segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12580: Notas de leitura (552): "Mudança Sócio-Cultural na Guiné Portuguesa", dissertação de licenciatura de José Manuel Braga Dias (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Agosto de 2013:

Queridos amigos,
Lê-se e fica-se de boca à banda. O ISCPU publicou em 1974 esta dissertação que esmiuça, sem rodeios nem encómios, a análise e comportamento da população guineense face à subversão.
O autor, Braga Dias, fizera a sua comissão na Guiné onde lhe foram dados meios para estudar as razões subjacentes à mudança sociocultural. Se na an
álise da estrutura sociocultural da Guiné anterior à eclosão do terrorismo traça um quadro perfeitamente convencional, no trabalho que desenvolve sobre as atitudes da população face à guerrilha apresenta elementos completamente novos à luz do discurso oficial, não deixando ilusões que a subversão convulsionava a sociedade, de cima a baixo.
Foi graças a uma chamada de atenção do investigador António Duarte Silva que cheguei a esta leitura. No mínimo, é de leitura indispensável para todos os investigadores portugueses e guineenses que pretendam estudar este período. Afinal, num determinado meio académico, e mesmo para consumo do governo da Guiné, Braga Dias desfazia a ilusão de que a luta armada era um “pequeno problema”, resolúvel a prazo.
Tenho muito gosto de emprestar estes 5 kg de papel a qualquer interessado.

Um abraço do
Mário


Mudança sociocultural na Guiné Portuguesa (1)

Beja Santos

José Manuel Braga Dias apresentou como dissertação de licenciatura ao ISCPU um trabalho intitulado “Mudança Sociocultural na Guiné Portuguesa”, que veio a ser publicado pela instituição académica em 1974. Este trabalho de investigação pode ser consultado no ISCP ou na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Braga Dias procura questionar as mudanças sociais registadas na Guiné e resultantes de uma situação de contacto, isto é, de aculturação condicionada por progresso técnico, económico, educacional, moral, político e social, fazendo avultar a natureza das transformações daí resultantes. Braga Dias fora mobilizado e esteve na Guiné dois anos a estudar os problemas da mudança social para compreender e explicar as reações dos indivíduos num contexto de contacto com as autoridades civis e militares.

A situação de contacto torna-se uma realidade não imediatamente após as chamadas guerras de pacificação, concluídas em 1936, mas mais propriamente no consulado de Sarmento Rodrigues, o governador que gizou e pôs no terreno o ideário da Guiné como “colónia modelo” introduzindo uma administração que em tudo mudou a vida da colónia, assegurando o lado moderno na justiça, no quadro administrativo, nas obras públicas, na saúde, na educação, na agricultura e nos negócios.

Braga Dias lançou mão de um amplo leque de entrevistas, fez os seus questionários e apresentou um primeiro trabalho de carácter etnossociológico que apresentou ao Comando-Chefe. Preocupou-se com entrevistas direcionadas em indivíduos integrados nas culturas tradicionais, aculturados ocidentalmente, de origem metropolitana e cabo-verdiana. Como escreveu na introdução do seu trabalho, “O critério de seleção baseou-se na função e estatuto que desempenhavam os entrevistados na sociedade guineense. Deste modo, se queríamos saber a organização tradicional Nalu procurávamos entrevistar um Nalu que desempenhasse funções na hierarquia tradicional e reconhecido pelas pessoas com quem contactávamos e por nós observado. Paralelamente, procurávamos entrevistar alguém ou um grupo de Nalus que nos confirmavam ou não as informações anteriormente recolhidas”. Foram difíceis, adverte, as entrevistas com elementos integrados nas culturas tradicionais, houve que recorrer a um intérprete da mesma etnia e quando as respostas pareciam evasivas havia que complementarmente recorrer à pesquisa documental. A tese de licenciatura de Braga Dias aparece dividida em quatro capítulos: características que definem a sociedade dualista da Guiné (tradicional e moderna); análise da atitude e comportamento da população face ao movimento subversivo; análise às três novas respostas dadas pelo governo da província à subversão e terrorismo (a saber, reordenamentos, congressos do povo da Guiné e o dispositivo militar africano); caraterização da situação de mudança da sociedade global guineense emergente do fenómeno da subversão.

