quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12007: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (7): Relato do ataque à capital da República da Guiné feito pelo Tenente Januário na Rádio Conacry

1. Continuação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro de sua autoria com o mesmo título, Edições Polvo, 2005:


MEMÓRIAS DA GUINÉ

Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap. Mil de Artilharia 

7 - Relato do ataque à capital da República da Guiné feito pelo Tenente Januário na Rádio Conacry

"A viagem do Xime (porto próximo do Quartel dos Comandos Africanos de Madina Mandinga) até à ilha de Soga (no arquipélago de Bijagós) durou seis a sete horas.
Chegamos de madrugada a Soga. Não desembarcamos. O pessoal das lanchas não podia ir a terra nem o pessoal de terra podia ir a bordo. Gerou-se a confusão entre nós.
Todos perguntávamos: para onde iremos? Ninguém sabia, nem os pilotos das embarcações. O Comandante da minha lancha também não sabia.
A moral baixou.
Falava-se que iríamos para a ilha de Como, Cabo Verde ou Teixeira Pinto.

No dia anterior à partida foi-nos dada ordem para ir a terra trocar de fardamento e armamento.
Em terra encontrei gente estrangeira que não conhecia. De onde vieram? Ninguém sabia.
Um rapaz de Conacry disse-me que íamos à terra dele.
Aquele pessoal era da República da Guiné e ia ser levado até à sua terra.

Regressei a bordo e contei o que ouvi.
- Vamos para Conacry. Vocês estão de acordo?

Ninguém estava de acordo, nem os soldados, nem os sargentos, nem os oficiais, nem o Major.
O Comandante Calvão prendeu o Major (Leal de Almeida) que se insubordinou e mandou-o para Bissau.
O nosso Major (Leal de Almeida) foi para Bissau num dia e no outro voltou com o nosso General e o Comandante Calvão.
Foi reunida a Companhia (Comandos Africanos) e o nosso General disse que iríamos a Conacry somente levar os homens que estavam na ilha e mais nada.
Deixaríamos os homens no porto e regressaríamos. Mais nada.

Começamos a pensar na família. Se por acaso tivessemos qualquer contacto com tropas da República da Guiné? Se eles viessem à nossa terra e atacassem a nossa família, gostaríamos disso?
Tenho na Guiné Portuguesa o meu pai já velho, o meu filho, os meus amigos, a família toda.
Não estava de acordo em ir. A maioria dos oficiais, sargentos e soldados também não estavam de acordo.
Mas o General (António Sebastião de Spínola) convenceu a "malta". Disse-nos que era a única maneira de acabar com a guerra. Que estava tudo arranjado e que não haveria problemas. Disse-nos que as nossas famílias não seriam esquecidas se algum mal nos acontecesse.

O General disse que não haveria problemas e que a operação seria cancelada se houvesse qualquer alteração e se se verificasse, em qualquer altura, que não seria bem sucedida.
Que havia 95% de probalidades de êxito.
Já não pudemos invocar mais nada.
Tivemos que vir.

As forças com quem viemos e que se chamavam a elas mesmas Forças da República da Guiné eram cerca de 150 homens.
A minha Companhia (Comandos Africanos) tinha, também, 150 homens.
Havia também 80 fuzileiros.
Estas forças todas foram subdivididas em pequenos grupos. Cada grupo era destacado para um barco. Ao todo eram seis barcos, que partiram a horas diferentes.

Saímos às 8 horas da noite da ilha de Soga e chegamos aqui às 10 horas da manhã do outro dia. Quando à noite se começou a ver uma luz vermelha, que é a indicação de terra, foram-nos chamar.
O Capitão Bacar (negro) chamou-me e foi então que me apareceu o Capitão Morais (branco) todo pintado de preto que eu nem o conhecia.

Ele disse-me:
- Januário, vamos saltar aqui.
- O quê? Então disseram-nos que vinhamos só trazer o pessoal e eles é que desembarcariam e agora nós também vamos a terra?
- O General mandou e temos de ir lá.

