sábado, 2 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13457: Memórias de Mansabá (33): No dia em que morri (Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA)

MEMÓRIAS DE MANSABÁ

33 - NO DIA EM QUE MORRI

Carlos Vinhal

Domingo. Para fazer algo de diferente, sempre o que as actividades operacionais permitissem, era dia de vestir à civil, jogar ténis de mesa pela manhã e após o almoço dar um pequeno passeio pela tabanca. Às vezes até se batiam umas chapas para mandar à família e mostrar que a guerra não era aquilo que se dizia. Então não se via nas fotos?!

O pessoal da tabanca, acho que também se tinha adaptado aos nossos hábitos. As pessoas corriam em menor número à enfermaria civil e militar, e as nossas lavadeiras não entregavam roupa lavada. A população, pela manhã, assistia com respeito ao hastear da Bandeira Nacional em frente ao Posto Administrativo, cerimónia que só acontecia ao domingo. Os homens conversavam ou deambulavam pela tabanca ouvindo música ou os relatos de futebol da Metrópole, em alto som, como era hábito, naqueles portáteis enormes por vezes carregados ao ombro.

Depois de um almoço melhorado, bem regado com uma cervejinha geladinha, tomado o digestivo, normalmente um VAT 69 ou um White Horse, como era hábito lá fomos arejar o fato domingueiro.

Tínhamos aprendido na Doutrina que o domingo era dia do Senhor, dia de descanso, dia de paz e amor.
As diversas actividades quotidianas nem sempre permitiam o contacto directo com a população. Assim, aproveitava-se para dois dedos de conversa aqui, um piropo a uma bajuda ali, por que não até uma inocente foto com algumas delas, e assim se ocupava algum tempo. 

 Interior do quartel de Mansabá, 28 de Novembro de 1971 - Dias, Fur Mil Mec Auto, e eu

Naquele domingo, terminado o passeio, regressava o grupo já em direcção à porta de armas, ainda em plena avenida de acesso ao quartel, quem vinha de Cutia, quando rebenta um fogachal enorme.
O quartel estava a ser atacado em pleno dia, o que era extremamente raro.

Armas pesadas e ligeiras pareciam instaladas junto ao arame farpado, quando não, já do lado de dentro.
Começámos a correr o mais que podíamos em direcção aos nossos aposentos para nos armarmos e ocuparmos os nossos postos ou pura e simplesmente irmos para o abrigo mais próximo.
Lembro-me que ultrapassei a porta de armas, antecedido por uns quantos camaradas e, quando a escassos vinte metros da porta do meu quarto, situado precisamente no enfiamento da entrada do quartel, sinto um impacto violento nas costas.

Caio de bruços, curiosamente sem dores. Acho que se apaga uma luz ao mesmo tempo que sinto uma sensação de paz como nunca tinha vivido.

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O quarto dos pesadelos

Sobressaltado, dou um pulo na cama e desperto.
Não era domingo, não era de dia, nem felizmente o quartel estava a ser assaltado.
Tento na escuridão verificar que o meu camarada Dias não se tenha apercebido do meu pesadelo. O silêncio reinava no quarto. Ainda bem.

Lá fora, na noite escura e misteriosa, alguns dos meus camaradas velavam com certeza pela nossa relativa segurança. Bem hajam.
Esperei acordado pelo romper do dia já que não mais consegui adormecer.

Carlos Vinhal, 
ex-Fur Mil Art MA, 
CART 2732, 
Mansabá, 1970/72
____________

Nota do editor

Último poste da série de 15 de Maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13143: Memórias de Mansabá (32): Conversas filosóficas com o Alferes Médico (Francisco Baptista)

12 comentários:

Torcato Mendonca disse...

Oh Carlos, quem te bateu nas costas?.

Confessa lá, foi bajuda....e não estava lá camarada nenhum, o quarto era na Tabanca e etc...depois de ou da... adormeceste na paz do Senhor.

Ab,T.

Vasco Pires disse...

Pois é, Caríssimo Carlos,

Todos nós morremos um pouco quando fomos à guerra, morreu o jovem inocente e idealista, após viver situações extremas; e agora todos nós sabemos, como pode ser o "bicho homem" nessas situações.

Eu, também (quase) morri, como relatei no P11033, "Quem vem lá?

