sábado, 8 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12811: Manuscrito(s) (Luís Graça) (26): As intermitências do amor ou uma canção ligeiramente desesperada, ao cair do pano do Dia Internacional da Mulher, para todas as nossas amigas de Alex, no país sem retorno...

As intermitências do amor

por Luís Graça

Na bicha das cinco da tarde,
no pára arranca do trabalho casa trabalho,
pára não pára,
arranca não arranca, empanca,
a vida, 

a vida tão cara, 
tão avara,
tão complicada às vezes,
à tarde, 

uma mulher só na cidade,
formiguinha no meio do grande formigueiro humano,
ouves o sax do velho Luís Morais,
evocando as cores das impossíveis ilhas tropicais,
às cinco da tarde, 
na RDP África,
Lura, essa voz magnífica,
amor ca tem
o amor que não há,
o amor que não chega, 
nem por e-mail,
toupeira, 

nas autoestradas das linhas de montagem
onde pára arranca empanca a vida,
em viagem,
ah! que pena, 
já não se escrevem mais cartas de amor,
diz o locutor de serviço,
com selo e lacre, 

envelope fechado 
e carimbo do correio,
entregue pelo moleque lá no musseque,
para certificar a data-hora dos nossos desencontros,
aqui e agora, 
ou lá no Puto, Portugal,
a propósito de alguém que se foi embora
e de quem não fizeste o luto,
o namorado que irá morrer na guerra colonial.

Tiram-te a pele, 

o tutano,
e, de permeio, o amor, 
o doce engano,
e não há coração que aguente
o pára arranca da bicha do trabalho casa trabalho,
a gigantesca centopeia de homens e mulheres sós na cidade,
na segunda circular, 

no IC 19,
na mesa a toalha barata, 
aos quadrados,
a sopa fria, 
os fugazes amores de verão,
os suores da meia estação,
veste, despe o robe,
e no outono a depressão,
e se há inferno é no inverno,
a massa fria polar

da solidão,
a caixa do correio cheia
por causa dessa coisa do spam,
desesperando por esperar
um toque de telemóvel, 
um msn, 
um sinal,
a campaínha,
a cama, 
os lençóis desfeitos,
à tarde, demasiado tarde para amar
no Monte Abraão,
uma mulher no pára arranca empanca da vida,
nos anéis circulares da cidade sitiada,

a cidade anaconda,
a paixão de quarentena
aos cinquentas e tais,
o corpo exangue, 

o desejo, surfando na onda,
a doença do amor, letal,
proibido amar,
diz o semáforo, vermelho,
e não é amor, é dor,
é saudade, diz a morna,
que o B.Leza faria cem anos
se ele ainda hoje fosse vivo,
lá no Mindelo piquinino,
às cinco da tarde a casa vazia,
os filhos que partiram
mas deixaram cá as fotos, emolduradas,
de quando eram bebés,

lindos de morrer,
ternurentos,
e eram filhos de sua mãe,
ah! as intermitências da liberdade vigiada,
o guarda-mor da saúde, totalitário,
mantendo tenso o cordão sanitário
que estrangula a vida,
a pele esticada, 
o tutano chupado,
a merda da vida, fodida,
que o aumento esperança média de vida te traz,
sobre os carris dos quilómetros 

do teu têgêvê sem futuro,
as contas por pagar,
a casa hipotecada à banca,

os anos que faltam para a reforma,
o risco de cancro da mama,
a carreira amorosa congelada como a feijoada,
o multibanco do coração cor de rosa fora de serviço,
os cheques que vencem 
antes de a paixão esfriar e morrer,
ao virar da última rua do quarteirão,
no pára arranca empanca
da casa trabalho casa,
e o Ribeiro Sanches, 
físico-mor do reino no exílio,
a dizer-te que não há cura para os males de amor
e, se a paixão é doença, 
não sei o que fazes aqui,
parada na maldita picada,

minada,
que te leva do trabalho para casa
e da casa para o trabalho,

e um dia para a casa mortuária,
o ninho da cegonha abandonado,

a casa vazia,
a sopa fria no prato,
o trabalho sem pica,
a vida sem sal, 

sem o teu chabéu de comer e chorar por mais,
stress, the kiss of death 
or spice of life,
cada meco a falar sozinho
para o boneco,
no bar do fast food,
emparedado,
no comboio do Cacém,
no autocarro da Carris,
na CRIL, na CREL
,
no carro comprado a prestações,
o último amante, romântico ma non troppo,

morto em Israel,
os amigos de Alex cada um para seu canto,
e o baile, combinado, dos anos sessenta
que ficou para as calendas gregas,
quando a crise acabar,
as flores no cabelo,
o Make Love Not War,

o All You Need is Love,
Vietname nunca mais,
black power
blá-blá…
em plena guerra fria a quente,
o terror do nuclear ao sol poente.