Mandou seguir seis botes cheios de gente para terra.
Eu ia no bote imediatamente atrás do Capitão Morais.
Rumamos à costa. Junto a terra encontramos duas canoas, suponho de indivíduos que andavam a pescar.

Pensei alto: eles vão ser avisados e isto vai ser uma chatice.
- Oh, não. São pescadores. Parece que estás com medo...
- Não, não estou com medo. Se você vai eu também vou.

Chegamos a terra e desembarcamos.

O Capitão Morais disse-nos:
- A nossa missão é atacar o Aeroporto e destruir os MIG's. Outros grupos atacarão o PAIGC, a estação dos correios e a emissora.

Em terra fomos progredindo sem custo.
Subimos um muro e começámos a ver o Aeroporto. Depois parámos.
O Capitão continuou.
Eu parei. Fiz sinal aos homens que me acompanhavam para pararem também.
Perdemos a ligação com o Capitão Morais.

Disse aos soldados:
- Vamos atacar esta gente? Gostaríamos que nos fizessem o mesmo? Eu não atacarei ninguém. Quem quiser ficar comigo que venha para aqui. Os outros que corram para a frente.

Vinte homens que estavam comigo decidiram logo não atacar.
Regressamos todos ao ponto onde desembarcámos.
Eu bem sabia que quando chegasse a Bissau teria alguns anos de cadeia.

Quando chegámos à costa já não apanhámos os barcos.
Resolvemos esconder-nos e esperar pela manhã.
Resolvi apresentar-me às autoridades logo que amanhecesse.
Encontrei um rapaz daqui que me levou à Polícia Popular.
Aí disse o que tinha acontecido e fiz a entrega das armas.
Os soldados que estavam comigo acompanharam-me e fizeram o mesmo.
Verificou-se logo que as armas não haviam feito fogo.

Estas informações foram ditas por mim, Tenente Januário, e se não digo mais é porque mais não sei."
O Tenente Januário foi, passado algum tempo, julgado e condenado à morte, tendo, posteriormente, sido fuzilado.
___________

Nota do editor

Último poste da série de 28 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11990: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (6): A invasão de Conacry

10 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caro amigo Fernando Valente,

Muito obrigado por esta apresentacao sucinta do que parece ter sido o depoimento do Ten. Comando Januario.

Trata-se, para mim, do primeiro documento escrito que vi desde 1970sobre este infeliz acontecimento.

No entanto e apesar das conviccoes que podem existir de um e d'outro lado, estas notas ainda nao sao a prova final e definitiva de que ele e os seus companheiros terao desertado.

No depoimento, entre outras coisas, pode ler-se: "Regressamos todos ao ponto onde desembarcamos" "Quando chegamos a costa ja nao encontramos os barcos"

Pelo que se apresenta, parece que se verificou alguma hesitacao ou questionamento sobre a legalidade e legitimidade da accao o que, mesmo para um soldado comando, pode ser legitimo. Portanto, as notas indicam que ele (Ten. Januario) podia nao estar de acordo, mas ainda assim queria regressar a Guiné sabendo de antemao que poderia incorrer num
processo disciplinar de insubordinacao e desobediencia as ordens dos seus superiores.

Os "boatos" que circularam na altura e que nos ouvimos é que quando ele e o seu grupo chegaram ao sitio combinado para o regresso, o/s barco/s ja tinham partido.

Uma outra questao que se pode colocar e que nao é menos importante é saber a fonte desta informacao/depoimento e as condicoes em que foi dito ou escrito.

Um abraco,

Cherno Baldé

Anónimo disse...

No livro.."operação mar verde".. de António Luís Marinho,está descrito este depoimento à policia "secreta" da Guiné.Conakry..feito pelo Tenente Januário.

Estes depoimentos foram dados a conhecer aos organismos internacionais de forma a comprovar a participação de Portugal e obviamente a sua condenação por violação do direito internacional..

Resta saber se este depoimento é verdadeiro assim como outros...

Deduz-se que o Tenente Januário era contra esta operação e que foi enganado...mas foi..com que intenções..não se sabe e provavelmente nunca se saberá.

C.Martins

Anónimo disse...