Mas,sobretudo, é um privilégio mais de quarenta anos depois,recordar com humor esses tempos.

forte abraço do seu "afilhado"
VP

Anónimo disse...



Verifico que tu recordas melhor a vida quotidina que se vivia em Mansabá do que eu. Eu por exemplo não me recordo de vestir por lá à civil. Recordo-me que um dia no quartel de Buba, farto de vestir a farda militar durante meses e meses, talvez fosse domingo, vesti-me à civil, com uma camisa branca e uns calções cinzentos. Esse dia sem farda deu-me uma sensação de liberdade enorme.
O capitão da companhia nada me disse mas olhou-me todo o dia com cara de poucos amigos.
Não voltei a vestir roupa civil no quartel com receio que me tirasse a fotografia e a envia-se ao comandante do batalhão, o célebre "metro e oito", aqui falado recentemente, ou ao major de operações, Pezarat Correia, que era todo firmeza, brio, titaque.
Gostei do teu texto pelas recordações novas que me trazes dessa terra e desse tempo comum que por vezes me parece tão distante, que outro, que não eu,o terá vivido
Um grande abraço

Francisco Baptista

JD disse...

Ói Carlos!

Quanta confusão na minha cabeça. Li o título, e fui buscar uma gravata preta, enquanto procurava a chave do carro, e esforçava-me por confirmar se tinha ou não o depósito atestado. Porra! a gravata não estava em condições. Amarrotada e com duas nódoas comprometedoras, alarguei o laço, e voltei ao armário para a substituir.
Ah! era melhor vestir já a camisa branca. Mas qual delas? Eu tenho tantas, antigas, do tempo em que trabalhava, e a primeira que vesti mostrava os punhos coçados e com as dobras desfiadas. Irritei-me. A seguinte estava meio amarrotada, e eu não podia apresentar-me com desleixo. A terceira estava bem, e vestia-a, mas o colarinho já não correspondia à actual largura do meu pescoço.
Lembrei-me de convocar algum mouro com vontade de partilhar a despesa da deslocação. Com o telemóvel numa mão, e a outra a abrir botões e a livrar-se da manga, arranjei uma irritação, do que resultou ter atirado com o aparelho ao chão.
Fiquei perturbado. Numa segunda observação, reparei que só tinha camisas coloridas, vermelhas com listas brancas, brancas com listas vermelhas, e nenhuma se ajustava ao meu sentimento consternado.
Movido pela curiosidade de saber a que horas seria o funeral, não fosse eu atrasar-me irremediavelmente, dei-me então conta de que a tua morte já tem quarenta aninhos, e sem a máquina do tempo era-me impossível prestar-te a última homenagem. Sem saber bem por quê, tomei um vallium e esperei que a minha tranquilidade se reinstalasse (que a do GES só ameaça desinstalar). Quando acordei, notei que, ou te felicitava já pela alegria do desfecho, ou corria o risco de te enviar a mensagem em situação pós-mortem. Sabe-se lá quando...
Um abração de alívio
JD

Cesar Dias disse...

Carlos, disseste que este pesadelo não era ficção, acredito sem esforço, pois alguns desses pesadelos deixavam marcas, de tal maneira que no dia seguinte não estavam em condições de sair para qualquer acção.
Um abraço amigo
César Dias

12 Martins disse...

Com o susto "que presgastes" à malta, devias ir de castigo para o quarto das "pisa delas".

"Tá a ber?"

Olha o que ias arranjando ao JD.

Mário Vitorino Gaspar disse...