E a tua velha senhora no fim da estação da vida,
em casa à tua espera,

o Alzheimer devastador,
o avião  que não mais faz escala na tua África perdida,

na tua adolescência de Luanda e as suas ilhas, 
a restinga do Mussulo,
o meu tarrafe do Geba,
as balas tracejantes,
o teu Huambo sem meninos à volta da fogueira,
o comboio para Benguela metralhado,
os erros meus,
as doces ilusões,
terríveis as deceções,
as tuas negras emoções,
os amanhãs que não cantam mais,
o mundo que a gente queria mudar de repente,
assim com um toque de varinha mágica,
a crise de valores,
a profusão de cores,

o pilão dos teus cheiros e sabores,
e a muamba que já não é mesma muamba,
nem muito menos o óleo de palma,

a cachupa do nosso contentamento,
aos fins de semana,
o muzonguê frio no fim da rebita,
de manhã ao acordar, 
para mais um dia, sem pica,
para afivelar a máscara 
e desempenhar os papéis
que os outros esperam de nós,
l’enfer, c’est les autres,

o inferno são os outros...

Não te adianta, amiga,  chorar 
sobre o leite de coco derramado,
ou dizer que fizeste tudo errado,
o amor da tua vida, 

o curso, 
o emprego,
os filhos, 
o país de retorno que não era o teu,
o divórcio,
o século ao dobrar do milénio,
a liberdade avençada,
porque é esta é a tua história, 
mesmo indevida,
este é o teu tempo e o teu lugar,
e até pode ter um final feliz,
a tua telenovela das cinco
no pára arranca empanca da vida,
só depende da autora do guião
e do tempo de reflexão que antecede a ação,
deixa o carro na garagem, 
compra um passe social,
vai a pé ou de metro,
mas não trepes pelas paredes,
atira a matar, 

não de Kalash mas de ternura,
direitinho ao coração
que diz que não aguenta mais uma paixão 
aos cinquenta e tal,
querida amiga, afinal,
fomos feitos para amar 
e desamar, 
esperar e desesperar.
viver e morrer,
e não há volta a dar,
se há uma antídoto para a morte,
é o amor, 
escrevia o Saramago, o mal amado,
e eu acho que ele tinha razão,
mas o meu livro de culinária existencial
diz para lhe acrescentares
uma pitada de humor quê bê,
ao amor...
Se conseguires rir-te do amor, 
estás salva.

Carpe diem, amiga,
compra um bom vinho tinto, 
encorpado, 
do Douro ou do Alto Alentejo,
e põe um cêdê,
ouve a tua Mariza Monte
ou grita à janela do Monte Abraão
Amor I Love You,
porque gritar faz bem,
gritar à janela a plenos pulmões
liberta a tua energia negativa,
esses miasmas, esses iões,
manda à merda esses cabrões.
e depois senta-te,
no sofá,
desliga a droga da televisão
e põe a máscara da tua serenidade,
respira fundo,
dá tempo de antena a ti própria,

lambe as tuas próprias feridas,
que a vida não se delega, 
nem se congela,
nem se põe entre parênteses.
Ou então pinta um grafito 
nas muralhas da cidade.
Vi um há dias:
Amor ? Amor ? … Amor és tu!
Só podia ser de um adolescente,
apaixonado, doente, 
como tu,
no teu caso, eu sugeria 
uma pequena emenda, subtil:
Amor ? Amor ?... Amor sou eu!


E ninguém morre, louco, 
de amores intermitentes,
no píncaro do verão da nossa raiva, 
aos quarenta graus centígrados,
com as febres palúdicas,
com as velhas e malditas sezões da África nossa,
no pára arranca empanca do trabalho para casa
e da casa para o trabalho:
dizem que a vida é bela
e que, afinal,
somos nós... 
que damos cabo dela.

PS – Querida amiga de Alex, 
minha querida amiga,
no país sem retorno,
não sabia o que te dizer 
com princípio, meio e fim,
mas se isto fosse um poema, 
era recado,
uma canção ligeiramente desesperada,
a deixar no voice mail,
e seria uma coisa assim,
sem palavras a mais:
vais ver que a dor passa,
que, com esse  coração, ainda aguentas,
e que já não é pecado,
o amor aos cinquentas... 

e tais.

Alfragide, 15/12/2015. Revisto, 8/3/2014

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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12804: Manuscrito(s) (Luís Graça) (25): O Pepito que eu conheci... em 16/2/2006 e que, no fim da conversa de 1 hora, me fez um pedido algo insólito: um obus 14 para o Núcleo Museológico Memória de Guiledje...

9 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Luís

O final acaba por dar o toque de esperança, de alento, de sentido.

Porque, se se for a dar atenção a todo o desencanto que está 'plasmado' (como agora se diz) ao longo de todo o poema, e se se fixasse só por aí, então só restava um sabor amargo na boca.
Não é que ele 'não esteja lá', mas permanece a esperança....

Abraço
Hélder S.

José Botelho Colaço disse...

Que pena esta magia que o Luís transporta para o papel não ser lida por mais pessoas, mas ela vai ficar e outros e outras não vão de certeza deixar de ler.
Gostei obrigado Luís.

Abraço
Colaço.

Anónimo disse...

