terça-feira, 19 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12316: Blogoterapia (240): Penso na Mata do Morés e chego a sonhar que a conheci (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista*, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 12 de Novembro de 2013:

Sete meses em Mansabá na CART 2732, tão perto do Morés e nunca lá entrei. No Morés o PAIGC tinha uma base importante e por esse motivo, de acordo com a estratégia da guerra adoptada nesse tempo pelos nossos comandantes militares somente as tropas especiais eram mobilizadas para operações de ataque a bases do inimigo.

Em finais de 1971, estava eu em Mansabá, houve uma grande operação realizada por duas Companhias de Comandos Africanos, segundo recordo e onde foi de heli o Major Gaspar (conhecido por Siga a Marinha) na altura comandante do COP 6.

Na antevéspera do dia da operação foram deslocadas armas pesadas de longo alcance para o destacamento de Cutia que bombardearam durante muito tempo.as referidas bases. Aviões, bombardeiros e a jacto também bombardearam intensamente a zona.

No dia da operação segundo o major Gaspar que me encontrou no bar quando regressou somente encontraram população, velhos, mulheres e crianças que não terão sido muito bem tratados. Depois do barulho dos morteiros, dos obuses e dos aviões dos dias anteriores, que nós sentimos no quartel, não seria de prever outra coisa. O objectivo da operação seria penso eu, amedrontar as populações sujeitas à influência do inimigo e expulsá-las dessas áreas Para esse tipo de operações, já que praticamente não havia confronto com a guerrilha talvez, por outros motivos, até fosse mais vantajoso usar tropa normal.
Porém a guerra limpa ou suja era feita nos gabinetes de ar condicionado, pelos nossos comandantes em Bissau e ordens não se discutiam.

Terá sido a última operação em que o major Gaspar participou pois alguns dias depois foi chamado a Bissau e constou-se que numa noite de bebedeira andou ele e outro camarada aos tiros à bandeira nacional. Foi internado por psiquiatria e enviado para Lisboa. Segundo já li no nosso bloge terá morrido cedo. Foi uma vitima de muitas guerras. Esteve na Índia, na Guiné duas vezes e não sei se também Angola ou Moçambique. Por tédio, desilusão, cansaço da vida, terá procurado no álcool a paz que não encontrou na realidade dura duma guerra muito prolongada. Era um homem bem disposto e com tiradas muito cómicas, de que ouvi falar antes de o conhecer e que eram comentadas por toda a Guiné. Do pouco tempo que convivi com ele guardo a impressão dum homem bom e sensível. Um poeta que por erro de vocação foi para a vida militar e que por uma contingência histórica desfavorável teve que combater em vários teatros de operações.

Voltando ao Morés, o que me atraia nele não era o confronto militar mas antes a possibilidade de percorrer uma grande floresta tropical.
Na Guiné havia muitas árvores, havia muita matas, mas a mata grande de que se falava era a do Morés.


Na aldeia onde nasci e vivi até à idade adulta havia e há muitas árvores, muitas matas. Cresci a contemplar essas árvores tão variadas entre elas, umas mais largas e frondosas, outras mais altas, com folhagem em vários tons de verde, umas de folha perene, outras de folha caduca.
Há uma área grande de oliveiras, plantadas pelo homem, em décadas e séculos anteriores em socalcos nas encostas do rio Sabor. Quando a cultura do trigo e do centeio deixou de ser rentável os lavradores passaram também a plantar no planalto onde já há grandes olivais.

Nos vales e lameiros, zonas mais frescas, há ainda muitos freixos. Havia também muitos olmos mas há cerca de 30 anos veio uma praga da Europa e os olmos secaram todos. Havia também um grande souto de castanheiros que estando embora em terrenos pertencentes à Junta da Freguesia eram propriedade dos naturais da aldeia. Infelizmente também veio uma doença, o cancro do castanheiro e morreram todos.Alguns pinhais, não muito extensos.

Há uma mata de sobreiros bastante extensa, com muitos arbustos sobretudo giestas e estevas a disputar-lhe o espaço.
Há outras árvores dispersas tais como o carvalho, o carrasco, o zimbro, a amoreira e a figueira.

