quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11950: Manuscrito(s) Infeliz o cego, surdo e mudo, porque dele não será o reino de Neptuno (Luís Graça)







ourinhã > Praia de Vale de Frades > Rocha com vestígios de árvores fossilizadas.
Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados

Infeliz o cego, surdo e mudo, 

porque dele não será o Reino de Neptuno

Estou surdo
E não poderei ouvir-te
Em Agosto.
Nem ouvir o que mais gosto em Agosto,
O mar,
A décima sinfonia do mar 

Tocada pelos golfinhos e pelos surfistas.
Ou só poderei captar
Meio som
Com meio ouvido.

Estou surdo
E por mais absurdo
Que isso te pareça,
Só poderei entender
As palavras sibilinas,

As semifusas,
Que me escreveste no teu último mail.

Aqui estou, especado,
Na areia,
Emparedado
Entre o Beethoven a fazer o pino
E o desejo e a ameaça de Sibila.
Enquanto espero o otorrino
À porta do consultório
E o sol que tarda
Nesta tarde do mês de Agosto.

Infelizes os surdos
E os curdos
(que não têm mar nem pátria)
E os duros de ouvido,
Porque deles não será o Reino de Neptuno!

Sinto-me infeliz
No pico do verão,
Meio surdo,
Meio huno,
Meio curdo,
À espera do sol
E do seu espectáculo de strip-tease.

Aqui especado,
Parado,
Enterrado na areia,
À espera de qualquer coisa,
Da iminência de acontecer qualquer coisa,
À espera da queda dos últimos restos
Do sacro império romano,

À espera que me caia, na cabeça,
Uma prancha de surf,
Um tubarão assassino,
Um ultraleve publicitário,

À espera que haja uma notícia,
Um título de caixa alta 
Para ler com o café do pequeno almoço,
Qualquer coisa que me agrave ainda mais a minha surdez,
Um ataque de pânico,
Um falso alarme de tsunami,
crash na Bolsa de Nova Iorque,
O suicídio colectivo de um povo

Um magnicídio,
À espera que dê à costa na maré cheia
Um pedaço da arrábida fóssil,
Um duro osso de roer de dinossauro,
Uma boa chuva de meteoritos 

made in China

À espera dos bárbaros,
À espera dos hunos,
À espera do otorrino,
À espera de ti,
À espera do sol
Que teima em tardar,

À espera do FMI ou do FIM
Sem esperança  nos curdos,
Sem piedade para com os surdos.
À espera, enfim, da recuperação dos meus cinco sentidos.

À espera do fim da nossa crise existencial.
À espera do som e da fúria
Da próxima praia-mar,
Em noite de lua cheia
Prenha de augúrios, fantasmas e medos.

Só não conquistaram o sol,
Os romanos,
Nem os oceanos.
O Atlântico.
O sol que tarda em Agosto.
Nem havia nesse tempo
O direito a férias pagas,
Subsídio de invalidez por surdez profissional,
Nem muito menos o prémio por nascimento
E funeral.

Estou surdo, cego e mudo,
Ou se não estou surdo, cego e mudo  foi por um triz,
Estou surdo
E a fazer o luto
Pela morte do Estado-Providência
Que me pagava o otorrino
E as gotas para o nariz.

Aqui é o meu futuro,
Diz o novo huno,
O imigra que agora vende Bolas de Berlim
Em praias rigorosamente concessionadas
E vigiadas pela ASAE.
Viva o fascismo sanitário,
Proclama o outdoor
Da nova polícia das retretes e dos croquetes.

Sem dó
Nem piedade.

Estou surdo.
Falta-me ficar cego e depois mudo.
Para ser cego, surdo e mudo,

Como a figura da deusa Justiça.

2011

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