sexta-feira, 26 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11872: Notas de leitura (505): "Coisas de África e a Senhora da Veiga" por José Pais (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Abril de 2013:

Queridos amigos,
A prosa de José Pais é para não esquecer, há que a registar e fazer chegar ao maior número possível de combatentes. É uma das grandes pérolas que encontrei em edições de autor.
Peço a quem tem um exemplar de “Histórias de Guerra: Índia, Angola e Guiné”, de José Pais, Prefácio, 2003, que tenha a bondade de me emprestar. A editora já faliu e o livro está esgotado.
Talvez se pudesse juntar tudo e a família autorizar uma edição, o que ele escreve é uma mistura inacreditável do varonil e do sentimental, trata o pungente e a grandeza militar com sábias frases curtas, vê-se bem quando está a sentir as suas narrativas.

Um abraço do
Mário


“Coisas de África e a Senhora da Veiga”, por José Pais (2)

Beja Santos

O capitão José Custódio Pais ia na sua quarta comissão, foi enviado para a Guiné, primeiro foi colocado em Bissau, não gostou da papelada e ofereceu-se para o mato, o comandante-chefe escolheu-o para comandar a CCAÇ 14, em Farim. É por isso que as recordações que ele passou a escrito e constam em “Coisas de África e a Senhora da Veiga” estão centradas neste período. José Pais domina a arte do conto, ciranda em torno de uma questão nuclear, é de uma controlada secura nas descrições, não abdica da sinceridade, por isso a sua prosa é admirável, merece lugar cimeiro na literatura da guerra.

Já se falou das paixões da Xuxa pelo soldado Marquito, como tudo acabou em bem e deu o pontapé de saída para mais 27 casamentos, tudo em prestações suaves. A história seguinte intitula-se “Cherno Sissé”, um malogrado combatente cujas agruras não acabaram em Portugal. Numa operação bem-sucedida em que se capturou inúmero material, Cherno tropeçou numa armadilha acoplada a uma mina antipessoal e ficou esfacelado. Salvou-se por milagre mas ficou sem uma perna e um olho e com um braço retorcido. Ficou em Lisboa, deram-lhe um pardieiro no bairro da lata da Cruz Vermelha. Cherno começou a chamar os filhos, sucederam-se as desgraças. Ainda chegou a ir à Gâmbia visitar a família, regressou com uma filha. Um dia pediram a nosso capitão para ser sua testemunha abonatória, fora assaltado em casa, em pleno dia, foi ao quarto buscar a espingarda e abateu um dos gatunos. Ia sendo morto pela populaça, com um varão de ferro vazaram-lhe o olho que lhe restava. “Lá fui à Boa Hora e lá tentei explicar ao meritíssimo juiz o que é ter servido o Exército Português 27 anos, o que é ter sido combatente operacional durante 9 anos seguidos, o que é ser ex-combatente desprezado e o que representa para um homem destes a perda da dignidade pessoal, face à vida”. O meritíssimo aplicou-lhe três anos e meio na prisão de Caxias. “Cherno Sissé, primeiro sargento do Exército Português na reforma, duas cruzes de guerra, duas vezes promovido por distinção, medalha da Torre e Espada de Valor, Lealdade e Mérito com Palma, passados dois anos de cadeia saiu em liberdade condicional. Voltou para casa de onde agora quase nunca sai. Comprou uma pistola que mantém carregada debaixo do travesseiro. A casa de Cherno Sissé continua a ser porto de abrigo dos fugidos da Guiné e dos que têm fome. Lá vão pedir conselho ao Homem Grande da Catorze de Farim que a Pátria Portuguesa usou e deitou fora”.

Segue-se a história de Seidi Sanhá, a viúva de um fuzileiro. Seidi foi casada com um alferes comando do Batalhão de Comandos Africanos, João Bacar Sanhá. Depois do 25 de Abril deram-lhe um mês de licença, trinta dias depois apresentou-se garbosamente fardado no seu camuflado justo, levaram-lhe para o clube militar de Santa Luzia, encostaram-no ao paredão da piscina vazia com mais 11 camaradas. Apavorada, a viúva fugiu com os filhos, abalou para Dakar. “É mulher-a-dias em Lisboa há 12 anos, tantos quanto dura o seu fadário. Já bateu todas as portas, a todos os ministérios. Como tem o 5º ano, já fez dezenas de requerimentos (…) Está cansada, muito cansada, e quer regressar para junto dos filhos, já homens e sem emprego que ninguém dá trabalho a filhos de um porco fascista do exército colonial, mas não tem dinheiro para o avião. Seidi Sanhá é a vergonha viva de Portugal desavergonhado e indigno que gasta milhões com a Bósnia e o Kosovo e que despreza quem o serviu até à morte”.

