sábado, 1 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12786: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (19): Tavira, o CISMI, a semana de campo, a malta das transmissões a servir de "inimigo" e a cantilena dos instruendos: "Ó Meninas de Tavira, / que vai ser de vós agora, / os solteiros não vos querem, / os casados têm mulher, /os milicianos vão embora"... (José Martins, ex-fur mil, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70)


1. Mensagem do nosso Camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5 - "Gatos Pretos", Canjadude, 1968/70), enviada em 28 de Fevereiro.

O FIM DO PRINCIPIO




No dia 26 de Dezembro de 1967, já depois de ter terminado a especialidade de operador de teleimpressor, passei à situação de licença registada, aguardando a convocação para a frequência do curso de sargentos [, CSM]..

No dia 3 do mês seguinte, cerca das duas da tarde, na repartição de assuntos militares da câmara municipal, recebi a ordem de marcha para CISMI, já quando um funcionário daqueles serviços se preparava para a ir entregar a minha casa, ou afixá-la à porta, caso não houvesse quem a recebesse.

Aguardava esta colocação a todo o momento mas tentava imaginar que a convocatória não viesse tão breve, na tentativa vã de travar a corrida do tempo.

Estava notificado de que me tinha de apresentar naquele mesmo dia (!), até às dezassete horas, em Tavira, no Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria [CISMI].




Tavira, Quartel da Atalaia > 2014 > Edifício onde esteve instalado o CISMI, até ser desactivado em 31/12/1975

© Luís Graça (2014)

Iniciei a viagem na estação de Devesas-Gaia no comboio que partiu, rumo ao sul, às sete horas da tarde, chegando perto da meia-noite à estação de Santa Apolónia, em Lisboa. O jantar (?) no Restaurante Piquenique, do Rossio, a procura de um quarto para descansar um pouco e, de novo, primeiro de barco na estação Sul-Sueste e. a partir do Barreiro de comboio, rumo ao Algarve, apresentando-me no quartel perto das cinco da tarde.

Apesar de uma paragem de cerca de seis horas em Lisbos, chegava Tavira vinte e duas horas depois, Na realidade, Portugal não era um país pequeno.



Seriam cerca de três meses que eu iria permanece em Tavira, o tempo previsto para a especialidade de Transmissões de Infantaria, dividindo o tempo entre o quartel, o campo da Atalaia e o quarto alugado em conjunto com o Branco e o Bernardo em casa da D. Rosa, onde a filha, a D. Cesaltina, senhora dos seus cinquenta anos, nos presenteava com café quente nas noites em que tínhamos instrução nocturna.

Aprendi uma nova linguagem – o alfabeto fonético – que seria a linguagem, não só em campanha, mas também ainda uso, agora na vida civil, quando preciso de soletrar palavras.

Aqui, eu e os outros elementos da especialidade, aprendemos a utilizar os rádios, já nessa altura obsoletos, mas que, nos momentos de aperto quando a tropa se encontrava no mato, em operação ou em quadrícula, eram a única via que nos ligava ao mundo, isto é, nos ligava com as unidades terrestres ou aéreas, que nos podiam prestar apoio.

Aqui aprendemos a trabalhar com sistemas de cifra, que nos permitiu codificar e descodificar as mensagens, muitas delas que nos davam as noticias mais preocupantes, ou para transmitirem para os escalões superiores o resultado das operações, como a noticia, que eu próprio codifiquei, do afogamento no Rio Corubal, junto ao Cheche, na Guiné, de quarenta e sete militares, quando, em 6 Fevereiro de 1969 se processou a retirada de todas as tropas estacionadas em Madina do Boé.

Aqui, durante a semana de campo, em plena serra algarvia, tivemos de servir como IN (inimigo) às companhias de atiradores que, caso nos capturassem, nos tratariam como “prisioneiros de guerra”, obrigando-nos a transportar o material mais pesado que esses grupos estivessem a utilizar.

Foi durante esses exercícios que, lançados no monte, flagelando os pelotões de atiradores e fugindo para que não nos capturassem, que eu e o meu grupo encontramos refúgio no cimo dum monte, dentro de uma casa, fechando a porta por dentro.

Ouvimos a “tropa” a chegar e a passar em revista todas as habitações.


Como a dependência não tinha janelas, um ficou junto à porta tentando ouvir as ordens dadas pelo comandante, afim de adivinhar as movimentações no exterior.

Alguém da patrulha tentou abrir a porta do local onde estávamos escondidos e, verificando que a porta se encontrava fechada, chamou a “nossa protectora”, que se desculpou, junto do Capitão, dizendo que o marido fora à vila e levara a chave no bolso.

Acabava de entrar no jogo do “inimigo”, do qual não podia sair defraudada.

O disfarce não podia cair por terra. Havia que encontrar solução para duas situações que surgiram: cheirava a queimado e ouviu-se o choro de uma criança.

Já havia tarefas para todos. Um estava de ouvido à escuta, junto da porta, seguindo as movimentações no exterior; outro foi para a lareira evitar que a sopa que estava ao lume, numa panela de ferro de três pés, se queimasse; o outro ficou com a missão de embalar a criança, que adormeceu encostada ao peito de um de nós, com a G3 em bandoleira.

Algum tempo depois, com toques suaves na porta, fomos avisados de que a “tropa” partira. Havia que partir também, e fazer silêncio sobre o esquema utilizado. No curso seguinte poderiam haver alguém com necessidade de usar o mesmo esquema ou outro semelhante, e não podiam ser descobertos.

Mais tarde, e em campo bastante aberto para evitar qualquer surpresa, almoçámos a ração de combate que nos tinham distribuído, mas o cheiro que eu sentia não era o das salsichas aquecidas na própria lata – era o cheiro da sopa de couves e feijão, que quase se tinha queimado.


