terça-feira, 2 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11788: Bom ou mau tempo na bolanha (16): Afro-americanos (Tony Borié)

Décimo sexto episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



Saindo de Nova Jersey, seguindo a rota junto ao oceano Atlântico com direcção ao sul, encontrámos diversos estados que em tempos, para vergonha de alguns capítulos da história mundial, usaram o trabalho forçado de pessoas, vindas principalmente do outro lado desse mesmo Atlântico, da costa de África, pessoas essas, que hoje nos Estados Unidos chamam de afro-americanos.
O Cifra, que neste texto se chama Tony, talvez pela sua experiência durante o conflito da Guiné, teve muitos amigos afro-americanos, teve um com quem trabalhou por dezenas de anos, e talvez lembrando o Iafane, o tal barqueiro do rio Mansoa, também lhe chamava de “brother”, conviveu com ele e com a sua família, viu os seus costumes e a sua maneira de proceder, que não faziam muita diferença dos costumes de qualquer português, do fim do século passado, oriundo de Trás-os-Montes ou da Beira Litoral.

Na sua casa a ementa era à base de carne de porco, alguma salgada, comiam couves, batatas e outros vegetais, comiam milho, que podia ser cosido ou frito, depois de um pouco triturado e mal amassado. Os sentimentos de família eram iguais, ou ainda mais puros que os nossos, era oriundo do estado da Geórgia, tinha algum orgulho em dizer que os seus avós era “escravos”, sabia o que era o bem ou o mal, apesar de ser uma pessoa com o corpo de um atleta, tinha uma humildade rara, mesmo rara, que chegava ao ponto de o Tony lhe dizer por muitas vezes que tinha que ser mais rude e agressivo, para que as pessoas lhe tivessem mais respeito.

Como vinha frequentemente à Florida, o Tony, um dia demorou três dias para fazer a distância, que é mais ou menos mil e quinhentos quilómetros, e veio de automóvel pela costa Atlântica, passando pelas pequenas vilas e aldeias, de Nova Jersey até à Florida. Como vivia do lado sul do rio Hudson, ou seja do outro lado de Manhattan, em Nova Iorque, tomou o rumo do sul e travessou o resto do estado, tomando o barco que cruza a Baía de Delaware, com algum nevoeiro pela manhã e algumas gaivotas, que quando lhe acenam com comida voam até à mão das pessoas. Atravessou o estado de Delaware, onde se pode ver barracas à beira da estrada, tal como se via no Ribatejo, no verão a venderem melões, que vendiam toda a qualidade de marisco fresco, pescado na noite anterior, no fim desse estado atravessou a ponte, que tem mais de vinte quilómetros de extensão, incluindo um túnel, na Baía de Chesapeake, túnel este que está localizado mais ou menos a meio da ponte, que é para dar passagem aos gigantes Porta-Aviões, onde podiam caber muitos milhares das nossas “LDM”, que andavam pelos rios e canais da Guiné, que saem e entram na base naval de Norfolk, no estado de Virgínia.

Passou pelo estado de Carolina do Norte, onde tirando a cidade de Greenville, com algum impacto industrial, especialmente na área farmacêutica, todas as outras povoações, pelo menos junto ao mar, ou são piscatórias ou se dedicam à agricultura, em especial o tabaco. Chegado à cidade de Wilmington, bastante animada, pelo menos à hora que por lá passou, com “música de Jazz” pelas ruas, onde na parte histórica, com um passeio junto ao rio com mais de um quilómetro de extensão, tem todo o tipo de atracções, aí parou e dormiu.

Pela manhã entrou na Carolina do Sul, onde já começou a ver algumas plantações de algodão, que lhe fizeram lembrar a tal fase menos boa da história mundial, passam na famosa praia de Myrtle Beach, com mais de vinte quilómetros de praia e atracções, dizem que nos meses de verão esta praia não dorme, segue rumo ao sul, passa na cidade Charleston, que é uma cidade portuária onde se juntam os rios Ashley e Cooper, e vão juntos para o Atlântico, tem um mercado livre onde se vende de tudo, qualquer pessoa que se queira desfazer de algo, simplesmente vai lá, expõe em alguma banca disponível, e faz o seu negócio. Há esplanadas e cafés como na Europa.

Na Geórgia, já em mangas de camisa, pois o clima já era quente e agradável, parou na cidade de Savannah, é histórica, era o principal porto de transacção de escravos para as plantações de algodão e não só, ainda hoje se pode ver onde existiu o mercado de escravos, tem casas senhoriais, autênticas mansões com extensões de terreno e entradas com portões altos e em arco demonstrando grandeza, em comparação pode ver-se nos arrabaldes junto ao rio, em terras alagadiças, as barracas que eram as habitações desses escravos, avós do amigo do Tony, a quem este chamava “brother”.Esta cidade vive muito do historial do passado, quem vai visitar a parte mais antiga fica um pouco impressionado, ao Tony cheirava-lhe a África, cheirava- lhe às tabancas de Mansoa, parece que tudo tem história, as pessoas sentem-se atraídas por essa mesma história. Próximo do porto de mar algumas ruas estreitas estão lá, a mostrar como os senhores no passado compravam, usavam e depois vendiam ou matavam qualquer bisavô do “Iafane”, barqueiro de Mansoa, que não seguisse as leis de escravatura que na época existiam, em que os bisavós, dos agora afro-americanos, eram tratados simplesmente como peças de ferramenta, nas plantações de algodão, ou numa roça de cana de açúcar, onde a vida de um ser humano tinha o mesmo, ou menos valor que a de certos animais.

