domingo, 26 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12637: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (45): Carta de condução

1. Em mensagem do dia 27 de Junho de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais algumas das suas curiosas histórias, desta vez subordinadas ao tema carta de condução:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

45 - Exame de condução
(Complementando o texto do Zé Castro Lopes.)

Em tempos idos fazer exame de condução era uma aventura tremenda, tendo em conta o exame em si e a competente preparação, culminando com a deslocação até terras de longe.
Eu tirei a minha carta (militar) na Guiné em Abril de 1966; no fim do mesmo mês, embarquei de regresso a Lisboa, no navio Uíge, o mesmo que me havia levado para a Guiné, dois anos antes.

Outro alferes e eu deslocámo-nos de avião até à capital da província (por via terrestre era impensável, pois a estrada Farim/Bissau estava em boa parte do percurso, totalmente vedada ao turismo vedada ao Turismo).
Aqui chegados dirigimo-nos ao QG para fazer a inscrição de candidatura ao tal exame.

Os camaradas que nos proporcionaram os papeis que havíamos de preencher, tiveram o especial cuidado de nos informar, em off, que só havia dois oficiais examinadores: um capitão e um alferes. Transmitiram também que o capitão examinava todos os oficiais candidatos; o alferes ocupava-se da maior parte dos menos graduados (sargentos e praças).
Soubemos também, pela mesma fonte, que em cerca de 16 meses de comissão, aquele capitão havia reprovado, todos os oficias que lhe haviam aparecido pela frente, à primeira vez.
Ficámos um tanto alarmados!

Uma outra fonte, na messe de oficiais, confirmou que aquela informação era absolutamente verdadeira. O alferes Mendonça, meu companheiro de infortúnio, na Guiné, no mato e no exame de condução – já conduzia o carro do pai, lá na sua quinta em Felgueiras; às escondidas, arriscava, de vez em quando, uma escapadela pelas estradas da região, para se exibir perante as garotas.
Nunca foi apanhado pelas autoridades. Entre os oficiais subalternos da nossa companhia (a CCaç 675) ele era, portanto, o mais experimentado naquelas lides.

A minha única experiência de condução, antes da tropa, foi com carros de bois, pois a minha aldeia, antes da “bronca” (leia-se revolução dos cravos) não era servida por qualquer estrada digna desse nome. No mato, depois da “pacificação” total da nossa zona, os oficiais “podiam” (um pouco às escondidas) usar as viaturas militares para se embrenharem na arte da condução.
A companhia dispunha de 3 jeeps (da 2.ª Grande Guerra), 10 ou 12 Unimogs e 3 ou 4 Mercedes, viaturas de maiores dimensões.
Como os jeeps raramente estavam disponíveis, eu, com a mania das grandezas, habituei-me a conduzir uma caminheta Mercedes, uma viatura anormalmente grande, mas já com direção assistida, uma maravilha!

Perante as informações surpreendentes e assustadoras colhidas no QG, eu tomei logo uma decisão que considerei ser a mais acertada: fazer exame de condução usando um caminhão militar, uma Mercedes que requisitei na Intendência. Deliberei deste modo, por dois motivos:
- 1.º eu estava habituado a conduzir, quase em exclusivo, carros grandes, especialmente a Mercedes;
- 2.º considerei que poderia ser uma boa maneira de escapar ao exame com aquela fera (o capitão). - 3.º era mais económico que alugar um carro na Escola.

Sem perda de tempo, contactámos uma Escola de Condução (a única em Bissau) para adquirir um pouco de prática em estradas civilizadas (leia-se alcatroadas, com passeios laterais, com sinais de trânsito e movimento. Conduzi um “velho carocha” durante meia hora e uma viatura pesada, durante hora e meia. Esta segunda parte foi extremamente útil; o instrutor civil “levou-me” a todos os locais por onde o capitão costumava passar durante o exame. Elucidou-me também sobre as “armadilhas” que ele usava habitualmente: mandar entrar em rua de sentido proibido, ultrapassar com sinal sonoro junto a um hospital, estacionar em local proibido, etc.
Informou também que ele ordenaria que entrasse em determinada rua estreita e que voltasse na primeira à esquerda, entrando numa rua perpendicular e também acanhada.
Chegados a este cruzamento ele mandou parar e explicou: "há apenas uma maneira de sair daqui! Se não fizer como vou ensinar-lhe, não consegue concluir o exame; como vou transmitir-lhe, sai com uma pequena manobra”.

