baldé ao poste P11190:

Caro Mário,

O conteúdo deste texto policopiado reporta-se as crónicas guerreiras do reino mandinga do Gabú, na sua última e derradeira fase que coincide com a revolta dos Fulas encabeçados por "Alfa" Molo Baldé rei do Firdu pai de Mussa Molo, este último bem conhecido pelos portugueses pelas suas frequentes incursões e razias nos territórios ainda em disputa dos regulados de Ganadu/joladu, Sancorla e Mancorse, antes da conquista final pelos Almames de Timbo e Kadé(Futa-Djalon).

Relativamente ao Djanké Uali, penso que se trata, como já referi, de crónicas guerreiras e não lendas, por tratar-se de um periodo mais ou menos recente (2ª metade do sêc. XIX), mais ou menos bem conhecido da historiografia africana ou europeia, tanto escrita como oral.

As localidades de Beré-colon (Sector de Contuboel, arredores de Fajonquito) e Kansala (Sector de Pirada) são bem conhecidas e os seus vestígios são objeto de visitas de pesquisadores e simples curiosos.

O mais interessante nestas crónicas, popularizadas pelos Djidius,  mandingas de Korá, é o facto de que são os vencidos que fazem a história, transformando os derrotados (os guerreiros de Djanké Uali) em heróis invencíveis, cujo fim deve ser visto como o fim do mundo (Turban) o que, a meu ver, constitui um enigma ou, no mínimo, um paradoxo da nossa história que a discrição prática, própria dos fulas,  permitiu crescer até atingir dimensões delirantes. Isto é tão real que quase ninguém conhece os nomes dos comandantes e chefes dos exércitos fulas que estiveram na origem das derrotas dos mandingas tanto em Beré-colon como Kansala.

É, como diz um provérbio krioulo, "dunu di boka más dunu de mala",  ou seja, mais vale ter uma grande boca do que uma grande mala [, mais ou menos equivalente ao português "ter mais fama do que proveito", ... se bem que "fama sem proveito faz mal... ao peito"... LG].

Um abraço amigo,

Cherno Baldé
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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11169: (In)citações (48): Vídeo "A Outra Guiné / The Other Guinea", de Hugo Costa e Francisco Santos, ou o regresso ao passado do Albano Costa, ex-1º cabo, CCAÇ 4150 (Guidaje, Bigene, Binta, 1973/74)

9 comentários:

Beja Santos disse...

Meu estimado Cherno, Agradeço-te a atenção que mostras pelos meus escritos. Dediquei dois volumes sobre a minha comissão vivida fundamentalmente nos regulados do Cuor, Bambadinca e Xime. Comandei caçadores e milícias das etnias Fula e Mandinga. Devo aos meus homens uma parte essencial da minha cultura, não esqueço em circunstância alguma a sua dedicação, bravura, confiança e companhia a nosso alfero. O património cultural é riquíssimo. Nos meus livros “Mulher Grande” e “A Viagem do Tangomau” revelo a profunda admiração que conservo aos meus amigos guineenses. Alguns deles trato-os por irmãos. A Viagem do Tangomau é um livro luso-guineense como será luso-guineense o roteiro que estou a escrever com o Henriques da Silva, da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau. Acabo de concluir uma pequena história do korá, de parceria com Braima Galissá, do Gabu, e que vive em Portugal desde 1998. Penso ter entendido a tua observação sobre a moral dos vencidos e dos vencedores. O trauma da derrota, da desconsideração e da ignorância pública pesam sobre os militares de diferentes proveniências. Temos obrigação de combater a mentira e aprofundar a tolerância. É por isso que tenho muito orgulho no que escreves, não te demites do teu percurso e procuras contribuir para o aprofundamento dos povos irmãos, que somos. Recebe o reconhecimento e a admiração do Mário

Anónimo disse...

Sábio como sempre Amigo Cherno!


Fui Fula e Mandinga ao mesmo tempo e

não me dei mal...


Abraço Grande.

Alfero Nativo-Jorge Mamadú Cabral

Torcato Mendonca disse...

Olá Cherno
É sempre um prazer ler-te e aprender, com o que escreves, mesmo hoje tantos anos passados. Estamos sempre a aprender.Felizmente.

O meu primeiro contacto com África, académico claro, foi com este livro (oferta do Autor) que, miraculosamente sobreviveu ás minhas andanças. Este e outros, já poucos,estava junto dos que o Professor Adriano Moreira me entregou.

Já aqui no Blogue saiu a canção (está neste livro) do Cherno Rachide (Quebo) e os seus ensinamentos.