A análise da estrutura sociocultural da Guiné anterior à inclusão do terrorismo procede a um levantamento dos comportamentos da sociedade tradicional, regista os contactos interétnicos, toma em consideração os grupos sociais integradores, caso da família, do clã, da etnia, toma em conta o animismo e as suas manifestações, o islamismo e as suas confrarias, a estratificação social em que se organizam as sociedades tradicionais islâmicas, segundo conceitos que divergem da estratificação social apresentada na documentação do PAIGC (por exemplo, para o PAIGC, na sociedade Mandinga havia que ter em conta as classes dominantes e as classes dominadas), mas também a estrutura linguística, a natureza da economia agrícola, a multiplicidade linguística, a especificidade do crioulo guineense. Quanto à sociedade moderna, Braga Dias faz avultar os “cristãos” e “grumetes”, os “ponteiros”, a variedade de contactos com a sociedade branca e a cabo-verdiana (registando que sírios e libaneses estavam organizados como uma sociedade fechada). Esta sociedade moderna seria constituída por quadros das empresas, alta administração, funcionários públicos médios, profissões liberais, pequenos comerciantes do mato, empregados de comércio, operários mais ou menos classificados e todos aqueles estratos que procuravam integrar-se na sociedade moderna. O local onde esta sociedade conhecia a sua maior vibração pode considerar-se os centros urbanos, hoje, como no passado, condicionados por fatores económicos. No passado, havia as “praças” como Cacheu, Buba e Bolama, que entraram em decadência quando as condições económicas se alteraram, obrigando ao deslocamento dos serviços públicos, eram centros urbanos que se manifestavam por duas povoações próximas, em permanente rivalidade: Canchungo desagregou a velha e nobre Cacheu; Bafatá eliminou a católica Geba, Bolama fez ruir para sempre o grande centro comercial que fora Buba, Cacine não pôde sobreviver à ascensão de Catió e Bissau feriu de morte a vila de grande e incontáveis sacrifícios, a antiga cidade de governadores, Bolama, Fausto Duarte dixit. Ora no limitar da luta armada esta tensão era igualmente evidente. No Gabu, Sonaco decaia a favor de Paunca e no Sul a exploração do arroz alagado provocara a emergência de centros urbanos como Cacine e Catió. Em jeito de síntese, a existência de dois grandes ciclos, o do arroz, que abrange todo o litoral até ao limite das marés, e a mancarra, em toda a Alta Guiné, foram determinantes, cada um em sua área, pelo nascimento ou decadência dos centros comerciais ou urbanos.

Braga Dias refere outros fatores como igualmente importantes para caraterizar a sociedade moderna: a tónica da cultura ocidental ou portuguesa em determinados meios serve de bom exemplo.

Apresentada a estrutura sociocultural da Guiné antes da luta armada, o investigador dirige a sua atenção para a atitude e comportamentos das populações face ao movimento subversivo. Lê-se a exposição e a estupefação é total: numa tese de licenciatura, sem subterfúgios, regista-se a dimensão que atingira a subversão em toda a Guiné, em todas as etnias, ou quase. E questiona-se como é que este trabalho permaneceu no pó das bibliotecas, indiferente à curiosidade dos investigadores, depois do 25 de Abril. Começando pelos Fulas, refere três tipos de comportamentos perante a subversão: franca colaboração com as autoridades e repúdio total ao movimento da luta armada; colaboração com as autoridades nos casos particulares de consumar vinganças e apatia absoluta pelo desenrolar da guerra. A atitude geral de repúdio foi a manifestação principal, os Fulas consideravam-se protegidos pelas autoridades que, sobretudo a partir de 1927, tinham talhado a repartição de poderes no denominado chão fula elegendo ou caucionando régulos de origem fula. Não foi por acaso que o 1º Congresso das Etnias da Guiné teve a finalidade de quebrar as graves tensões entre Fulas e Mandingas. Caraterizando o comportamento dos Mandingas, nota que houve aderentes desta etnia que apoiaram o PAIGC por razões muito claras: tinham aderido porque as terras em que viviam foram envolvidas pela subversão (caso do Oio e Fulacunda) ou acusados injustamente de praticar terrorismo por elementos de outras etnias que lhe invejavam os bens, tendo-se refugiado no Senegal e Gâmbia. O governo da Guiné invertera esta marcha nomeando régulos Mandingas em regulados de tradição ou considerados “chão mandinga”. Para o autor, esta atitude política estaria a reduzir hipóteses do PAIGC em expandir-se no Gabu, em Bafatá, em Farim, em Bissorã e Fulacunda.

(Continua)

O Dr. Eduardo da Costa Dias, do ISCTE, ofereceu-me esta primorosa perspetiva do monumento Ao Esforço da Raça, estou muito contente de a partilhar com a malta do blogue
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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12567: Notas de leitura (551): "Antologia da Terra Portuguesa - Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe, Macau e Timor", por Luís Forjaz Trigueiros (Mário Beja Santos)

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