Conduzi como ele ensinou e… tudo bem! Dei a volta ao quarteirão e voltei ao mesmo local para repetir a manobra agora sem ajuda – nenhuma complicação!
De seguida, juntamente com o alferes Mendonça, percorremos, a pé, todas as ruas por onde o capitão haveria de nos “levar” para nos familiarizarmos com os sinais (no mato não havia disso): aqui podemos entrar, ali não, acolá não podemos estacionar, além não podemos voltar à direita, etc.

No dia e hora aprazados, compareceram mais de 20 candidatos dos quais 3 eram alferes; um dos oficiais era candidato apenas à carta de mota. Uns 7 ou 8 chumbaram antes da condução: uns na prova escrita, outros na oral e alguns nos testes psicotécnicos. Qualquer destes exames “parciais” era eliminatório.
Os três oficiais superaram a 1.ª fase, passando à condução. O alferes Mendonça foi o primeiro a ser chamado para ser examinado num “carocha” que alugara na Escola. Entrou na viatura e aguardou a ordem do examinador:
- Ligue o motor! - Se está tudo bem, inicie a marcha!

O Mendonça “arrancou” de tal ordem (os pneus derraparam, levantando poeira a rodos) que o capitão gritou que parasse imediatamente e, com voz doce, informou sarcasticamente:
- Desligue o motor se faz favor e vá à sua vida! O seu exame terminou agora! Com isto não se brinca!

O outro alferes foi chamado para o exame de mota; não sei o que se passou; voltaram pouco depois, e… não conseguiu levar a carta.
Chegou a minha vez!

O capitão ordenou que entrasse e ligasse o motor – de nada serviu o meu estratagema – e se tudo está em ordem siga em direcção à Baixa.
Tudo correu de acordo com os sábios ensinamentos do instrutor civil. Que sorte! Regressados ao QG ordenou que arrumasse a viatura de marcha atrás, num barracão ali existente, entre duas outras que lá se encontravam.
De seguida ordenou que aguardasse. Eu tinha a “certeza”(?) que não tinha cometido qualquer atropelo… mas a minha preocupação era enorme; creio que era mais terror que outra coisa.
Pouco depois, um soldado, por ordem do examinador, informou-me que voltasse depois do almoço e que trouxesse duas fotos tipo passe para a carta de lista branca (penso que era branca) que me seria entregue nesse mesmo dia, mediante pagamento da módica quantia de 10$00 (pesos).

Usei-a durante uns anos; em 1972, quando saí da tropa, troquei-a pela carta civil. Em cerca de 16 meses fui, portanto, o único oficial a conseguir a carta à primeira tentativa… graças aos ensinamentos pertinentes do instrutor civil. Acontecia que àquela data, eu tinha bem mais de 30.000km de condução em estradas e “picadas” onde o que aparecesse estava destinado ao abate.

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Outra estória

Em 1961, conheci em Coimbra, um estudante, natural de Lamego (Britiande) que no ano anterior vivera na mesma casa na qual eu estava hospedado e aparecia lá com certa frequência.
Ele foi chamado a cumprir serviço militar em Mafra (EPI) no início de 1963; em Agosto do mesmo ano eu “bati com o costado” naquela mesma Escola Prática. Ele foi mobilizado para Angola e, pouco depois, eu embarquei para a Guiné.

Em Junho de 1966, regressado da Guerra, fui colocado no Colégio Militar, onde esperava preparar-me para concluir o curso. Em Outubro, o Walter Carvalho, o tal companheiro de Coimbra, encontrou-se lá comigo. Como aos dois faltava fazer quase as mesmas cadeiras, logo combinámos que estudaríamos juntos. Em primeiro lugar tentaríamos duas cadeiras mais simples. Havia um DL que permitia aos ex-combatentes fazer exame em qualquer época do ano; de seguida, já mais ambientados ao estudo e já “esquecidos” das complicações bélicas, tentaríamos uma cadeira nuclear para aquilatar as nossas capacidades psíquicas e psicológicas para continuar os estudos a sério, depois dum interregno de 3 anos em grande parte passados na Guerra de África – outros chamam-lhe colonial.