O bebé de então, hoje já homem de mais de trinta anos, possivelmente nunca ouviu falar das suas “amas” ocasionais daquele dia de fins de Março.




"Óh i óh ai, óh Meninas de Tavira,

Óh i óh ai, que vai ser de vós agora,
Óh i óh ai, os solteiros não vos querem,
Os casados têm mulher,
Os milicianos vão embora …”


Era cantando esta melodia, transmitida de curso para curso, que os instruendos atravessavam Tavira, tentando espairecer o espírito, pois sabiam que dentro em breve, ao terminarem a especialidade e ao deixarem a vila, estariam prontos para serem mobilizados, iniciar a IAO – Instrução de Aperfeiçoamento Operacional – e partirem para qualquer uma das frentes de combate.

José Martins, extraído de “Refrega”, livro inédito, 6 de julho de 2000


[Imagens acima: Conjunto escutório (o miliciano  e a jovem tavirense), junto à estação ferroviária de Tavira, da autoria do belga Francis Tondeur. Fotos: Luís Graça, 2014]

____________


Nota de M.R.:


Vd. último poste desta série em:

1 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12783: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (18): Tavira, o CISMI e o meu "santo sacrifício da missa dominical"... Fazia parte do coro [da Igreja de São Francisco] para ter direito a uns "desenfianços" (Henrique Cerqueira, ex-fur mil, 3.ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72, Biambe e Bissorã, 1972/74)

8 comentários:

Luís Graça disse...

Zé:


Uma história deliciosa, cheia de humanidade e de ironia... Estiveste no CISMI um ano e tal antes de mim... Já não me lembrava dessa quadra, que acho uma maravilha...

"Ó Meninas de Tavira,
que vai ser de vós agora,
os solteiros não vos querem,
os casados têm mulher,
os milicianos vão embora"...

Apesar da "crueldadade" dos versos, "elas" erigiram-te um monumento, lá na estação da CP...

Milicianos ingratos!!!

MANUEL MAIA disse...

OLÁ ZÉ MARTINS,


A CANTILENA EXISTIA,
A INFORMAÇÃO CIRCULAVA,
PRECAUÇÃO NÃO IMPEDIA,
CASAMENTO NA PARADA...

NAQUELE TEMPO,ERA ASSIM,
QUARTO ALUGADO CÁ FORA,
OU É P`RA TI OU P`RA MIM,
C`AMANHÃ ME VOU EMBORA...

PENSAVA O INSTRUENDO,
VOU GOZAR TEMPO DE AGORA...
E INCAUTO IA COMENDO
O QUE OUTROS DEITARAM FORA...

P´RA ALGUNS TAVIRA FOI MAU,
P`RA OUTROS BONITA LUZ,
POIS SE PUSERAM-SE A PAU,
MESMO NOS BAILES DA LUZ ...

VÁRIAS RECRUTAS TIVERAM,
ALGUMAS DESSAS SABIDAS
QUE OS LORPAS LÁ COMERAM
E ENTRARAM NAS SUAS VIDAS...







Cesar Dias disse...

José Martins
Agora vejo que o pessoal de transmissões já praticava na instrução o que na Guiné puseram em prática, nós sempre que saíamos, o pessoal do rádio tentava logo encontrar quem lhes carregasse com o rádio, qualquer trabalhador da bolanha era considerado inimigo para carregar com o rádio. Enfim, mais um Tavirense testemunhando aquele periodo.
Um abraço José Martins
César Dias

Luís Graça disse...

Ó Zé, não é quadra, é quintilha (cinco versos)... Já agora, só falta a música... E como reagiam os "machos" da terra ? Terra de mouros...

José Marcelino Martins disse...

Luis

Machos, não havia, ou melhor, havia:

Crianças e adolescentes em idade escolar;
Homens, só os mais idosos.
Os que podiam iam para Lisboa ou outro lado.
Negócios: Restauração e "turismo de habitação" (aluguer de quartos).

Henrique Cerqueira disse...

Camarada e conterrâneo José Martins.
É mais uma estória tão comum a todos nós. Infelizmente quando passei pela serra do Caldeirão na semana de campo não tive a tua sorte com a população durante uma dessas simulações operacionais , pois que até para encher o cantil de água nos quebraram dinheiro. A nossa ração de combate nesse dia foi composta de um quarto de casqueiro, uma morcela de sangue com muita gordura, uma peça de fruta e tudo enfiado num saquito de plástico. Qualquer dos modos aquela papinha "morreu" na mesmo. O pior mesmo era de noite com a porcaria das praxes. Mas lembro-me muito bem da cantoria quando regressava-mos da semana de campo e a alegria que sentia-mos por estarmos tão perto do final daquele Inferno.
Um abraço
Henrique Cerqueira

Hélder Valério disse...

Caro José Martins

Gostei deste teu relato.
Das actividades das transmissões, do que aprendeste e ainda hoje utilizas, do que tiveste que cifrar.
Gostei particularmente da solidariedade e cumplicidade da população onde tu e os teus 'camaradas guerrilheiros' foram protegidos, tal quais peixes na água, das tropas governamentais. E gostei de saber da prudência em aguentar o segredo, protegendo assim futuras acções.

Foram episódios da vida militar. Alguns revelam a interacção com a população e a terra.
Mas, e as lembranças dela, da terra? São boas? Ainda perduram?

Abraço
Hélder S.

João disse...

Aquele estender de fios por entre as copas das alfarrobeiras, em Tavira, para treinar a fonia nos rádios, era qualquer coisa de entusiasmante nos tempos idos de 1967, no tempo dos famosos Robles e Trotil.

Afonso Sousa