sábado, 25 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12633: Bom ou mau tempo na bolanha (43): Todos tivemos um "Torres" (Tony Borié)

Quadragésimo terceiro episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.




Acedendo à sugestão do “comandante” Luís e, inspirando-me no texto do companheiro Carlos Vinhal, onde no meu comentário digo que me fez lembrar a mim, “A cidade ou vila que mais amei ou odiei no tempo da tropa”, pois cá vão algumas das minhas recordações, que fui buscar ao meu, que já considero “quase bom”, arquivo militar, que vou constituindo, com a ajuda de alguns familiares da nova geração que tinham em seu poder alguma informação da minha vida militar, que por ficou em casa de meus pais e que sabendo que nesta altura da minha vida, onde o tempo sempre sobra, uma das minhas “ocupações” é ir reconstituindo e partilhando com os meus companheiros combatentes. Claro que muitos de vocês me inspiram e ajudam com a vossa preciosa informação, que talvez sem quererem, fazem voltar à minha memória os meus tempos e lugares de passagem, quando usava aquela farda cinzenta, feita de pano grosso, e tinha que andar quase sempre com os botões apertados, quer fizesse frio ou calor!


De acordo com o que está escrito na minha caderneta militar, cuja cópia da folha partilho convosco, “assentei praça” no Regimento de Infantaria 10, em Aveiro, no Quartel de Sá, que era aquele próximo da estação do caminho de ferro. Passei uns meses de instrução, ouvindo bazófias de uns militares instrutores, um pouco arrogantes, dizendo que tínhamos que saber “matar outra pessoa, na perfeição” e que não podíamos ser mais aqueles filhos queridos da mãe e do pai, tínhamos que ser fortes e arrogantes, matar o inimigo, fuzilá-lo!
Neste quartel, cujas instalações eram umas antigas “cavalariças”, sem o mínimo de condições para alojar pessoas, mas que suportei bem, pois eram meses de verão e não estava muito longe de casa, mas não guardo boas recordações.



Tal como o Carlos diz, um dia meteram-nos num comboio especial, que quando passou por Aveiro, já vinha com muitos companheiros nas mesmas condições, com destino ao sul, onde depois de duas paragens, uma em Coimbra e outra creio que no Entroncamento, nos largou em Santa Apolónia em Lisboa.

Eu e mais uns tantos fomos para o Regimento de Artilharia de Costa, na Trafaria, donde guardo algumas boas e outras más, as boas eram o conforto dos “Primos de Lisboa”, de quem já vos falei por diversas vezes, e de um “sargento porreiro”, com o estômago que sobressaía, apertado com cinto muito largo ao fundo da barriga, que nos levava para debaixo de uns pinheiros, com vista para o rio Tejo, e nos dizia, depois de beber qualquer líquido que tirava de uma contenda que guardava dentro da camisa, que nos queria a todos educar de maneira a que a nossa bandeira era o nossa Pátria e a nossa mãe, e que nos devíamos sentir bem pensando assim, pois o nosso País era o nosso orgulho!
As más, eram as corridas, caminhadas e exercícios na beira do rio Tejo, orientadas por um militar que tinha regressado de uma comissão em Angola, e diziam que tinha sido campeão de maratona.

No final da instrução para operador cripto, onde me classifiquei em terceiro lugar, portanto aprendi tudo o que o “sargento porreiro” me explicava, nos intervalos da sua bebida e, como estão a ver fui um bom militar, sempre cumpridor, absorvendo toda a instrução. Devido à minha boa classificação, não fui logo mobilizado para o então Ultramar, como os meus companheiros de curso, que pouco tempo estiveram na então Metrópole, como tal atravessei o rio Tejo, onde se estava a construir uma ponte, que diziam que era a maior e mais linda da Europa, obra do Estado Novo, segundo as informações do meu “sargento porreiro”, fui outra vez de comboio, agora para a cidade de Évora, para o Quartel General, onde trabalhava umas horas por dia, passando o resto do tempo a caminhar em redor das muralhas, parando aqui e ali, subindo e descendo escadarias, por entre ruas estreitas, acabando quase sempre, numa “tasca” que existia ao lado de uma padaria, debaixo dos arcos, próximo da Praça do Geraldo, onde me deliciava a ouvir histórias de touros e touradas, de cavalos importantes, de homens já com idade, que não se separavam do copo com vinho, que sempre estava na sua frente.