Todas úteis pela gama de produtos variados que proporcionam à economia da terra, casca, folhas, frutos, madeira, lenha e até uma sombra acolhedora nos dias quentes de verão. Do sobreiro estrai-se a cortiça para o fabrico de rolhas e outros derivados, dá ainda a bolota para alimento dos animais. Da oliveira o azeite. As folhas do freixo e do olmo também eram boas para alimento dos animais.

Todas as árvores e até os arbustos tais como as estevas e giestas boas para queimar nas lareiras, cozinhar os alimentos e aquecer as noites frias de inverno.
Da madeira de algumas também se faziam os arados, os carros de bois, as vigas das casas e outros bens necessários à comunidade.

Durante muitos anos ajudei a família a extrair os vários produtos que elas generosamente proporcionavam, aprendendo a conhecer a sua utilidade, sem me surpreender com a sua beleza. A distância, a ausência, a novidade ajudam a revelar o encanto e a beleza que o convívio quotidiano por vezes esconde.

Pela distância aprendi a amar mais a minha terra, aprendi a amar mais as árvores da minha aldeia quando estive longe delas na Guiné. Lá aprendi a amar as suas grandes árvores tropicais pela sua altura e pelo mistério das suas florestas semelhantes a grandes catedrais com muitas colunas verdes.

A idade dá-nos também uma visão mais calma, mais abrangente. A experiência dos anos ensina-nos a utilizar os vários sentidos e a conjugá-los com o raciocínio mental. A beleza na sua plenitude revela-se mais quando atingimos as alturas da idade e da nossa sabedoria.

Há muita poesia nos olhos dos mais velhos. Quem não recorda a miséria das populações da Guiné, que tinham de ser alimentadas com arroz importado pelo governo, por causa da guerra e apesar disso os homens grandes das tabancas tinham sempre um ar nobre e calmo.

Porque nasci no campo, porque fui lá criado, tinha muita curiosidade em conhecer os campos e as florestas da Guiné, daí a minha vontade em conhecer a mata do Morés.

A floresta da minha aldeia é muito diferente. É floresta mediterrânica ao passo de que a da Guiné é floresta tropical. Mas quem aprendeu a amar uma também facilmente pode gostar da outra. Dos meus tempos de Buba recordo com saudade uma árvore enorme e frondosa que havia não longe do terminus do rio Grande de Buba. Bem, este era um falso rio, já que na realidade era um braço de mar, como havia tantos na Guiné, a cerca de 3 quilómetros de Buba acabava o rio. Não longe, numa mata de árvores com alguma extensão sobressaía uma pela altura, pelo um tronco largo, com veios salientes que entravam na terra e pela ramagem farta.
Aquela árvore era um monumento vivo. Hoje quando penso em Buba ela vem quase sempre associada. Tinha saúde para viver ainda muitos anos, oxalá ainda exista.

Penso na mata do Morés e chego a sonhar que a conheci.

Um abraço a todos os camaradas
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12186: Blogoterapia (239): O meu primeiro contacto com a África selvagem e misteriosa (Francisco Baptista)

5 comentários:

Anónimo disse...

Caro Francisco, nao nos conhecemos mas aqui deixo o meu agradecimento pelo post que me maravilhou. Um abraco. ZB.

Carlos Vinhal disse...

Lembro-me perfeitamente desta operação que decorreu uns dias antes do Natal de 1971 e em que participaram as 1.ª e 2.ª Companhias de Comandos Africanos. Era Comandante do Centro de Operações Especiais o então Major João de Almeida Bruno. O COE tinha por missão coordenar as actividades das forças africanas.

O Major Gaspar tinha substituído no comando do COP 6 o Major (ou já TCor?) Correia de Campos que tinha saído para ir comandar o COP 7, reactivado em Novembro de 1971 para desenvolver a sua actividade na Península de Gampará.
Carlos Vinhal

Anónimo disse...

Caro Francisco:
Que descrição! Quase nada ficou por dizer da flora das margens do Sabor. Uma lição. Conheci Buba e o espaço entre esta tabanca e Aldeia Formosa. Conheço parte do território marginal do Sabor, nomeadamente a zona do Felgar. Espero brevemente passar lá alguns dias na apanha da azeitona (Souto da Velha) e sentir o cheiro da esteva e toda aquela atmosfera muito especial.
O teu texto é uma aula de geografia, de ciência da natureza e de economia rural.Vinte valores.
Um abraço.
Carvalho de Mampatá

Anónimo disse...

