sexta-feira, 25 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13435: Notas de leitura (616): “Pluralismo Político na Guiné-Bissau", coordenação de Fafali Koudawao e Peter Karibe Mendy (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Janeiro de 2014:

Queridos amigos,
Este livro é uma auscultação a diferentes níveis do que foi a atuação política do PAIGC, a crise económica, a alvorada da liberalização política, o comportamento de múltiplos atores, desde os chefes tradicionais até às ONG.
Com o pluripartidarismo, a sociedade civil reorganizou-se e deu sinais de uma vontade participativa que tinha definhado nos tempos do monolitismo do PAIGC.
É neste contexto que se deve ler com interesse o trabalho de Mamadu Jao acerca das relações entre os poderes oficiais e tradicionais na Guiné-Bissau ao longo dos tempos e detetar, como propõe Carlos Cardoso, o enfrentamento entre as elites dos históricos do PAIGC e os jovens ambiciosos formados sobretudo nas universidades da Europa de Leste.

Um abraço do
Mário


Pluralismo Político na Guiné-Bissau: Para a história da transição para um multipartidarismo, desde 1992 (2)

Beja Santos

“Pluralismo Político na Guiné-Bissau”, coordenação de Fafali Koudawao e Peter Karibe Mendy, INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Bissau, 1996, é um precioso volume de ensaios em que quatro investigadores com pergaminhos procedem, em diferentes angulares, ao estudo da emergência do pluralismo político na Guiné-Bissau, no período que preludiou e acompanhou as eleições de 1994. Já aqui se fez referência aos importantes trabalhos de Peter Karibe Mendy e Fafali Koudawao. No primeiro, vimos estabelecido o arco temporal entre a assunção do PAIGC desde a luta pela independência, passando pela chegada ao poder, fomos confrontados pelos porquês do autoritarismo e pelas razões que desaguaram no pluralismo. No segundo, foi-nos dado apreciar o desabrochamento das ONG e o seu comportamento no período eleitoral, fica-se com uma ideia como se deu a transição na sociedade civil entre o Partido-Estado e as novas manifestações de participação dos cidadãos.

No terceiro ensaio, Mamadu Jao debruça-se sobre os poderes “tradicionais” no período de transição. Ele estabelece uma grelha para as grandes reviravoltas da política das últimas quatro décadas, entre 1956 e 1994. Teria havido uma fase de concentração humana entre 1956 e 1959, período em que se encarou a possibilidade de conquistar a independência apenas por via da luta política, mas os acontecimentos de 3 de agosto de 1959 revelaram que se impunha uma estratégia assente na captação e mobilização das populações agrícolas. A fase seguinte (1959-1964) permitiu uma primeira aproximação ao mundo rural. Deram-se choques tremendos entre os guerrilheiros e as populações, a coabitação só foi bem-sucedida na região Sul, mas mesmo assim deu azo a que certos caciques tivessem manifestações de despotismo e por isso foram sancionados no Congresso de Cassacá, em Fevereiro de 1964, evento onde se confirmou o combate ao espírito de régulo e dos chefes tradicionais entre os responsáveis do partido.

Mamadu Jao refere que teria sido montada uma espécie de teoria que dividia os habitantes do país em duas categorias: os “nosso povo” e os “nossa população”. Nessa aceção política, o povo da Guiné e Cabo Verde eram só os que queriam correr com os colonialistas, tudo mais era população mas não era do povo. No período de 1964 a 1974 ter-se-ia dado uma neutralização das instituições do poder dito tradicional nos terrenos da luta de libertação. Os chefes tradicionais foram banidos e humilhados, apodados de retrógrados, e como alternativa foram criadas novas instâncias. Logo a seguir, entre 1974 e 1980 entrou-se na fase do ajuste de contas, tempos de violência legal sancionada pelo Tribunal Popular, vários chefes tradicionais foram julgados e condenados à morte. Depois do 14 de Novembro de 1980, teve lugar uma fase de segunda tentativa de aproximação, deram-se passos que permitiram aos chefes tradicionais começarem a sentir que lhes estavam a ser restituídos os seus antigos valores. E, por último, e o período entre 1991 e 1994, abertas as portas às forças políticas opositoras, todos se lançaram no processo de recuperação e capitalização do poder tradicional. O PAIGC partia com vantagem, já tinha uma boa implantação das boas estruturas de base.

