sábado, 1 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12662: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (15): Mafra, Tavira, Caldas, Santarém, Vendas Novas..., nos tornaram vítimas e agentes (Vasco Pires)

1. Mensagem do nosso camarada Vasco Pires (ex-Alf Mil Art.ª, CMDT do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72) com data de 19 de Janeiro de 2014:

Caríssimo Luís, Como costumas dizer: ...as palavras são como as cerejas...
Aí já fui falando demais, e me comprometi com algo, que para tanto não tenho "nem engenho nem arte".

Quarenta anos depois, tentar falar do "choque", - sim como se fosse elétrico - da disciplina de Mafra, sobre a nossa inocente geração, é muita ousadia.

Na já remota década de 60, éramos uma ilha desinformada, apesar de muitos de nós se julgarem seres politizados. Muitos de nós tínhamos acabado de sair das "asas" paternas, e de sua extensão que era o Colégio local.

Lembra que naqueles tempos não tinha uma Universidade em cada esquina, ainda não tínhamos sido inundados por Escolas com cursos que para nada serviam senão como fábricas de Professores que ficariam necessariamente desempregados, somente Coimbra, Porto e Lisboa tinham Universidade.

E lá íamos nós, em busca de independência e informação, alguns de nós criavam a ilusão de serem bem informados só porque escutavam a BBC, a Rádio Argel ou a Rádio Moscovo, alguns outros de famílias de "Viúvas da Outra Senhora", diga-se República Velha, mais por crença e interesse do que por qualquer motivo mais nobre, formavam o dito na altura "Reviralho", mais à esquerda outros militantes alguns profissionais.

A já longa guerra nas, à altura ditas, Províncias Ultramarinas, as notícias do Maio de 68 em França, e da reação da juventude da classe média Americana à guerra do Vietnam, somaram-se para ajudar a criar um clima de agitação nas Escolas Portuguesas; eu, na altura estava em Coimbra, a Diretoria Eleita da Associação Académica já tinha sido compulsoriamente afastada, o clima era de agitação.

A nossa agitação era fruto de um caldo cultural diferente dos países ditos democráticos que tinham sofrido profundas mudanças estruturais e superestruturais como consequência direta da Segunda Grande Guerra; lembra que o Senhor António tinha livrado nossos pais desse horror! Muitos de nós se julgavam em processo de ruptura com ordem estabelecida, alguns libertários outros mais comedidos, quase todos "freudianamente" prontos para metafóricamente matar o Pai lá de Santa Comba.

Mas éramos todos muito inocentes, aí com facilidade o sistema nos enquadrava com um Tenente e dois Cabos Milicianos e às vezes, poucas, um Sargento.

Poucos dias depois receosos de perder o fim de semana, íamos-nos tornando instrumentos de um sistema que durante tantos anos (63 a 74), enquadrou uma geração de pouca sorte.


"Máfrica" - Vista aérea do Palácio de Mafra - Com a devida vénia a Google Earth


O processo começava aí: "Máfrica", Vendas Novas, Tavira, Caldas da Rainha...
E lá íamos nós, mais ou menos convencidos e eficientes agentes, enquadrar outros mais, pelos quartéis de Portugal e de África. Mafra e Tavira, eram o início de um processo de inserção no sistema de muitos milhares, que a propaganda chegou a fazer pensar, que estavam "dilatando a Fé e o Império". 

Mafra, Tavira, Caldas, Santarém, Vendas Novas..., nos tornaram vítimas e agentes.
Estão abertas as "hostilidades"...  Quanto aos números, "passo a bola" ao Camarada José Martins.

Forte abraço a todos
Vasco Pires
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12649: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (14): As localidades por onde passei, sofri e amei - Conclusão (Veríssimo Ferreira)

2 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro camarada Vasco Pires

Ora bem, esta tua 'reprise' sobre a questão de Mafra e a sua 'fábrica de oficiais milicianos' tem alguns pontos interessantes.

Estou de acordo com o aspecto em que dizes que o 'sistema' facilmente enquadrava o pessoal. A acção psicológica exercida sobre os jovens instruendos destinava-se a criar o sentido da contenção. E aí, já ganhavam! Perante as flagrantes situações de injustiça e até de aberrações, o pessoal tinha a possibilidade de se 'rebelar' e aí perdia porque apanhava uma 'porrada' Na realidade não perdia, porque teria mostrado resistência ao poder, mas ficava com a sensação de 'perda' pois lhe seria retirado qualquer coisa: um fim de semana, uns 'reforços' no serviço, uma acção disciplinar mais severa. Ao 'conter-se' perdia também porque se ia auto-censurando. Contudo foram crescendo as raivas e animosidades e isso 'eles' não perceberam....

Só não concordo quando dizes que "eram o início de um processo de inserção no sistema de muitos milhares, que a propaganda chegou a fazer pensar, que estavam "dilatando a Fé e o Império"".... e não concordo porque esse "chegaram a fazer pensar" está escrito 'num tempo passado' mas, se reparares bem, está com muita actualidade, porque são muitos os que 'em busca da juventude passada' vivem esse revivalismo e é bem visível que tais conceitos ficaram doentiamente inculcados.

Quanto ao resto... tudo bem!

Abraço
Hélder S.

Joaquim Luís Fernandes disse...

Caros Camarigos:

Gostei desta análise do Vasco Pires. Breve e elementar de um processo que bem caraterizou. Acertaste no alvo:"Mafra, Tavira, Caldas, Vendas Novas...nos tornaram vítimas e agentes".
Eu acrescento: não entravamos nem saíamos todos iguais; alguns entravam vítimas e saiam mais vítimas que agentes, outros entravam agentes e saiam mais agentes que vítimas. Era uma linha de produção em série, utilizando as ferramentas da coação e da repressão, mas o controlo sobre o produto final (leia-se consciência pessoal) era insuficiente.
Pegando no comentário do Helder Sousa, ouso questionar-me: não serão os revivalistas de hoje aqueles últimos agentes, que se tornaram os vira-casacas em 26 de abril de 74?

Abraços,
JLFernandes