O derradeiro conto é autobiográfico “Como tudo começou e acabou”. Fala da sua vocação, recorda a sua mãe extremosa e partiu para a Índia, como alferes. Anos volvidos, com trabalhos e fadigas passados, arribou à Guiné, deram-lhe papelada a rodos, montou uma logística para evitar roubos no cais do Pidjiquiti. Fartou-se e pediu para ir para o mato. Disseram-lhe que a companhia tinha bom pessoal, estava muito desfalcada e o capitão anterior não tinha arte para o ofício. Verificou que o desconforto dos seus subordinados era degradante:
“– Quem é o mais antigo? – Perguntou o capitão. 
– Sou eu – Disse um deles. 
– Tens oito dias para limpar e caiar isto tudo. Agarras no teu grupo de combate e logo que esteja tudo pronto apresentas-te. Não ficas dispensado do serviço. Vocês sabem jogar bridge? Que não. Nenhum sabia – eu venho cá jantar convosco duas vezes por semana sem avisar. Jogar à batota é terminantemente proibido”.

Descobriu muita corrupção e mão baixa. Chamou os furriéis e distribuiu missões, bem-feitorias mais do que urgentes. Pediu à mulher do alferes da intendência que desse aulas ao pessoal, queria todos os militares a fazer exame da terceira classe. Cortou a direito quando se inteirou que havia um sargento que fazia negócio com os soldados, explorando-os, levantou-lhe um processo e puniu-o com o máximo da sua competência. Já lhe chamavam o capitão Mandinga pelo facto de todas as semanas retirar um versículo do Corão e o afixar por cima da escala de serviço, à porta da companhia.

Passados meses, caiu numa mina e só não morreu por milagre da Senhora da Veiga. “Sentiu um grande estrondo, viu tudo vermelho, subiu no ar e caiu estatelado. Viu logo que estava muito mal e que dificilmente se safaria.

Acorreu o Queta, cabo enfermeiro experiente. 
– Tem cuidado que pode haver mais minas – Disse-lhe o capitão ainda consciente. 
– Não faz mal nosso capitão – Disse o Queta valentemente. 
– Pede sangue para Farim, ORH+. Não me dês água. Tenho a barriga furada. Vou ter muita sede. Se me dás água, matas-me. 
– Fica descansado nosso capitão. Eu sabe.

Deu-lhe a morfina, fez-lhe o garrote, pôs-lhe um penso na femoral arrancada que esguichava sangue como uma torneira.

Em flashes, viu o filme da sua vida e rezou à Senhora da Veiga que o salvasse.

Veio o médico de Farim com dois colchões na camioneta onde o deitaram por causa dos solavancos e quando chegaram a Farim puseram-lhe a correr sangue dos seus soldados Mandingas, entretanto recolhido (…) Meteram-no no avião, foi operado uma hora depois. Quando despertou, passados dois dias, deram-lhe uma carta da sua Mãe, datada da véspera do acidente.

“Meu querido filho 
São três da madrugada e tive um pressentimento que não estás bem. 
Levantei-me e fui para a Igreja rezar à Senhora da Veiga…"

" Passadas quatro horas, caia na mina! E foi assim que tudo acabou. 
A Senhora da Veiga fez o milagre”.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11860: Notas de leitura (504): "Travessia", por Costa Monteiro; "Coisas de África e a Senhora da Veiga" por José Pais (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Anónimo disse...