Aqui tive um companheiro que era oriundo da aldeia de Susana, onde passava alguns fins de semana, caminhando pelos campos, comendo queijo de ovelha, carne de porco frita, parecia rojões, sopas de coentros com muito pão.
Évora era a minha cidade favorita, sem qualquer dúvida, apesar de estar longe da minha aldeia na Beira Litoral onde regressei, creio por duas vezes e, tal como o Carlos diz, tomei o comboio para o Barreiro, onde envio a foto dos bilhetes, que agora recuperados, guardo religiosamente entre outros e, se repararem bem, os preços marcados são diferentes, um é só meio bilhete, o tal com os descontos, que não me lembro, se viajei num comboio especial ou se, no outro caso não mostrei a identificação de militar, o que acho estranho não o ter feito, mas o preço é diferente.



No Barreiro tomava o barco para Lisboa, caminhava até à rotunda do aeroporto, esperando, junto de muitos companheiros, boleia para o norte, o que naquele tempo era muito fácil.
Também vos mostro outra relíquia, que é uma cópia de um bilhete para ir ao cinema em Évora. Como a “puta” da minha classificação era boa no curso de operador cripto, mandaram-me fazer serviço no Estado Maior do Exército, em Lisboa, mais propriamente em Santa Apolónia, onde trabalhava uma a duas horas por dia, em mensagem vindas das então províncias ultramarinas. Por ali fui ficando, tendo como alojamento o quartel do Depósito Geral de Adidos em Belém, onde era um “fórrobodó”, com entradas e saídas de militares diferentes quase todos os dias, onde eu arranjava sempre umas autorizações, das quais também reparto com vocês uma cópia, para fugir do quartel e ir para casa dos “Primos de Lisboa”.



Em Lisboa, tirando a paisagem da beira do rio Tejo, em frente à Trafaria, junto do Mosteiro dos Jerónimos ou Torre de Belém, onde passava horas e horas sentado nos bancos que por lá havia, lendo quase sempre um jornal desportivo, não gostava daquela confusão. Tenho um segredo passado lá no Mosteiro dos Jerónimos, no qual eu colaborei, pois toda a acção foi do Torres, que também era um companheiro do norte com quem andava sempre. Hoje tenho duas sensações dessa aventura, orgulho e um pouco de vergonha, pois tudo passou assim:
Era manhã, havia um casamento, nós estávamos vestidos à civil, com os sapatos muito bem engraxados, claro, jovens com um corpo onde sobressaíam alguns músculos de dentro de uma camisa de manga curta, e vai daí juntámo-nos aos convidados, assistimos a toda a cerimónia do casamento, o Torres ia falando com alguns deles e no final seguimos no carro de um casal. O Torres sempre dizendo coisas do noivo, pronunciando o seu nome, pois tinha-o ouvido durante a cerimónia, e lá fomos para uma quinta na região de Sintra, onde não faltava comida. Tal foi o descaramento do Torres, que a certa altura andou a dançar com a noiva!
Para completar, quando nos despedimos, ele pediu uma garrafa de champanhe para o caminho, e sem dar por nada, estávamos os dois à boleia para Lisboa, já um pouco tontos com a bebida, e com uma garrafa de champanhe nas mãos!


O Torres era um ano mais velho, acabou por ir para Angola, a troco de uma quantia em dinheiro, no lugar de um militar que estava mobilizado, cujos pais tinham alguns recursos financeiros. Escrevemo-nos por algum tempo, lembrando sempre esta aventura, acabando por ficar em Angola, no final da sua comissão, dizendo que Angola era o melhor país do mundo.

A seguir foi a minha mobilização para a então província da Guiné, onde fui fazer parte do Agrupamento 16, que foi organizado pelo Regimento de Infantaria, na Amadora, onde estive a aguardar embarque, fazendo “cabos de dia”, “cabos do rancho”, “cabos de limpeza à parada”, “cabos de guarda”, cabos de tudo, o que outros não queriam fazer, às vezes até era “sargento dia”, pois era tudo militares mobilizados que aguardavam embarque e desapareciam o mais que podiam do quartel, e do qual não tenho recordações, nem boas nem más.

Uns anos depois, já na vida civil, quando ia da minha aldeia do Vale do Ninho D’Águia até ao Santuário de Fátima, sempre caminhando, cumprindo uma promessa da mãe Joana, já lá perto, passando numa povoação que se chama Casais, entrei numa taberna e encontrei um companheiro que se dirigiu a mim e me deu um abraço. Disse-me que estava casado, que tinha um filho, um lindo menino, que fez questão que eu visse, e que me agradecia, pois tudo isto tinha acontecido porque eu lhe tinha “limpo” o número na formatura do recolher, dando-lhe “dispensas” ou facilitando-lhe a vida de qualquer outra maneira num desses dias, para ele se encontrar com a noiva que se tinha deslocado da sua aldeia e estava numa pensão na Amadora, fazendo-lhe companhia, enquanto esperava o seu embarque para Angola.

Tony Borie,
Janeiro de 2014
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12571: Bom ou mau tempo na bolanha (42): O navio Uíge (Tony Borié)

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