domingo, 1 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P11998: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (5): A saga do corte umbilical

1. Em mensagem do dia 26 de Agosto de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Pós-Guiné:


O PÓS-GUINÉ 65/67

5 - A SAGA DO CORTE UMBILICAL


A outra peça que encontrei, é uma espécie de punhal, feito em ferro pelo meu amigo felupe, O QUARENTA E QUATRO, (como gostava que o chamasse), com a pega adornada em pele estriada e de variegadas cores. A bainha em couro também embelezada da mesma forma.
A lâmina propriamente dita, foi batida a martelo por ele próprio e afiada com esmero.

Foi num dia qualquer de 1966, que ma ofereceu e ma colocou no cinto, tendo o cuidado de me avisar:
- "Furrié" entrará sempre na tabanca, sem problemas e bem-vindo se a tiver à vista e "se a levares pró mato, poderá ser-te útil também".

Sempre fui de não acreditar em amuletos, mas que resultou... resultou. Aquele 44, de quem nunca mais soube, para além de guia, foi também membro da minha Secção de Morteiros e também meu protector quase invisível quando em combate.

Lembro-o sempre com muita saudade e procurei saber do seu destino, através de muitas tentativas mas nunca obtive respostas.

Mantenho preservada apenas uma foto que tirámos, vendo-se Farim lá depois do rio.

Na foto > De pé: (?), Samba, Soares, (?), Nascimento e (?). De cócoras: 44, Tarouca e Domingues

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FOI NUM DIA DE JUNHO DE 1966

Que devo ter chorado tudo o que haveria para chorar, mas de alegria.

Um helicóptero aproximava-se vindo dos lados do Olossato e pairava sobre o K3, deixando a impressão de que iria pousar e pousou.

Tal era inédito e pensámos que seria alguém importante para saber algo sobre os funestos acontecimentos do dia anterior em que mais chorei, mas de dor e raiva.

Ainda atordoado, deixei-me ficar sossegado à porta da minha suite e esperei não ser incomodado, mas fui bíspando o que se passava.

Nisto oiço que me chamam e vejo que indicam a minha mansão a alguém que viera lá do ar.

Era um 2.º Sargento lá da minha terra, que estava sediado em Teixeira Pinto e que viera para visitar o meu "corpo" que ele houvera ouvido dizer, estar também esfrangalhado.

Digam lá se o Mundo e a Camaradagem não eram então coisas lindas?

E foi com um apertado abraço (e gratidão minha) que celebrámos este encontro e foi com esta prova espantosa, que me fez entender ainda mais, o que são as fraternidade e amizade.

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O SOLDADO CHICO QUE ERA PALHAÇO

Este rapaz tinha sido um verdadeiro palhaço e a isso voltou, num dos circos que deambulavam pela feiras da nossa terra e onde eu tanto gostava d'ir, mais pelas pernas das trapezistas... ora bem. Fazia parte da comitiva que comigo permaneceu no Pelundo e conseguiu indrominar e fazer rir de tal forma, quer o homem grande (Ti Vicente se chamava) quer os seus ministros que nem ler sabiam, que decidiram oferecer-lhe algumas benesses em paga da alegria que lhes proporcionava.

Tudo o que tinham de melhor lhe pertenceria se ele ficasse por ali desde já e prontificaram-se a falar com as altas chefias militares.

Davam-lhe as filhas, as vacas e os porcos, a fonte e a igreja, a bolanha e alguns terrenos cultiváveis... parte doutros que iam até Bula, e para comer só do bom e do melhor, nem que para tal, houvessem de se deslocar e aviar onde fosse necessário, para além das fracas galinhas e cabras que lhes pertenciam. Além disso, prometiam-nos segurança ali na zona, que convenhamos, à época era mesmo sossegada, talvez devido ao medo que tinham de nós, gentes aguerridas que éramos, embora não descarte que por vezes, também alguma cagunfa sentíssemos.

O rapaz pediu-me conselhos e direcções a tomar... prometi apresentar o assunto superiormente... e dar-lhe-ia a resposta um destes dias.

Mas o destino não o quis (e nem ele próprio como mo confessou depois) mas enquanto pudemos fomos aproveitando a maré e usufruindo do que pudéssemos, Pouco tempo depois correm connosco dali, precisamente no dia seguinte a termos ido em visita de cortesia até Jolmete para uma belíssima jantarada que nos ofertaram, só que e porque se resolveram atacar o aquartelamento, pouco comemos.

Safei-me, porque logo que os tiros começaram, guardei nos bolsos, umas perninhas, ou seja, no bolso esquerdo uma de borrego e na direita duas de galinha assadas em brasas de lume, pitéus que continuo a incluir ma minha dieta mediterrânica.

