sexta-feira, 20 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13313: Notas de leitura (603): "Prisão de África", o terror na Guiné-Conacri depois da operação Mar Verde, por Jean-Paul Alata (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Dezembro de 2013:

Queridos amigos,
Pouca atenção é dada ao que se passou na Guiné-Conacri depois da operação Mar Verde.
O ditador Sékou Touré apercebeu-se que naquela invasão a população se revelara amorfa, ninguém mexeu uma palha, nem mesmo os guerrilheiros do PAIGC, a resistência foi dada por cubanos e alguma tropa fiel ao presidente. A reação foi brutal, as prisões encheram-se de suspeitos em tenebrosos complôs, pura maquinação dos delírios de Sékou Touré.
É nesse contexto que “Prisão de África” é de leitura obrigatória, é um clássico do terror mais profundo e mais hediondo, todas as ditaduras podem ser aferidas pelas sevícias e mentiras montadas nestas confissões arrancadas com choques elétricos e esmagamento de membros.

Um abraço do
Mário


O terror na Guiné-Conacri depois da operação Mar Verde

Beja Santos

É curioso como quase todos aqueles que escrevem a favor ou contra os acontecimentos da operação Mar Verde obliterem as consequências que teve a operação em Conacri na vida interna daquele país. Sumariamente, foram libertados os prisioneiros de guerra portugueses, afundadas lanchas pertencentes a duas marinhas, lançou-se o pânico entre as forças militarizadas e as milícias da Guiné Conacri, falharam vários objetivos, entre eles a colocação no poder dos oposicionistas de Sékou Touré. Todo o efetivo do pelotão de Comandos Africanos, tendo à frente o tenente Januário, que dera ordem de deserção, foi fuzilado. Morreram a combater ou foram fuzilados todos os oposicionistas da Guiné-Conacri recrutados por toda a parte graças às diligências de Alpoim Calvão. A política externa portuguesa sofreu um dos maiores abalos possíveis, foi um sem retorno da argumentação anticolonial, a imagem do governo de Lisboa nunca mais recuperou. Mas o que se silencia foi a repressão feroz que o ditador Sékou Touré pôs em movimento, irão assistir-se a atos hediondos, interrogatórios degradantes, as prisões políticas irão encher-se até dos amigos íntimos do ditador. Para se conhecer a extensão desses atos de barbaridade e insânia, é indispensável ler “Prisão de África”, por Jean-Paul Alata, Edição Livros do Brasil, 1976.

No prefácio, o escritor Jean Lacouture procura enquadrar a repressão e as monstruosidades de Sékou Touré no contexto mais vasto do espezinhamento dos direitos humanos em África. O Tchade, a República Popular do Congo, os Camarões, a República da África Central, o Zaire, a Guiné Equatorial, são exemplos de cadeias cheias de oponentes, prisões arbitrárias, condenações à morte sem culpa formada, todos estes governos torcionários são aparentados na paródia da Justiça. Fabrica-se uma intentona é já estão previamente decididas condenações à morte. Jean-Paul Alata era um alto responsável político da Guiné-Conacri. A pretexto da operação Mar Verde, passou 54 meses num campo concentracionário, Boiro. Foi acusado de ser cúmplice da CIA, da rede SS-Nazi e das forças da oposição internas. Em Boiro, foi torturado, viveu em condições sub-humanas, misturado com operários, agricultores, altos funcionários, artesãos, ministros, até membros da esquerda europeia. Alata era uma figura singular: branco, de origem corsa, quis ser africano porque tinha nascido em África, apoiou entusiasticamente a Guiné independente, casou com uma guineense. Foram-lhe conferidas as mais altas responsabilidades, enquanto diretor-geral dos assuntos económicos e financeiros da Presidência, tutelava vários ministérios, era uma das raríssimas pessoas que podia telefonar a qualquer hora do dia ou da noite a Sékou Touré.

Os complôs quase sempre forjados começaram logo em 1960, mais o mais repressivo foi desencadeado pela invasão de 22 de novembro de 1970. Nessa mesma noite, Alata pôs-se à frente de efetivos da Guiné-Conacri para reagir à invasão. A população não reagiu à agressão, o ditador apercebeu-se da solidão do seu regime. Ainda tentou fazer imaginar que se tratava de uma agressão puramente do exterior, mas sabia-se que centenas de oposicionistas tinham colaborado com os portugueses, então maquinou um complô em que falsos fiéis do regime estavam ao serviço de potências colonialistas, daí a vaga de prisões, logo 92 condenações à morte, 67 condenações a trabalhos forçados em regime de prisão perpétua, etc.