Mário

Tenho estado a transmitir, por mail, ao ex-alferes mil. Manuel Bagorro, que pertenceu à Comp. do capitão José Pais (Angola), o conteúdo destes teus dois textos, dos quais ele vem informando a Família do falecido Cor. José Pais.
Pelo que vejo, de ambos os textos ainda consta o pedido do 2º. livro do Cor. José Pais, que te foi já facultado pelo mencionado Manuel Bagorro. Penso que haverá, portanto, ainda mais um texto teu sobre esse 2º. livro. Ou estou errado?
Um abraço
Alberto Branquinho

Mário Beja Santos disse...

Meu caro Alberto Branquinho, agradeço-te do coração os teus cuidados. O apelo que fiz tem data anterior ao nosso contacto, em nada interfere com as tuas diligências. Acho que seria uma ação muito bonita se os herdeiros do coronel José Pais aprovassem a reedição desta obra, são apontamentos de uma grande dignidade, emanam de um homem de grande carácter. Obrigado por tudo, Mário

Anónimo disse...

Como se vê neste caso temos opiniões semelhantes em relação ao Coronel José Pais. Transcrevo parte da minha alocução no lançamento deste livro na SHIP:

Lançamento do Livro “Histórias de Guerra; Índia, Angola e Guiné; Anos 60” De: José Pais

Em primeiro lugar quero agradecer ao autor, meu caro amigo Coronel José Pais e ao editor da Prefácio, Dr. Nuno de Carvalho, o convite que me dirigiram para prefaciar este livro. Foi uma grande honra para mim.

Apenas irei dizer umas breves palavras sobre a obra e o seu autor. A intervenção de fundo estará a cargo do nosso camarada do Curso de Infantaria de 1960, Dr. Joaquim Evónio de Vasconcelos que, a seguir ao 25 de Abril, trabalhou durante largos anos com o José Pais, quer no Ministério da Defesa Nacional, quer no Serviço Nacional de Protecção Civil, de que foram fundadores.
Assim, e salientando alguns aspectos da personalidade do autor, já relatados no prefácio, referirei o seguinte.
É um homem frontal e corajoso, o que também ressalta ao longo dos vários capítulos, onde apresenta a suas vivências de guerra.
No entanto, para mim, as experiências vividas no pré e no pós 25 de Abril são bem mais marcantes e evidenciam o seu forte carácter e a persistência e força de vontade, manifestadas nas acções empreendidas em defesa da Liberdade em Portugal e dos mais desprotegidos pela sorte, como é o caso das famílias dos comandos fuzilados pelo PAIGC, depois da independência da Guiné-Bissau.
Em relação ao texto inicial, José Pais acrescentou dois capítulos: – o primeiro referente à “Índia”, e o último, intitulado “Portugal”, o que veio valorizar o seu trabalho.
Apresentando os factos “ao correr da pena”, põe a nú o sucedido na invasão da Índia portuguesa, onde foi feito prisioneiro, e destaca, de forma clara, os desvios e as asneiras cometidas em nome da Liberdade e da Revolução, desde o primeiro dia.
Em ambos os casos fica bem salientado a sua desilusão com a maneira como os políticos conduziram tais processos e a nossa vida colectiva, e ainda a falta de consideração para com os portugueses e, nomeadamente, em relação aos militares.
Lembro, por exemplo, quando em relação ao Ultramar, refere:
“Foi assim, servindo e Morrendo que construímos o nosso Portugal, que não é de certeza o Portugal dos políticos. Destes ou dos outros. É o Portugal do Povo, que nós somos e amamos” (fim de citação).
No referente ao 25 de Novembro, também não poupa os políticos da Democracia acabada de instalar no nosso País, dizendo nomeadamente: “Portugal foi salvo da guerra civil e a democracia restaurada. Depois aconteceu o que é costume na Pátria de Camões. A ingratidão suja e ordinária dos políticos extinguiu o Regimento de Comandos” (fim de citação)
Neste aspecto e posteriormente ao seu escrito, tanto eu como o autor, tal como a maioria dos portugueses, se congratula com o regresso da especialidade e da formação de “Comandos” no Exército. Mas, como sabeis, o principal argumento utilizado foi de natureza externa – o 11 de Setembro, nos Estados Unidos da América. (…)

Mais uma vez muito obrigado ao José Pais pela oportunidade de poder dirigir estas palavras e, a todos vós, pela vossa presença.
ManuelA. Bernardo 2 de Outubro de 2002