O investigador Carlos Cardoso assina o ensaio sobre a classe política e transição democrática na Guiné-Bissau, recorda a mobilidade ocorrida com o advento da nova classe política depois da independência e com o reajustamento operado pelas classes sociais associadas à burguesia do partido e dos negócios, autênticas elites urbanas que, no plano dos princípios, Amílcar Cabral tinha profetizado como uma burguesia que se iria instalar num certo cosmopolitismo e desembaraçar-se das atividades inerentes à consolidação de uma democracia revolucionária. O autor lembra que a classe política guineense é relativamente jovem, as razões devem-se à natureza da colonização do território. O domínio colonial português, após as campanhas de pacificação, levaram à prática de uma política de integração dos chefes tradicionais de cada grupo étnico e Spínola com a sua política da “Guiné melhor” e das assembleias conhecidas por Congressos do Povo, tudo fez para prestigiar os chefes africanos e desvalorizar e elite cabo-verdiana. Sucede que a elite política possuía pouca ou nenhuma formação, os chefes tinham vindo diretamente para a luta armada passando por pequenas ações de treino em países como a China ou a URSS, isto enquanto os mais jovens iam adquirindo formação superior sobretudo em universidade da Europa de Leste.

Vale a pena reter algumas das observações de Carlos Cardoso: “A classe política faz recurso a uma estratégia para esconder a sua falta de superação. Nos anos 1970 proclamam-se intocáveis os que estiveram na luta e escondem-se cada vez mais atrás de uma legitimidade histórica conquistada com a luta de libertação. Mas a fase pós-independência foi igualmente a de constituição de uma elite política e de um poder altamente elitista”. O partido de Estado passou a estar estruturado para ser regido como um poder absoluto por Nino, Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas, dominando igualmente o Conselho de Estado e o Conselho de Ministros. Dava-se a assim a concentração de poderes e a sublimação do poder despótico.

Após os desaires económicos, com o sistema financeiro num caos, o Partido-Estado evoluiu para um sistema multipartidário, os dirigentes históricos viram essa evolução como uma ameaça aos privilégios que a elite desfrutava. A transição foi pacífica, mas deram-se clivagens. A classe política prima pela sua heterogeneidade determinada pelo passado político e pessoal dos indivíduos ou grupo de indivíduos que a compõem. Carlos Cardoso faz uma apreciação do comportamento dos líderes históricos, dos quadros jovens dissidentes do PAIGC, estes últimos à data das eleições eram o grupo que era mais entusiasticamente acolhido com as suas propostas de modernização, mas o PAIGC mantinha-se como um pilar, apareciam os verdadeiros herdeiros de Cabral, faziam parte dos “ventos da história”, da vaga de democratização que invadiu África nos inícios da década de 1990. E aqui o autor faz uma apreciação severa: “Do ponto de vista moral, a nova classe política apresenta limitações sérias. Se por um lado, no plano dos discursos, advoga a favor da justiça social e da igualdade dos direitos, na prática e no que diz respeito a uma das suas facões, o seu estilo de vida e a sua conduta em relação aos bens do Estado constitui impedimentos sérios à edificação de um tipo de sociedade assente nesses valores”. Após as eleições de 1994, havia de esperar uma atuação da nova classe política, vê-la batalhar pelo desenvolvimento e mostrar-se generosa, havia de esperar por uma elite que não estivesse ávida em controlar os recursos económicos e aberta à partilha de todos os tipos de poder, a começar pelo político. Como se sabe, estas previsões falharam, o país encaminhou-se para uma guerra civil, no fim do século.
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Notas do editor

(*) Vd. poste de 21 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13422: Notas de leitura (614): “Pluralismo Político na Guiné-Bissau", coordenação de Fafali Koudawao e Peter Karibe Mendy (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 22 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13430: Notas de leitura (615): "Guiné, Mal Amada, o Inferno da Guerra", por António Ramalho de Almeida (Virgínio Briote)

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