PS

Resumindo..a operação "Mar Verde" foi relativamente um sucesso em termos militares e um desastre político para nós e um sucesso político para o Sekou Touré que lhe permitiu manter-se no poder por muitos e longos anos.

C.Martins

GONÇALVES disse...

Estou totalmante de acordo com o comentário do Cherno Baldé.
Estou convicto que o Januário não desertou com os seus homens Ficou para trás quando a situação se complicou e os barcos partiram sem os poder recolher.
Muito terá ficado por relatar sobre esta Operação e outras. O tempo vai apagando memorias.
Um abraço a todos os ex-combatentes.
Gonçalves
Ex-furriel milº.
CC 1787

Antº Rosinha disse...

Alguem duvida da excepcional capacidade política, diplomática tanto a nível nacional como internacional dos dirigentes do PAIGC?

Esta declaração do tenente Jánuário, nitidamente ensaiada ao espelho, demonstra como conseguiam jogar em todos os campos.

A luta mais difícil dos dirigentes do PAIGC, (MPLA e FRELIMO) não era exclusivamente contra a colonização portuguesa.

Era também a luta para manter o apoio dos vizinhos a eles e não a outros movimentos bem conhecidos, era também divulgar ao máximo aquela invasão perante as Nações Unidas, e era transmitir uma imagem própria de um humanitarismo (que nunca existiu), perante nós, tugas-milicianos, "anti-salazaristas/spinolistas" por natureza.

Já quando foi do assassinato de Amílcar conseguiram também os mesmos intentos, pôr de fora os vizinhos, os próprios cubanos e russos, qualquer movimento guineense anti-Cabral, e descarregar na PIDE/Spínola.

Se esses dirigentes do PAIGC, conseguiram na sua luta quase sucesso total, apesar do fim de Amílcar, foi mais difícil em Angola com o MPLA, de que Amilcar tambem era co-fundador, porque simplesmente havia o antídoto (veneno da mesma cobra)do lado do tuga.

Atenção que o termo tuga era exclusivamente do crioulo guineense/verdiano.

Também em Angola a política e os militares portugueses apoiaram os oposiocionistas dos governos vizinhos, caso mais divulgado foi a ajuda a Tchombé no Catanga.

No entanto o MPLA não conseguiu que nenhum "Januário"testemunhasse oficialmente fosse o que fosse.

Embora o MPLA tivesse nos países vizinhos algum apoio, nunca faltou o antídoto ao governo português (veneno da mesma cobra)

Hoje temos a prova da capacidade daqueles dirigentes do PAIGC, com o sucesso milagroso de um país chamado Caboverde.

PS. agora que temos mais um problema com as Ilhas Desertas, que tal habitá-las com os incendiários deste verão?

Anónimo disse...

Salvo o devido respeito, a credibilidade deste documento é
práticamente nula. Nem sequer sabemos se o depoimento foi efectivamente
prestado pelo Ten.Januário e se o foi, em que condições.A operação "Mar Verde",foi minuciosamente preparada e planeada durante meses.A tropa invasora de nacionais da Guiné Conakry,recebeu treino e instruçao de militares portugueses,entre os quais o meu amigo Sarg.Teixeira.Pretender que ninguém sabia de nada e que foram apanhados de surpresa,"olha Januário vais para ali,tu Saiegh para acolá e tu Jamanca..." é desconhecer em absoluto,como se planeava uma operação desta responsabilidade e envergadura..Conheci como sabem muito bem todos os oficiais da 1ªCompanhia de Comandos Africanos e também o Alferes que redigiu o auto de desaparecimento em combate do Ten.Januário,no norte da Guiné...

Abraço.

J.Cabral

Anónimo disse...

Recordo que há alguns anos passou na RTP uma reportagem sobre esta operação onde aparece o Tenente Januário a depor e onde diz mais ou menos o mesmo do depoimento escrito.

Também recordo que não estava à vontade e com uma expressão de receio..pudera..naquelas circunstâncias..qualquer um estava..

Como foi fuzilado assim como os restantes prisioneiros...provavelmente nunca se saberá a verdade...