Entrevistado em 1977 pela Radio-France International, Alata faz uma reflexão sobre a invasão de 1970. Os cubanos tinham tido um comportamento valoroso ao defender a estação da rádio, segundo ele foram os cubanos que impediram os invasores de ocupar a estação emissora. Do PAIGC ninguém se mexeu, diz mesmo que foram desarmados como meninos de coro. As tropas portuguesas, diz ele, libertaram os prisioneiros no campo do PAIGC de Ratoma e reembarcaram tranquilamente, os guerrilheiros do PAIGC não deram qualquer resistência.

E começou a vaga de detenções, criara-se uma comissão de inquérito conduzida por Ismaël Touré, familiar do ditador. “Prisão de África” é um livro arrebatador, prende o leitor logo na primeira página: “13 de janeiro de 1971. Não me mexo. Massa inerte espalhada no cimento gretado da cela 23, há quase dois dias que não movo o mínimo membro. Há dois dias que não como nem bebo. O meu espírito esvaziou-se de toda a substância num instante em que o guarda fez soar a pesada alavanca de ferro. A noite é total. A cela está tão escura como a fossa que aguarda os supliciados. Perco-me no passado remoto”. E rememora a sua infância. Seguem-se os interrogatórios. Ismaël Touré lança a acusação: “Construiu a sua vida no nosso país com base num embuste. Afirma haver-se demitido da administração francesa para ficar na Guiné independente e servi-la. Levou a hipocrisia ao extremo de se converter espetacularmente ao islamismo e escolher uma mulher guineense. Conseguiu iludir o nosso presidente por uns tempos. Quer reabilitar-se revelando a verdade a seu respeito e dos seus cúmplices?”. Alata nega as acusações, volta para o cárcere, é assaltado pela felicidade que julga perdida: “Uma pessoa julga reunir um capital incomensurável de recordações felizes. Convence-se de que poderá viver delas, de que, nas horas de amargura, lhe agradará reavivar tanto amor e ternura. Ora, cada vez que revolve essas recordações felizes, é como se lhe dilacerasse o coração”. Descreve as conversas ciciadas de cela para cela, vai sabendo de mais detenções e condenações à morte. Sujeito a tortura, fisicamente despedaçado, aceita assinar a condenação que os carrascos lhe puserem em frente. Por ironia, a acusação é tão infantil que os algozes resolvem inverter o processo, Alata vai ser confrontado com outros acusados e desmonta atos de corrupção dos seus próprios inquiridores. Sékou Touré chega a telefonar-lhe a agradecer-lhe a colaboração, a pedir-lhe mais sacrifícios, o ditador é tão “magnânimo” que o informa que vai receber a visita da mulher e do filho que entretanto nasceu.

“Prisão de África” está primorosamente escrito, é uma narrativa do terror, da suprema humilhação, do medo visceral, do desespero e a raiva de perder os entes queridos. Ao lermos estes interrogatórios, recordamos outras prisões africanas, europeias, americanas, asiáticas, a monstruosidade de fazer um ser humano um farrapo, agarrado à pura sobrevivência. O prisioneiro Jean-Paul Lata vai rebatendo e mostrando as contradições das diferentes acusações. Descreve as celas com os seus percevejos, odores mefíticos, interrogatórios em que o ser humano se desfaz em urina e fezes. Os meses passam, há nova revoada de prisões, a Guiné Conacri transformou-se num campo de concentração. Alata vai mostrando aos seus carrascos como todas aquelas declarações forjadas são ridículas. Altas personalidades são enforcadas e os seus corpos balouçaram todo o dia sob a Ponte Tumbe, foi o carnaval em Conacri, megeras dançavam à volta dos cadáveres, exibiam os órgãos sexuais dos executados nas extremidades de longas varas.