Sempre rumo ao sul, no mesmo estado há povoações distantes alguns quilómetros umas das outras, a povoação surge com o aparecimento de uma ponte, sinal de que por ali passa um rio, a seguir, uma pequena casa retirada da estrada, com um pequeno cemitério ao lado dessa mesma casa, dois ou três carros em ruínas, uma pequena plantação de tabaco, uma pessoa ou duas, sentadas na frente da casa mascando tabaco, um cão e algumas galinhas à solta, às vezes um cavalo, seguem-se mais seis ou sete casas idênticas, vem uma loja utilitária, com uma bomba de gasolina, a seguir é a casa dos bombeiros, os correios, no mesmo edifício da polícia, depois uma igreja, retirada e com um largo na frente, e seguem-se mais seis ou sete casas idênticas à primeira, e termina a povoação.


O Tony parou, numa dessas povoações, para encher o depósito da gasolina, não estava ninguém a atender, tinha um letreiro, dizendo que chamasse, bem alto, por determinado nome, assim o fez e surge uma mulher, afro-americana, com três filhos, todos pela mão uns dos outros, e diz:
- Não posso encher o depósito, mas vendo alguma gasolina. Também tenho aguardente de milho, beterraba, cana de assucar e outras plantas, que o meu marido faz na floresta.


O Tony comprou, e a mulher entregou-lhe a aguardente, “moonshine”, dentro de uma garrafa de água mineral, com rótulo e tudo, dizendo que era a melhor água mineral da Geórgia!.

Finalmente, chegou à Florida!.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 25 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11763: Bom ou mau tempo na bolanha (15): Os verdes anos (Tony Borié)

3 comentários:

Anónimo disse...

Serve a presente para protestar com cagança e pujança..

Mas quais afro-americanos !!! ??'

Detesto o termo....

São brancos, pretos, amarelos cor de rosa castanhos amarelos o que quiserem...agora afro-americanos!!

Será que um Preto nascido na Reboleira ´Português de quatro costados e que nunca foi a África é afro-reboleiro..
Digo Preto e não Negro porque é o termo correcto em português..já o mesmo não se pode dizer em inglês entre black e "nigger" este sim depreciativo e "racista".
Já agora só existe uma raça e é a humana..o que há são vários tipos de raça humana.
PS
Caro "Tony Borié"
Não é nenhuma crítica ao escreveste.

C.Martins

Tony Borie disse...

Olá C. Martins.
Explicas-te e muito bem, o teu ponto de vista, a tua opinião, que vai ao encontro de milhares, ou talvez milhões de pessoas, e dizes no final que "Não é nenhuma crítica ao que eu escrevi", o que te agradeço.
O que escrevo a seguir, não o tomes como justificação, é a verdade, talvez só a minha verdade, aqui deste lado, neste país, onde habitam pessoas de todas, ou quase todas as nações do mundo, onde se elege um presidente, cujos antepassados nasceram em África, o que me parece quase impossível em qualquer país do Ocidente, pelo menos na Europa, mesmo quando se preenche qualquer formulário oficial, é pelo nome de afro-americanos, que se identifica alguma pessoa cuja proveniência dos seus antepassados seja de África, assim como se identifica branco/asiático ou branco/europeu, etc., portanto em futuros textos quando me refira a esses nossos irmãos, com ou sem "senso", continuarei a usar este termo.
Quando escrevo assuntos daqui, tento transmitir o que observo, não o que se vê nas películas que passam "aos montes", por todo o mundo, eu sei que vão criar alguma polémica, em algumas palavras menos próprias, mas é bom, é democrático, é saudável, e lá diziam os nossos antepassados que "da discussão sai a luz", e o teu comentário demonstra isso, pois o teu ponto de vista, possivelmente é seguido por muitas e muitas pessoas!.
Um abraço e gosto muito dos teus textos das pesquisas aprofundadas da Guiné.
Tony Borie.

Anónimo disse...

Caro amigo Cifra, alias Tony,

Gostei de ler a narrativa sobre a tua longa e interessante viagem assim como a tua especial capacidade de descrever o panorama que me fez lembrar alguns filmes americanos dos anos 60 e 70.

Ao contrario do amigo C. Martins que de resto tem toda a razao, pessoalmente, nao vejo nenhum inconveniente em que os descendentes dos escravos africanos sejam chamados de Afro-americanos, pois que o problema fundamental do racismo nao se encontra no nome ou na forma de os designar, encontra-se sim enraizados nos mecanismos de controle social institucionalizados e que servem de barreira de segregacao a fim de impedir a igualdade de oportunidades e em consequencia a mobilidade social.

O mundo sempre foi injusto e cinico para com os mais fracos, mas vai melhorando gracas a contribuicao de homens de boa vontade como o Cifra e tambem por pessoas inconformadas como o C. Martins.

Um forte abraco e continua a dar-nos a tua visao do outro lado do mundo.

Cherno Balde