Camarada Carlos Vinhal
Podíamos a estar horas, dias e anos a recordar esses tempos percorridos nos aquartelamentos, bolanhas, matas. Mas a vida era de segundos, principalmente para todos os Especialistas de MA.. Eu contei segundos! Desisti - fiquei completamente sem a esperança de viver - piquei à frente, junto das Praças "U", da Milícia e de todos os camaradas que sempre me acompanharam. Tínhamos de sair dali com vida. Sem eles, nada era. Eu sempre os apoiei. Os camardas retribuíam. Existiam sempre umas cervejolas. Cerveja ao pequeno almoço, ao pequeno almoço, ao jantar e... nos intervalos. Isto claro nos dias que não saíamos em operações. Neste caso tinha uma dose minima de 7 cervejas à chegada, e geladas. Depois continuava-se pela noite dentro até que caíssem umas morteiradas ou canhoadas. Mas, quando uma maldita mina surgia, não sei explicar porquê, desmontava-a. Devia rebentá-las mas recusava-me a fazê-lo. Talvez por ter morrido numa armadilha o meu grande amigo Furriel Miliciano Vítor José Correia Pestana e o Soldado António Lopes da Costa, no dia 12 de Outubro de 1967. O Pestana quando viu que ia rebentar a granada armadilhada, lançou-se sobre ela, para salvar outros camaradas e ficou com um grande buraco na barriga e praticamente sem pernas e braços, mas ficou vivo. O médico veio de helicóptero e ainda o assistiu. Pedia que lhe dessem um tiro na cabeça. Faleceu logo. O Costa que parecia estar vivo e a descansar morrera. Depois o Furriel Miliciano António Manuel Magalhães Maia também de MA caiu numa armadilha e foi evacuado. O Alferes Miliciano José Paulo Oliveira de Sousa Teles, que era de MA também, apanhou tamanho susto que já não tocou na porcaria das MA. De quatro Especialistas restei eu. Sempre "anestesiado", julgo ser o termo mais ajustado, lá ia sempre à frente a picar palmo a palmo, e mesmo sempre com cuidado, uma trampa de uma mina rebentou, junto de mim - ficaram feridos 7 camaradas. Entretanto depois de montar, desmontar, picar sempre, com aquele instrumento rústico. Verdade seja dita que era prático e eficaz. Longe do mundo, ataques, patrulhas e emboscadas. e no dia 26 de Março o Soldado Manuel Ferreira da Silva, morre num ataque mesmo estando dentro de um abrigo. Em fins de Comissão bem podia tr ido eu quando deram ordens para serem levantados todos os engenhos explosivos.
Esta conversa toda para quê? Faço a pergunta ao Blogue: - "Pode-se fazer uma Sondagem sobre todos os camaradas que cada um tem conhecimento que sendo de MA, Oficiais ou Sargentos morreram ou ficaram feridos com engenhos das NT ou do PAIGC?"
Aqui fica a sugestão. Daquilo que sei, já vi cegos que conheci e amputados. Tenho ouvido muita coisa. Como estive bastante tempo (falo somente de mim) no Serviço Militar, porque sei que outros estiveram mais tempo que eu, gostaria de ter uma resposta para algo que me incomoda.
Levantar uma Mina? Entra-se num outro mundo no fundo de nós. Torna-se um desafio. Mas rebento? Era melhor rebentar! Alguém nos diz ao ouvido e bem baixo: - "Vá, levanta!...". De cigarro nos queixos, e só com a camarada mina, interrogava-a: - "Estás armadilhada? E quando ela parecia rir, eu de capim no bolso e clipers nos orifícios do camuflado. Com a faca de mato escavava à volta, e quando podia já vê-la, com uma palha de capim cuidadosamente escolhida, passava-a sorrateiramente e com tempo. A palha avançava milímetro a milímetro, e sem nada a impedir de continuar. Quando finalmente acabava o percurso e sabia QUE NÃO ESTAVA ARMADILHADA, colocava o clips e ficava em segurança.
Mas os Camaradas Soldados diziam: - "Meu Furriel rebente essa merda!". Mas não ia para a frente, mas porquê? Ninguém dizia para o fazer.
Gostei do teu texto.
Um abraço
Mário Vitorino Gaspar Ex-Furriel Miliciano Atirador de Artilharia, mas sempre com a G3 de Minas e com a Especialidde de MA da Companhia de Artilharia 1659 - "ZORBA" que fez a Comissão em Ganturé e Gadamael Porto de JAN67 a OUT68

Anónimo disse...



Em resposta ao Mário Vitorino Gaspar posso adiantar o seguinte:
Fui para a Guiné em rendição individual. Em tempos diferentes, logicamente, substitui dois alferes de minas e armadilhas.
Em Buba o Queiroz morto por uma mina anti-pessoal nossa. Em Mansabá substitui o Couto, que o Carlos Vinhal conheceu bem, morto ao desmontar uma mina anti-pessol do inimigo. Em Buba morreu também o furriel Ferreira, de minas e armadilhas, ao tentar desmontar uma mina anti-carro. POr esta pequena amostra que eu dalguma forma vivi ou conheci, O Mário Vitorino deve ter razão ao pensar nos muitos mortos e estropiados que houve na vossa especialidade.
Um grande abraço, também de admiração e respeito pelos que morreram e pelos que sobreviveram.