Que existem muitas dúvidas e contradições..existem...o mais provável teria sido talvez ao tentar salvar a "pele" tentou passar por desertor...foi pior "a emenda que o soneto"...para as autoridades militares portuguesas foi um traidor e para o "sanguinário" Sekou Touré uma oportunidade política que após ter conseguido o que queria o "eliminou sumariamente"..

Segundo fonte fidedigna o PAIGC não teve qualquer responsabilidade no seu fuzilamento e até alguns dirigentes tentaram opor-se, porque lhes era mais útil vivo.. só que o Sekou Touré não estava para aí "virado" e por isso....

C.Martins

Anónimo disse...

Meu caro camarada "alfero" J.Cabral


Os elementos do chamado "front" da Guiné-Conakry eram na sua maioria uma "cambada" de oportunistas..só que foi o que se pode arranjar na altura..

Quanto à morte em combate do Te.Januário no norte da Guiné é igual à "estória" que o Major Lobato (militar impoluto) "teve" que contar numa entrevista à RTP..."fuga a pé desde Conakry até fronteira da Guiné" ...coisas que a propaganda exigia...má por sinal...o PAIGC fazia melhor...pudera..tinha uma boa "escola".

Um alfa bravo nosso "alfero"

C.Martins

Anónimo disse...

PS

Peço desculpa...em vez de "morte" quero dizer "desaparecimento" do T.Januário.

C.Martins

Carlos Silva disse...

Meus Amigos & Camaradas

Estou de acordo com alguns/comentários análise sobre o presumido depoimento do Ten Januário.

As versões sobre a sua deserção ou não, são múltiplas e tenho para mim que há muita especulação.

O que se passou e as motivações que o levaram a ele e restantes camaradas a tomar uma postura de deserção ou não, morreram com ele e com todos os camaradas que o acompanharam na decisão, porquanto, creio que foram todos os protagonistas fuzilados e como tal não há ninguém para falar sobre esse comportamento, donde tudo que se diga não passa de meras presunções e especulações.

Essencialmente da leitura dos livros :
1 - “ De Conakry ao MDLP “de Alpoim Calvão
2 - “Guineense Comando Português” de Amadu Bailo Djalo
3 - "Operação mar verde".. de António Luís Marinho,
4 – “Prisão de África” de Jean-Paul Alata

não podemos concluir com certezas que o Ten Januário desertou ou não desertou e quais as motivações que os levaram a tomar as suas decisões naquela altura e naquele momento e se as mesmas se fundamentaram em tomadas de posição anteriores e isso nunca se saberá, pois como atrás referi tudo isso morreu com eles.

Quando se fala nesta situação, transporta-me sempre para Jumbembem e para o dia 22 ou 23 de Novembro de 1970 onde no meu quarto juntamente com outros camaradas ouvi em directo, a suposta entrevista que eu digo interrogatório de largos minutos ao Ten Januário e por mais que tente recordar-me não consigo lembra-me senão disto….

Às muitas perguntas do inquiridor em francês e com tradução em simultâneo, ocorre-me e tenho gravado na minha mente, ele responder que era português, oficial do exército português e que não vestia a farda do exército a que pertencia, mas sim a do exército da Guiné Conakry, para se fazer passar como pertencendo a este.
Que efectuaram aquela operação com vista a libertar os prisioneiros portugueses e creio que disse também para derrubar o regime de Sekou Touré, mas esta última parte já não tenho a certeza.

Tenho pena de não me recordar de algo mais e nunca pensei decorridos mais de 40 anos sobre os acontecimentos vir a falar deles, não tive perspicácia de gravar para memória futura.

Com certeza que este interrogatório deve constar dos arquivos daquela rádio e dúvido que conste dos arquivos do PAIGC.

Também sei de fonte fidedigna que na sequência desses acontecimentos vários ou muitos dos fuzilados foram pendurados numa ponte de Conakry.

Portanto meus Amigos & Camaradas, não venham para aqui com presunções e especulações, até porque há camaradas dele que estão convictos que não desertou, enquanto há outros camaradas que afirmam que sim e isso está escrito no livro de Alpoim Calvão.

Com um abraço amigo
Carlos Silva