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NOUTRO DIA QUALQUER DE QUALQUER MÊS DE 1967

(O que me lembro é que havia regressado em Abril) e quando me encontrava desempenhando a minha função na Tesouraria da Fazenda Pública em Ponte de Sôr, recebi a visita dum individuo bem trajado que pretendia fazer-me umas perguntas, tendo-se antes identificado como agente da Polícia Política d'então.

Afinal apenas queria saber se tinha sido eu a colocar um qualquer petardo que havia rebentado ali perto da Assembleia Nacional e isto porque ao analisarem a minha ficha cadastral, haviam verificado que eu chegara da Guiné e tinha todas as condições para o ter feito, para além do mais e até, porque eu era especialista de Tancos, com um grau apreciável na preparação de Minas e Armadilhas.

Comprovadamente verificou que não era eu o procurado, e pronto o caso ficou encerrado, embora me preocupasse, porque nessa época, era-se preso por ter cão... e por não o ter.

É nesse entrementes que resolvi ir para a arbitragem de futebol, devido à necessidade imperiosa do "sentir" do perigo.

Cheguei lá... apitei uns jogos da regional... e... levei umas pedradas de quando em vez... e... com um bocado de madeira da bancada do Estádio da Fontedeira em Portalegre doutra vez... e... insultos do piorio... e até que um dia, perante a luta desigual, pois que não podia corresponder... decidi e comuniquei:
- Ou em vez do apito levo uma G3 comigo, ou não quero mais.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11978: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (4): O diacho da cicatriz

4 comentários:

Tony Borie disse...

Olá Veríssimo.
Um resumo de memórias onde entra tudo, até aquela polícia que a mim, me atormentou e perseguiu por anos. Fdp, andas-te a pôr o teu corpo de homem, cidadão, honesto e honrado, pois até embarcas-te para a Guiné, fardado, treinado, equipado e pronto a dar o teu sangue, a tua vida pela tua pátria, e "eles", vêm fazer-te perguntas, intimidando-te, pois tinham que arranjar culpados, para receberem louvores, mandando alguém honesto para a prisão.
Enfim, como sofremos, oxalá que as novas gerações compreendam os antigos combatentes.
Um abraço Veríssimo.
Tony Borie.

Luis Faria disse...

Caro Veríssimo

Não tenho lido tudo o que vens escrevinhando,mas oque leio vai-me agradando pela forma e deversidade singela de conteúdos.
Um abraço

Luis Faria

Anónimo disse...

De: Augusto Silva Santos
Para: Veríssimo Ferreira

Camarada e Amigo,
Tenho lido (sempre que possível)com muita atenção os teus episódios, que muito aprecio.
Desta feita aproveito para fazer um comentário, pelo facto de te referires a Jolmete, onde fui colocado em 1972, em rendição individual (CCAÇ.3306 / BCAÇ.3833).
Com alguns anos de diferença sobre a nossa passagem por aquele aquartelamento situado lá no cú de judas e, embora saiba que na altura da tua visita as condições de alojamento eram bem piores do que no meu tempo, folgo em saber, apesar do fogachal com que foram brindados, ainda houve oportunidade para uma bela jantarada. Na altura em que por lá passei, oportunidades para grandes manjares eram poucas ou não havia mesmo. Sei que nos primeiros 6 meses da minha permanência no Jol, que foi cerca de um ano, emagreci 10 kilos, chegámos a fazer refeições de arroz com marmelada, e irmos para o mato com duas bolachas capitão, uma lata de chouriço para dividir por vários, e uma cerveja, porque até rações de combate nos chegaram a faltar. Tinha um irmão na CCAÇ.3307, que estava colocada no Pelundo (era outro "mundo" apesar da curta distância que nos separava)), a quem cheguei a enviar mensagens de rádio a pedir que me arranjasse alguma comida de jeito, nomeadamente uns franguitos.
Mas sobrevivi e aqui estou eu a contar-te também um pouco da minha passagem por terras da Guiné, para tem enviar igualmente um grande e forte abraço. Continua com as tuas estórias.

Hélder Valério disse...

Olá Veríssimo

Então, também foste 'incomodado' pela 'prestimosa'?
Logo tu?
Realmente.... mas como isso se passou na fase de actuação do 'homem a homem' (para usar uma 'imagem futebolística' que o pessoal percebe melhor) não será de estranhar essa actuação, tendo então em conta os 'motivos'. Mais tarde, em tempos de 'mudança de nome', a actuação foi mais 'à zona' e aí já não te teriam incomodado, fariam 'cruzamento' com as tuas amizades, com os locais que frequentavas, com as tuas acções e só depois 'entravam em acção', ou não.

Quanto às outras histórias com que a tua memória nos tem brindado, elas são relevantes na medida que nos dão uma imagem bastante nítida do que é (foi) a solidariedade, a amizade, a protecção. Dá-nos também uma medida da dimensão humana que as situações de guerra nos proporcionam.

Abraço
Hélder S.