Joaquim Luís Fernandes

Caro Camarigo Francisco Baptista

Obrigado pelo teu texto, encantou-me.

Escreves-nos sobre um tema que me é caro,- a natureza e nela as florestas, mas lembras-nos também os terríveis dramas humanos que aquela guerra forjou, de ambos os lados da contenda e a que sou muito sensível; Quantas vidas despedaçadas!... quantos sofrimentos desencadeados e que ainda hoje perduram!... E quem responde sobre isso?...

Contrastam no teu texto duas florestas: A tropical, selvagem e misteriosa, das matas do Morés e a mediterrânea, quase "humanizada", da tua aldeia, que te era familiar e conhecias desde menino e com ela vivias as suas maravilhas.

Deste teu "ode" às florestas, emergem dois símbolos: O da Guerra e o da Paz. Um, desconhecido, enigmático, ameaçador, que aterrorizava; O outro, de confiança, amigável, em que homem e floresta viviam em harmoniosa aliança e onde te sentias integrado como no paraíso. Mas ambos a exercerem o seu fascínio pelas sensações que provocam. Num, a aventura cega dos desejos e a afirmação desmedida do poder. No outro, a vivência realizada da beleza, da liberdade e da plenitude.

Também eu nasci e cresci rodeado de florestas, no meu caso, predominante de pinhais, que desde menino calcorreei e me ensaiei em tudo quanto fosse actividade humana, da lenha e resina à madeira, muitas vezes duramente, outras desfrutando de toda a liberdade e lazer possível.

Na Guiné percorri muitos quilómetros de floresta com o dedo no gatilho em terreno IN, em clima de contacto eminente, da península do Balenguerez até Ponta Costa, bem junto a uma outra mata tenebrosa, base do PAIGC, a Caboiana. Por vezes sentia uma certa curiosidade em saber como era, mas nunca desejei lá ir. Bastava passar junto a Borné e ouvir os tiros já perto, tiros de instrução/treino, de caça ou de aviso, para redobrar de cuidados antes que o "diabo as tecesse" e por-me ao "fresco" logo que possível. Apesar do ambiente e do perigo da guerra, algumas vezes me deixei inebriar pela beleza sugestiva de algumas paisagens, que gostaria de rever.

Tenho sonhado algumas vezes que regressei à Guiné. Nos sonhos tenho encontrado matas com pinheiros. Umas vezes em Bissau outras vezes no Chão Manjaco, Teixeira Pinto, Pelundo e próximo de Bula, num ambiente rural que me é familiar.
O curioso é que cada sonho mais recente me confirma que os pinhais existem mesmo na Guiné e que não era só nos sonhos. A negação vem quando acordo e a realidade se impõe. Às vezes interrogo-me: será que não existem mesmo pinheiros na Guiné?

Porquê os sonhos? Porquê as desilusões? Quem souber explicar que explique.

Um abraço camaradas
JLFernandes

Francisco Baptista disse...

Muito obrigado a todos, é sempre bom sentir que alguém ouviu o eco da nossa voz.
O Carlos Vinhal, amigo de todos e meu camarada da Cart. 2732 porque de dá sempre a sua opinião, mais precisa, sobre Mansabá.
O Carvalho de Mampatá que, noutro tempo, conheceu os caminhos de Buba Sempre tão participativo e simpático. Obrigado por também conheceres Trás-Os-Montes e ires à apanha da azeitona ao Souto da Velha. Li algures no blogue que lá para a primavera organizas uma lampreiada, não te esqueças de mim , nessa ocasião, porque eu gosto muito e moro aqui ao lado, no Porto
J.L. Fernandes, meu irmão, gostei muito de te ler. Só te direi que eu como tu , como muitos camaradas e muitos portugueses todos os verões passamos dias muito tristes pelo espectáculo belo e horrível de Portugal a arder. Os nossos governantes, estes como os anteriores, nada fazem para prevenir esta tragédia que se repete todos os anos. Ou são incompetentes ou são sádicos.
Ao ZB tenho a dizer que por vezes uma palavra basta. Jesus Cristo disse duas; levanta-te e anda. E o homem andou.
A todos um grande abraço
Francisco Baptista