Francisco Baptista

Anónimo disse...



O meu comentário seria incompleto e injusto se não falasse no uníco especialista de minas e armadilhas que vi em acção. Foi o nosso camarada e amigo Carlos Vinhal, acompanhado por outro camarada, ao desmontarem uma mina anti-carro, que o meu pelotão descobriu na estrada entre Mansabá e Farim.
Londa vida para ele e para todos os que se conseguiram livrar desses engenhos traiçoeiros.
Um grande abraço.

Francisco Baptista

Cesar Dias disse...

Carlos, será que nos teus pesadelos conseguiste descobrir a razão de teimar-mos em levantar minas, apesar do conhecimento que havia de situações que teriam corrido mal com camaradas nossos? Eu não encontro nenhuma razão, era superior a tudo, destruí-las estava fora de causa.
Mansabá também foi fértil em minas, e conseguimos vence-las, aparte um ou outro caso.
Abraço
César Dias

JD disse...

Camaradas,
A minha psicóloga colocou-me agora em mãos (com outra finalidade) o título "O Que Podemos Aprender Com os Psicopatas", de Kevin Dutton.
Estou a iniciar os meu conhecimentos sobre este gánero de humanos, cerca de 10% de nós, pessoas cujos cérebros estão mais sob o efeito de "correntes frias" durante mais tempo de que bos restantes. Um cirurgião com características psicopatas tem muito mais probabilidades de êxitos profissionais. Tal como um gestor executivo. Ou como um especialista em Minas e Armadilhas.
Na década de 1980 um investigador de Harvard descobriu que entre os elementos de uma brigada com pelo menos 10 anos de actividade, os mais condecorados revelavam "no terreno" níveis de concentração "particularmente elevados". A análise de seguimento foi mais fundo, revelando a causa da disparidade: confiança. E esse grupo revelava pontuações mais elevadas do que os seus colegas não condecorados em testes de autoconfiança fundamental.
Esse investigador - Stanley Rachman, para quem for ao google - "sabe tudo sobre a neurologia destemida e glacial do psicopata".
Abraços fraternos
JD

Hélder Valério disse...

Ora viva!

Meu bom amigo Carlos Vinhal (hoje, por momentos, abandonei a 'fórmula aristocrática'), sei que "estás de serviço" ao Blogue, sei que será bom sentires-te 'mimado', pelo que, aproveitando este teu pesadelo aqui te vou endereçar uns comentários.

Estive uns dias afastado do Blogue porque queria ver se este ano conseguia 'mudar de ares' e isso aconteceu durante uns dias, poucos.

Ora bem, quando vi o título pensei que seria uma daquelas situações já por aqui relatadas de casos em que a rádio do IN dava conta do 'aniquilamento' dos ocupantes dos 'campos fortificados' e que tu serias um desses contemplados...
Mas depois, rapidamente, percebi que se tratou do pesadelo típico do MA.
À séria, já aqui manifestei todo o meu respeito e consideração por esses Homens que tiveram que lidar com essas situações. Salvo erro a propósito do falecimento do nosso 'camarigo' Luís, mas também aquando dos relatos do AMatos e de outros, incluindo agora o que li no livro do meu "quase vizinho" de infância Mário V. Gaspar. Portanto, por aqui, só te posso felicitar por se tratar 'apenas' de um pesadelo, embora creio que nunca deixou de 'fazer mossa'....

Agora, aproveitando a onda dos amigos que 'aligeiraram' a situação, com toda a legitimidade, até porque 'já passou'... sempre te digo que uma possível razão talvez possa estar 'nas paredes do quarto do pesadelo'. Repara: o que vês? Pois..... por isso é que numa parede do meu quarto, para além de estar pintada de castanho, assim a modos que cor de m..., havia um poster do Frank Zappa numa sanita (ou cagadeira, se preferirem...).

Ainda na onda dos comentários interrogo-me porque é que a "psicóloga do JD" (pessoa por quem nutro a minha mais profunda estima e consideração) lhe teria dado a ler um livro sobre 'psicopatas'... algum "case study"?

E pronto, até ao próximo mimo....

Abraço
Hélder S.