As gravuras e o relato do viver dos Povos da Guiné (não só da Guiné Bissau) trás-nos ao conhecimento culturas que desconhecia em certos pormenores.
Os cavaleiros, os heróis de certas batalhas, o viver daqueles Povos deixou-me fascinado.
Estávamos em 1963 e desviei-me no meu viver. Não continuei e, três anos depois era militar. Curiosamente em 68 estava na Guiné. Nunca mais esqueci tal terra, as suas gentes das Tabancas, as conversas com o Régulo do Corubal -António Bonco Bálde - e muitos outros que os anos foram varrendo de minha memória, só os nomes,e com quem muito aprendi. Era militar e como tal mostrava pensar e viver. Vidas!
Li o Mário B.Santos e era para lhe ter escrito. Fomos contemporâneos na estadia Guineense pertencíamos ao mesmo Sector.Eramos e somos amigos,com a escrita mantemos o contacto. Vou parar porque a continuar não cabia aqui neste pequeno quadrado.
Por uma Guiné melhor, o mesmo por Portugal.
Abraços a ti, ao Mário e ao Alfero Cabral.
Ab, T.

Antº Rosinha disse...

A Guiné deve ser provavelmente um caso africano onde, devido à sua exiguidade territorial as etnias se encontram mais próximas umas das outras, sem atritos e com respeito.

Quem seja estranho como qualquer europeu, português ou sueco, só vê as diferenças ao fim de muitos anos de permanência ou se os guineenses explicarem as diferentes características.

Por exemplo em Angola, as etnias viviam (vivem(?) estanques, e para entrarem em território (tchon) uns dos outros, em certos casos só com muita cerimónia.

É como se fossem autênticos Estados.

Li nos jornais e televisão que no Quénia, em eleições neste momento, não é em partidos que se vota, mas em pessoas da própria etnia.

É de apreciar como o povo guineense se entende bem entre etnias, e mesmo no aspecto de religiões.

No meio de tanto falhanço na política, pelo menos a paz no povo já é bom.

Gostei de viver e trabalhar na Guiné, e em Angola.

Mando os meus sentimentos à família
do Napuco (PASI 1993), alguém transmitirá.

Cumprimentos

Torcato Mendonca disse...

Olá Rosinha

Gosto de ler o que escreves.Tens muitos anos de África.
Mas,para mim e com toda a subjectividade:

- A maior parte do Continente Africano é um ultraje aos africanos, é um desrespeito á dignidade da cultura, das etnias e consequentes usos e costumes dos seus Povos.
África foi explorada,delapidada, ofendida e ultrajada pelas potências coloniais - pelos europeus, claro, e, em finais do Sec.XIX dividiram -na, em Berlim, conforme os seus interesses.
É, quanto a mim natural que os africanos sintam algo (...?!) de menos positivo pelos europeus. É natural que os vários grupos étnicos,por vezes, sintam dificuldade em se entenderem. Ainda bem que assim é pois, só assim poderão coexistir em respeito pela diversidade étnica, pelo respeito do muito que têm em comum e conseguirem assim o tão almejado desenvolvimento.

Então Cabral, A.Neto e outros, Mondlane não se deviam de revoltar contra a colonização da potencia invasora??? Concerteza que sim e, o pós independência ainda é doloroso. E cá o pós ditadura, como é?

Isto é uma análise o mais primária possível e o menos agressiva possível.
Tu melhor do que eu conheces àfrica , os africanos e sabes o que aquele Continente é...
Vê o que se passa agora no Mali; o que se passa no Egipto e no Norte de África. Iamos por aí...

Um forte abraço amigo do Torcato

Antº Rosinha disse...

Amigo Torcato, já sabes que eu digo sempre que sou contra aquele tipo de independências, foi péssimo para África e até para a Europa.

Foi um cinismo de uma europa colonial, decadente e desgastada com a Grande Guerra que precisou da América e da Rússia para parar própria Guerra, que "subjugou", "abandonou" aqueles povos a um neocolonialismo.

Torcato, aqueles dirigentes dos três movimentos, PAIGC, FRELIMO e MPLA, não falo dos outros que eram tribalistas e iam pulverizar aquelas fronteiras, eram meia dúzia (muito poucos, quero eu dizer) a tal geração dos "Estudantes do Império" inteligentes, digo sempre que eram os portugueses mais preparados para governar, usaram a embalagem da guerra fria, para combater e acabar com a colonização portuguesa, sim.

Mas mais que o "colon tuga", a luta principal deles era a própria sobrevivência deles próprios.

Dentro da filosofia futebolística: a melhor defesa é o ataque, foi o que eles fizeram.

Olha com atenção para os quase 30 anos de guerra em Angola que se seguiu ao 25 de Abril, onde em muitos lugares nunca tinha havido luta anti-colonial, e procura relacionar com o que tu e os teus "camaradasdaguine" passaram.

Amílcar foi fundador do PAIGC e co-Fundador do MPLA.

E lutava pelos dois.

Só que os estudantes enquanto estudavam com bolsas de estudo ou a expensas familiares, em Coimbra e Lisboa, até pensavam e diziam que se nós "atrasados e analfabetos" governavamos aquilo tão tranquilamente, se fossem eles a governar faziam de "Luanda uma Nova York", e outras bocas mais.