Bom dia Luís. Bom domingo.
Obrigado por mais este poema.
Inspira o IC 19 e as intermináveis filas no trânsito? A esperança de vida e as condições atuais não dão grande fervor. Todavia esperemos que os ciclos económicos de Juglar e Kondatrief (não sei se está correta a grafia!), ou seja a recessão e o desenvolvimento, cujos períodos são respetivamente longos e curtos, a fazer fé no discurso do senhor Boliqueime,o do sofrimento, vai durar até 2025!
Se vivermos até lá, conto com a leitura de outros poemas (teus e não só) mas que inspirados aqui em terras interiores e sem "IC´s".
Um abraço do "alvasco".

Torcato Mendonca disse...

SABE BEM PÁ SABE BEM NESTE DOMINGO DE PERGUIÇA COM O CÉU DE SOL KÁ TEM E QUE ONTEM NOS AQUECIA - SABE BEM LER E IR E VIR ...IR E VIR E ESTAR EM LISBOA QUE JÁ FOI CAPITAL DE IMPÉRIO NA CONFUSÃO DA VIDA DA CRISE DO AFASTAMENTO DA CONFUSÃO DO IC 19 A CAMINHO OU EM REGRESSO DE TRABALHO...E DE REPENTE ESTAR EM ÁFRICA QUE UM DIA FOI MINHA BREVE E FUGASMENTE MAS MAIS EM TORMRNTO EM NECESSIDADE DE ESQUECIMENTO QUE NUNCA DESAPARECE
UM FULANO VAI LENDO ROLANDO O RATO E SALTITANDO SALTITANDO BEBERICANDO O NESPRESSO DE FIM DA MANHÃ E ESTÁ NA PERIFERIA DA CIDADE MAIOR OU EM ÁFRICA E LOGO CAI EM MANSAMBO PÁ ...ÁFRICA É MANSAMDO E 45 ANOS ATRÁS 45 QUE POR ESTA VIDA ROLARAM ESTAVA EM 9 DE MARÇO LÁ EM MANSAMBO E NA MADRUGADA PARTIA PARA O FIOFIOLI ONDE NINGUEM TINHA ENTRADO E OS FANTASMAS APARECEM SÓ EM FLASH E O RATO TRÁS MAIS FRASES DE LUANDA DE LISBOA DOS QUERIDOS ANOS 60...JOVEM ALEGRE DE JUVENTUDE INTERROMPIDA CORTADA ACABADA E NO FIM NADA PÁ BARDAMERDA QUE MERDA E UM TIPO VAI LENDO E ACABA E OU VOLTA ACIMA OU FICA PRESO EM LETRAS NAS TUAS LETRAS ESCRITAS EM FUNDO FUMADO EM RECORDAÇÃO DE VAI E VEM OU VEM AO PRESENTE ONDE VÊ TANTA GENTE ROUBADA POR MELIANTES DE BELA VIDA....... TECLA E ACABA PORQUE NÃO SABE O QUE TECLOU E MANDA UM ABRAÇÃO E UM BEM HAJAS PÁ NESTE DOMINGO QUE SOL KÁ TEM

Ab,T.

Hélder Valério disse...

Volto!

Para dar um grande e forte abraço ao Torcato, se me permitirem.

Amigo, tenta, mas tenta mesmo, ver que para além das nuvens que hoje, pelo menos de manhã, toldam o céu, está lá o Sol.

Sei, tu tens dito, que todo o passado 'lá', "lá longe, onde o sol castiga mais", é penoso de recordar. Que quando te 'deixas ir' nesses pensamentos te inquietas, que sentes o peito a arder mas tenta, tenta mesmo, 'ganhar distância' faz de conta que é um filme que passa na TV, que é ficção, que há 'duplos', que são efeitos especiais.

E depois, no poema do Luís, tal como sublinhei, há uma luzinha de esperança no final.... Haverá? Compete-nos fazer por isso!

Abraço
Hélder S.

JD disse...

Beleza!
O poema é sápido, como são, de costume, os versos luisianos. Estes estão impregnados de vidas, de ritmos, de calores (e de frios), de saudades e de pesadelos, de esperanças e projectos, de esperiências e de saberes, mas também de roteiros para o GPS do amor. Pois que amemos sempre e parea sempre.
Abrassos
JD

P.S. Não! não me enganei. Apenas experimento a antecipação ao novo acordo orto... qualquer coisa.

Anónimo disse...

Caminhos levam-nos a locais distantes.
Pior,a perspectivas cada vez mais distanciadas.
Um "exigrado" de quatro décadas encontra nos poemas de Luís Graca um odor suave, nostálgico-agressivo,a alecrim.
Alecrim que todos um dia aí respirámos e que nunca vamos esquecer.
Um abraco do José Belo.

Anónimo disse...

No meu comentário onde está "alecrim" deveria estar "alecrim regado a lágrimas".
Idades!

Luís Graça disse...

José, nunca deixamos de pertencer aos mundos donde viemos ou donde proviemos. Viemos das estrelas e às estrelas pertencemos. Abraço com saudade. Luis