E um dia, Jean-Paul Alata é libertado e parte para a Europa, sente-se guineense excluído, expulso da terra onde criara as suas raízes, separado da mulher que ama, o exílio principiado e com ele uma luta muito prolongada… Tudo começara a pretexto da operação Mar Verde, é bom não esquecer.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JUNHO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13307: Notas de leitura (602): "Onde se fala de Bissau", do princípio dos anos 50, da UDIB... Um excerto do próximo livro de Lucinda Aranha dedicado a seu pai Manuel Joaquim, empresário e caçador em Cabo Verde e Guiné (Lucinda Aranha)

5 comentários:

Luís Graça disse...

Obrigado, Mário, por teres lido esse livro por mim, por nós... Já não tenho "estômago" para certas coisas como a "descida aos infernos": por ex., não vejos filmes de terror... Infelizmente a realidade humana supera, muitas vezes, a ficção...

E no entanto é importante ouvir e saber ouvir a voz das vítimas, de todas as vítimas, dos cristão perseguidos pelos imperadores romanos aos dos judeus vítimas dos "progroms" cristãos, das vítimas do Tarrafal aos fuzilados de Conacri... Vítimas de todos tempos e lugares, "in nomine Dei", em nome do meu Deus, do teu Deus, do nosso Deus, da minha "raça", da tua "raça", da nossa "raça"... E quem diz Deus ou "raça", diz nação, ideologia, poder, interesses geoestratégicos, etc.

Mário, dizes bem, a propósito da orgia do terror de Sekou Touré, desencadeada a partir da op Mar Verde: "Tudo começara a pretexto da operação Mar Verde, é bom não esquecer."... Ainda hoje me lembre da voz, na rádio, opuvida em Bambadinca, do tenente comando graduado Januário, a depôr para a "comissão de inquérito" em Conacri...

Um dos fenómenos, sociológicos, que me interessa, intriga e perturna, são os efeitos contra-intuitivos, perversos, não desejados, da ação humana organizada... Da guerra, falamos (e lamentamos) os "efeitos colaterais", as vítimas inocentes e indefesas...

Um abraço. Luis

Torcato Mendonca disse...

Ola ´Mário, este foi dos livros, sobre a África pós colonialismos, que mais me marcou. Podemos ler – “Prisão de África é um dos primeiros textos a desmascarar, sem equívocos, os crimes contra os direitos do homem praticados nos novos países africanos”. Tantos ainda perduram, digo eu. Podes ler a Revista do último Expresso. Mas o motivo do comentário é este: porque ligas a Operação Mar Verde e os Portugueses a este acontecimento descrito pelo J.P. Alata? E o comportamento do Ten. Januário? Encontrou Sékou Touré aí um motivo, como parece quereres dizer, para uma purga no sistema?. Não estou de acordo. Ele era, foi nesse tempo (71…) e seria sempre um Ditador. África, depois dos Portugueses, contínua com problemas, iguais ou parecidos aos aqui ,neste livro, relatado. Tenho-o aqui e não se fala na Mar Verde. Leitura feita há muito, por mim, e só “defolhadela” agora.Curiosa a dedicatória do livro –“ ….dedicado a todos os meus irmãos de luta socialista caídos vítimas de todas as repressões,e, em particular, a Barry III, o Serianké, enforcado na ponte Tumbo, ConaKry, A 25 de Janeiro de 1971”. Vai longa a conversa. Se te tivessem convidado a ir nessa Operação ias? Abraço, T.

Antº Rosinha disse...

Obrigado Mário por mais este trabalho.
Mas Sekou Touré precisava de motivos para matar e esfolar?

Este branco francês até escapou para contar!

E os pretos que não escaparam para contar, nem para chegar a lampedusa?
Viva o Filipe VI, de Espanha e V de Olivença.

Anónimo disse...

SÓ TENHO UMA "PEQUENA" DÚVIDA...

O sr. Alata só percebeu que o filho da puta do Sekou Touré era um ditador sanguinário ...depois de ser preso e torturado.

Há gente com compreensão lenta..feitios..

Aaah...a culpa foi dos tugas que não tinham nada que invadir Konacri...

C.Martins

Anónimo disse...

SÓ TENHO UMA "PEQUENA" DÚVIDA...

O sr. Alata só percebeu que o filho da puta do Sekou Touré era um ditador sanguinário ...depois de ser preso e torturado.

Há gente com compreensão lenta..feitios..

Aaah...a culpa foi dos tugas que não tinham nada que invadir Konacri...

C.Martins