Já disse que foi com essa gente que se colonizou e eu aprendi pessoalmente a colonizar.

Ainda recentemente saíu a fotobiografia de Lúcio Lara e numa foto de "estudantes do império" com ele, vem lá um colega meu com quem comecei a trabalhar na minha profissão em Angola na minha profissão.

Eu, 19 anos ele talvez uns 30 anos.

Falo nesse exemplo, mas a maioria dos meus colegas eram ultramarinos.

Mas a maioria deles também achava que não estava na hora, que ia ser uma desgraça, como foi e é na maioria dos países.

Cínicamente é políticamente correto dizer(mos) que os tugas estavamos errados em manter as colónias quando a Inglaterra e a França estavam a dar as independências.

Torcato, se em 1961, dessemos à sola, como fizemos em 1974, talvez em vez de 5 Palopes teriamos alguns 10 ou apenas 1 (um), Caboverde.

Cumprimentos.

Cherno Baldé disse...

Caros amigos ex-combatentes,

Muito obrigado a todos pelas simpaticas palavras de apreco e consideracao neste nosso "Djumbai" a sombra do poilao da TG.

Digo obrigado aos amigos Torcato e Rosinha pelos dedinhos de conversa de mais velhos e mais sabios;

Digo obrigado ao MBS que, finalmente, esta presente e acompanha "Online" os comentarios dos seus numerosos admiradores.

A vida é plena de boas e mas surpresas, e também de paradoxos. Quando em 1990 preparava-me para deixar a ex-URSS, de repente, dei-me conta que so naquela altura, apos 5 anos de permanencia no seio daquela gente é que tinha reunido condicoes e estava preparado para realizar, nas melhores condicoes, o objectivo da minha viagem aquele pais, ou seja, estudar, ouvir, ver e entender, mas era impossivel e tinha mesmo de voltar, munido do diploma de especialista que, no fundo, nao era especialista de nada.

Da mesma forma, ao primeiro contacto, a primeira experiencia, poucos soldados metropolitanos estavam minimamente preparados para as inumeraveis complicacoes da sua missao no terreno, quando havia missao, e tinham que partir no preciso momento em que o denso nevoeiro da "ignorancia" comecava a dissipar-se para deixar vislumbrar as nesgas de uma realidade dentro das diversas realidades em confronto.

A guerra foi violenta e dolorosa para nos, mas também foi violenta e muito dolorosa para os jovens portugueses que foram obrigados a defender a "patria" em terras de Africa, em condicoes muito adversas.

Como diz o Mario, a nossa geracao tem a obrigacao de construir pontes para reconciliar os nossos povos dentro de um espirito de verdade e a verdade é sempre mais facil de aceitar quando acompanhada do devido reconhecimento das virtudes e, é muito gratificante reconhecer isto (as duas facetas da verdade) nos trabalhos do MBS sobre a nossa Guiné que espero, um dia, poderei ler na sua integralidade, pese embora se denotar, na minha opiniao, uma valorizacao excessiva do Cuor e do mandinga (dos Soncos) em detrimento de outras realidades, mas aqui, certamente, a forca da vivencia falou mais alto e, por isso, compreende-se.

Um abraco amigo,

Cherno Baldé



Anónimo disse...

PS:

Um abraco fraterno ao Alfero das Bajudas com votos de boa saude e uma optima disposicao, até a proxima estacao (2042).

Cherno

Anónimo disse...

Bom dia, um grande dia, um belo dia para encontrar este blog que há muito procurava, sou admirador da história da minha Terra, Terra essa que me viu nascer, crescer, apesar de uma terra deveras espectacular pelos acontecimentos adversas que frequentemente acontecem. Agradeço ao Senhor Luís Graça pelo este blog que me fez conhecer um pouco/muito a história colonial da minha Terra e algumas narrações de conflitos de interesses tribais que grandemente enriqueceram a minha cultura e história. É muita bonita sim a história de kansala apesar de existir história narrada pelos Djidius Kora Mandinga, e é verdade que “ DUNU DE BOKA MAS DUNU DI MALA” claro que os vencidos guerreiros de Djanké Wali foram derrotados pelos fulas, sim, isso sim, esta realidade é irrevogável pelos próprios mandingas antigos/actuais, mas os seus Djidius souberam narrar apesar de derrotados para as gerações vindouras, pois também não apareceram nomes dos Guerreiros fulas porque se calhar não os conheciam, dai que também deveria haver Djidius fulas da época para narrar a parte fula. E haverá uma fusão das ideias, do real acontecido e isso ajudaria eteremos uma história verídica dos factos.
Estou atrás da história da minha Terra para enriquecer ou aliás cimentar conhecimento vivo da minha história, sou um jovenzito estudante Guineense, com vontade de conhecer ainda mais a historia desta Terra bonita, desprezada, terra com muitas etnias fundidas num só princípios, numa irmandade invejável.