sexta-feira, 12 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11832: Notas de leitura (499): A "Guiné" na literatura portuguesa de viagens (séc. XV-XVII), por Julião Soares Sousa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Março de 2013:

Queridos amigos,
Felizmente que fui bafejado pela solicitude do historiador Julião Soares Sousa, teve a gentileza de me enviar uma cópia da sua dissertação de mestrado, trabalho muito sério e rigoroso, ele espera em breve dá-lo à estampa, como merece.
Fica-nos a incógnita das teses de mestrado e doutoramento que jazem nas estantes da bibliotecas de instituições universitárias de toda a sorte, qualquer dia alguém lembra-se de fazer uma tese de doutoramento sobre este riquíssimo acervo que acumula pó em tais estantes…
Quem sabe se não estarão reservadas grandes surpresas…

Um abraço do
Mário


A «Guiné» na literatura portuguesa de viagens (séc. XV-XVII)

Beja Santos

Julião Soares Sousa, nome cimeiro da historiografia luso-guineense, teve a amabilidade de me oferecer cópia da sua dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Logo me alertou para o facto de se tratar de documento que ele está interessado em rever e beneficiar e dá-lo à estampa como livro, convindo pois encarar este documento à luz da sua provisoriedade.

Pegando nos clássicos da literatura de viagens como André Álvares d’Almada, Luís de Cadamosto, Francisco de Lemos Coelho, André Donelha, André de Faro, Valentim Fernandes, Diogo Gomes, Fernão Guerreiro, Duarte Pacheco Pereira, Gomes Eanes de Azurara, isto sem esquecer o Padre Manuel Álvares, a Monumenta Missionária Africana do Padre António Brásio, entre outros, dá-nos imagens vivacíssimas do espaço e dos homens, interpela o sagrado e o espetáculo no poder real, de acordo com relatos por vezes de uma rara beleza, detalha os diferentes instrumentos do Governo (aparelhos administrativo, militar e judicial) com tal pormenor que o leitor se entristece, tal a curiosidade em querer saber mais…

A literatura de viagens de Quatrocentos assenta na necessidade de obter informações: quem controlava comercialmente as ricas regiões auríferas do Sudão, qual a natureza do poderio mouro, já que a Coroa pretendia impedir a expansão dos mouros na “terra dos negros”, o mesmo é dizer que se apostava num esforço de missionação que travasse a islamização; acresce que a Coroa tinha em mente estabelecer relações com os reinos do interior de África, não havia condições para instalar assentamentos de grande porte, não havia população suficiente para tal, desejavam-se relações pacíficas para que o comércio não ficasse turbulento ou sujeito a razias para as quais não havia resposta.

Continua sem se saber a origem do topónimo “Guiné” e qual o seu verdadeiro âmbito geográfico, se bem que exista hoje entendimento que o termo designava um vasto espaço geográfico que ia do Cabo Não aos confins de África, com o tempo fixou-se no limite superior do rio Senegal. Sendo o significado de Guiné “terra dos negros”, o autor escolhe como âmbito geográfico a região entre o Senegal e os baixos de Santa Ana, em plena Serra Leoa. E recorda que, segundo João de Barros, o termo deriva de guinauhá, expressão berbere para designar negros ou terra calcinante. Conhecido o significado do termo Guiné, os portugueses em contacto com gente de cor negra alteraram o âmbito geográfico do topónimo, fixando novo limite. Cita Duarte Pacheco Pereira: “aquy [rio Senegal] he o principio dos ethiopios & homens negros…”, portanto Guiné ou Etiópia inferior ou ocidental.