Um ano mais tarde, o Walter decidiu “tirar” a carta; adquiriu os papeis, preencheu-os e foi entregá-los na D.G.V.
Ao conferir os documentos, um funcionário extremamente zeloso e cumpridor informou, emproado:
- Oficial miliciano não é profissão!
- É disso que eu vivo! Mas se não é aceite… eu sou estudante!
- Também não é profissão!
- Não tenho outra! Estudo e recebo salário como oficial miliciano! Será que não posso obter a carta para se profissional de condução?
- Claro que não!

Devolveram-lhe a papelada! Preocupado com o que estava a acontecer-lhe, decidiu contactar uma Escola de Condução para que tratassem dos documentos de candidatura ao tal exame. Recolheram logo os elementos considerados necessários, mas não perguntaram pela profissão e sugeriram que voltasse no dia seguinte para assinar.
Curioso, logo foi verificar qual a profissão que lhe haviam atribuído. Ao certificar-se que era “agricultor”, comentou, sorrindo:
- Não tenho nada contra os agricultores, mas é tão verdade como afirmar que sou médico ou engenheiro.
- Na verdade, ou aceita ser agricultor, ou outra profissão que não necessite de comprovativo académico (carpinteiro, pedreiro, etc.) ou não pode habilitar-se à carta de condução.

Assinou! Foi essa a sua profissão (apenas na carta) enquanto o documento foi de cartolina; agora, com o cartão substituído por plástico, será diferente.

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Mais uma 

Um jovem frequentava o Liceu em Goa, quando, em finais de 1961, a União Indiana decidiu anexar a, até então, Índia Portuguesa (Goa, Damão e Diu, bem como, os enclaves de Dadrá e Nagar Haveli, escreve-se assim?).

O jovem, com a sua família “sem armas e com pouca bagagem” rumou à capital do Império onde concluiu o curso liceal, matriculando-se de seguida na Faculdade de Medicina. Ainda antes do fim do curso candidatou-se ao exame de condução; seria de bom-tom que o Sr. Doutor conduzisse a sua viatura.

Preencheu os impressos necessários e entregou-os na DGV; solicitaram que apresentasse o diploma da 4.ª classe, habilitação” mínima “exigida na Lei.
- Não possuo tal documento! Fiz esse exame em Goa e, na hora da “anexação” no meio da grande azáfama e perigo, trouxe apenas o que tinha… ali à mão. Estou prestes a concluir o curso de medicina; posso apresentar o certificado do 7.º ano que concluí no Liceu Camões!
- Eu quero apenas o comprovativo da 4.ª classe! O resto é conversa! Não interessa!

É certo que o futuro “galeno” conseguiu a sua carta de condução, mas viu-se obrigado a mover influências – as tradicionais e sempre atuais “cunhas” – para que alguém” sugerisse” ao zeloso funcionário que fizesse o “favor” de não exigir o tal documento… mas ninguém teve coragem de o informar que tinha… vista curta!
Se o candidato tivesse mais habilitações que as “mínimas”...tanto melhor.

Como dizem os nossos irmãos do outro lado do Atlântico: “o que abunda (ou a bunda?) não prejudica”.
Os burocratas esqueciam que era possível tirara um curso superior sem fazer a quarta classe...
Questões… de mangas de alpaca!
Ainda há disso a rodos… nas repartições públicas e Câmaras Municipais emperrando todo o sistema!

Saudações colegiais
Junho 2013
BT
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11496: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (44): A gloriosa CCAÇ 675 foi realmente única

1 comentário:

Anónimo disse...

Caro camarada B.Tavares


A propósito de "burrocracias" e "burrocratas".

Um dia entrei num balcão da C.G.D., que já estava informatizado, para levantar dinheiro.

Boa tarde...
Boa tarde Sr.Dr.

Preenchi um cheque que entreguei à Sra..esta digita no teclado..

Não lhe posso pagar o cheque Sr. Dr..
Porquê..não tenho dinheiro na conta..é.

Não..não...É QUE O SR.DR. É ANALFABETO.

Se o computador dizia .. era mesmo

Um alfa bravo

C.Martins