Este âmbito geográfico foi conhecendo alterações entre os séculos XV e XVII, mercê de vários fatores, como sejam: o falhanço das tentativas de penetração pelo rio Senegal, o que dificultou a aproximação ao país do ouro, principalmente de Bambuk; a inexistência de rios suficientemente navegáveis muitas léguas no espaço entre o Senegal e o Gâmbia; a incapacidade em manter o monopólio devido à concorrência dos holandeses, franceses e ingleses, cujas naus frequentavam com alguma assiduidade toda a região do Senegal. A despeito destas dificuldades, há dados fiáveis sobre a presença portuguesa no comércio da região, aqui se resgatavam escravos, 10 ou 12 por um cavalo, como relatou Duarte Pacheco Pereira no princípio do século XVI; André de Donelha registará o mesmo panorama quanto ao comércio do rio da Gâmbia e S. Domingos, resgatavam-se escravos mas também cera e marfim por vinho, panos, algodão ou cavalos. Com a intensificação do comércio negreiro, os portugueses passaram a comercializar os seus produtos entre o rio Casamansa e o rio Camponi, âmbito geográfico que virá a ser designado por rios da Guiné.

E vêm as descrições à volta desta multidão de povos, uma enormidade de reinos e nações, alvo preferencial desta literatura de viagens. Logo na segunda metade do século XIV, Diogo Gomes escrevia que a Guiné era povoada por uma multidão de povos que custa a acreditar. Segue-se a descrição minuciosa destes reinos, o seu regime alimentar, a indumentária, as tatuagens, as indústrias, o mercadejar, a natureza da habitação, as práticas religiosas, a disposição espacial destes povos, incluindo os Bijagós. A sucessão e simbologia do poder real é também objeto da atenção destes escritores de viagens. Por exemplo, a propósito do regime de sucessão foram identificados pelo menos três sistemas: o sistema matrilinear, em que entravam na sucessão sobrinhos, filhos da irmã mais velha; sucessão por eleição, e regime rotativo.

Esta Guiné encontrava-se, no período em análise, politicamente organiza em numerosos reinos e senhorios. André Álvares de Almada escrevia, nos finais do século XVI, que pelo menos no reino da Gâmbia em “cada 20 léguas havia um rei sujeito a outro denominado Farões/Farins, título de maior dignidade que rei”. Nos reinos da Senegâmbia havia o costume de contratar djidius ou judeus para com as suas canções animarem as guerras como todo o efeito psicológico que isso podia causar nas hostes. E também os exércitos são descritos, bem como os mercenários e os comerciantes, estes reinos irão conhecer uma profunda desintegração no século XVII, o que vai levar à diminuição substancial dos efetivos militares. Os escritores referem uma arma temível, as flechas envenenadas com veneno de origem vegetal (provavelmente o acónico), eram as flechas “ervadas”. A guerra não se fazia só com armas e em terra, o mar e o leito dos rios foram palco de reencontros militares, frotas de embarcações feitas a partir de troncos de grandes árvores (poilões) estas embarcações ficaram conhecidas na literatura de viagens por almadias, algumas havia que tinham capacidade para transportar de 100 a 120 homens de guerra.

Julião Soares Sousa [foto à direita] observa que esta diversidade de povos constituía uma unidade civilizacional que se refletia a vários níveis: na alimentação feita à base de milho, arroz, leguminosas e carne de diferentes animais a que se juntava o vinho de palma, a bebida preferida; o vestuário contribuía para marcar a profunda diferenciação social entre a classe dirigente e os de baixa condição; é no domínio do poder que melhor se espelha a unidade civilizacional, aqui se incluindo a sacralidade e o espetáculo. Os exércitos destes povos começaram por utilizar armas de madeira, mas nos finais do século XVI já há notícia de armas de fogo, o que significa que se fez comércio com portugueses e os seus concorrentes. O uso da cavalaria na região da Senegâmbia também ficou registado. Os reis assumiam um papel de juízos supremos, o aparelho judiciário vergava-se à sua vontade.

Como conclusão maior, escreve o autor, “do ponto de vista sincrónico e diacrónico, pode-se concluir que não há alterações dignas de registo no espaço estudado, séculos XV a XVII”.
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11814: Notas de leitura (498): Guineidade e Africanidade, por Leopoldo Amado (2) (Mário Beja Santos)

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