sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13685: Notas de leitura (637): “Do Outro Lado das Coisas", do Embaixador João Rosa Lã (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Outubro de 2014:

Queridos amigos,
O embaixador João Rosa Lã descreve no seu volumoso livro de memórias, recentemente publicado, a sua missão na Guiné ao longo de praticamente dois anos.
É um testemunho importante, acompanha as eleições, é um observador atento do relacionamento tenso entre Nino e a cúspide das Forças Armadas.
Procura estreitar a cooperação entre Portugal e Guiné, é por vezes implacável com a elite política e a subsidiodependência. Sente-se subjugado pelas qualidades do ser humano local, homenageando-o assim nas suas últimas palavras: “Só haverá um país em que a beleza das suas paisagens será ultrapassada pela graça e simpatia do seu povo, a Guiné-Bissau”.

Um abraço do
Mário


Embaixador João Rosa Lã na Guiné-Bissau (1)

Beja Santos

“Do Outro Lado das Coisas”, é o título do livro de memórias do embaixador João Rosa Lã, recentemente publicado pela Gradiva Publicações. Este embaixador desempenhou funções em Genebra, Marrocos, Venezuela, Bruxelas, Washington, Guiné-Bissau, Haia, Viena, Madrid, Paris e Rabat. Em Lisboa, desempenhou funções de conselheiro diplomático do primeiro-ministro Cavaco Silva, foi assessor diplomático do ministro da República para os Açores general Rocha Vieira e diretor-geral dos Assuntos Multilaterais do MNE.

O livro começou a ser badalado por dar informação importante sobre a tentativa desesperada de Marcello Caetano de promover uma independência unilateral de Angola. A este propósito, o diplomata, na altura colocado em Caracas, mantinha conversas com o engenheiro Santos e Castro, antigo governador-geral de Angola, que resolveu desvendar-lhe um segredo. Santos e Castro confessou que deixara de manter relações próximas com Marcello Caetano por considerar o principal responsável pelo 25 de Abril. E contou ao diplomata que nos primeiros dias de 1974, durante um fim de semana, fora chamado secretamente a Lisboa pelo Presidente do Conselho. Foi uma conversa em que deambularam toda a tarde num carro privado entre Lisboa Cascais e Sintra, “Marcello Caetano traçou um cenário muito negro da situação do país e da política ultramarina. Sob o ponto de vista militar, a Guiné estaria perdida a prazo, uma vez que as forças do PAIGC passaram a deter mísseis que anulavam a ação da Força Aérea. Moçambique estava a atravessar uma gravíssima crise económica e estaria em vias de deixar de ser suportável pela metrópole. No plano interno, a situação tinha-se tornado insustentável, com o Presidente da República de um lado e o general Spínola por outro, a minar, ainda mais, a já difícil posição do governo e da sua política. Felizmente, a situação em Angola era diferente, com o MPLA quase aniquilado militarmente, a UNITA controlava e as finanças sólidas devido ao aumento do preço do petróleo. Marcello confessou já não dispor de qualquer capacidade de manobra para alterar a situação nas províncias ultramarinas, sobretudo a dos portugueses que lá viviam. Havia, no entanto, que se tentar salvar o que fosse possível. Santos e Castro deveria começar a tomar todas as providências para que fosse preparada uma declaração unilateral da independência do território. Seria criado um Estado soberano, multirracial e multicultural, com o concurso de todas as forças que aceitassem a declaração da independência. Santos e Castro ficaria interinamente à frente do novo país, com um governo presidido por uma personalidade negra, muito provavelmente Jonas Savimbi, se este aceitasse, mantendo-se todos os funcionários da administração da província que desejassem ficar. O mesmo aconteceria às tropas da metrópole destacadas no território. O governo português não aceitaria, pelo menos de imediato, nem reconheceria a Declaração de Independência e retiraria todas as suas forças do terreno”.

Esta confissão vem abonar o que o professor Fernando Rosas várias vezes referiu sobre as derivas dos últimos meses do regime de Marcello Caetano, havia uma imagem exterior de uma atitude irredutível na defesa do Ultramar, enquanto se promoviam contactos com os diferentes movimentos de libertação, Jorge Jardim sentiu que chegara a hora da independência branca em Moçambique, um diplomata português foi procurar negociar um cessar-fogo com dirigentes do PAIGC em Londres e havia esta proposta delirante para Angola.

O embaixador Rosa Lã foi nomeado embaixador na Guiné-Bissau, segundo escreve para ajudar a promover e a organizar as primeiras eleições livres e democráticas no país. Ali permaneceu entre 1993 e 1994.

O país era o pior dos destinos para um diplomata, recebeu a incumbência em estado de choque. Durão Barroso pediu-lhe que lhe transmitisse sempre a sua opinião pessoal. As eleições livres, uma maior eficácia para a cooperação e o incremento do ensino da língua portuguesa eram os principais desafios da sua missão. Ao longo do relato da sua missão a Guiné-Bissau, descreve episódios rocambolescos, situações de gritante penúria, a evolução dos projetos e não disfarça a sua profunda rendição à graça e simpatia dos guineenses.

É brejeiro, mordaz e observador implacável: “As dificuldades financeiras do ministério dos Negócios Estrangeiros eram tantas que nem dinheiro havia para a gasolina da viatura oficial, pelo que me via obrigado a adiantar uns pesos guineenses para que os escassos metros que separam a Embaixada do Palácio presidencial fossem percorridos dentro da maior dignidade possível. À chegada tinha uma meia dúzia de militares, mais ou menos fardados, que me apresentaram armas. Dentro do Palácio tudo parecia estar como o general Spínola e o seu sucessor o terão deixado. Os tapetes, Beiriz, tipicamente portugueses, apresentavam aqui e ali alguns buracos e as cortinas e os cortinados das janelas já tinham conhecido mais limpeza e melhores dias. Nino Vieira causou-me desde logo uma forte impressão. Deu-me sinais imediatos de uma grande perspicácia e inteligência natural, sabendo-se comportar e falar, embora exprimindo-se num português básico. Ostentando sinais exteriores de poder e riqueza, tão necessários naquelas terras, usava um grande e pesado relógio, tinha nos dedos vistosos anéis e exibia uma grossa pulseira, em forma de cadeia, tudo em ouro brilhante e reluzente. Os seus olhos, vivos e irrequietos, a sua própria postura física, parecendo sempre pronto a atacar, deixavam adivinhar uma forte personalidade. Via-se nele, ou por detrás dele, um homem implacável, decidido e sem disponibilidade para ser contrariado. Mas que sabia sorrir, quando necessário”.

Nino Vieira pretendia que se enchesse a Guiné de professores portugueses. A situação do ensino do português não era brilhante se bem que o número de falantes portugueses tivesse aumentado e o Centro Cultural Português tivesse envidado esforços para fazer crescer o número de estudantes. Rosa Lã enceta conversações com todos os partidos existentes, animando-os a fazerem pressão para a realização de eleições democráticas. Apercebe-se do emaranhado da teia no relacionamento de Nino Vieira com as Forças Armadas e deplora o desaparecimento do coronel Cassamá e a sua substituição por Ansumane Mané, sente que os antigos companheiros de Nino, com o próprio Ansumane e Saturnino Costa estão desapontados com o presidente. E dedica toda a sua atenção ao apoio que Portugal podia dar às eleições na Guiné-Bissau.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13664: Notas de leitura (636): “Adeus, Bissau!", A ternura de um conto à volta da guerra civil de 1998-1999 (Mário Beja Santos)

Sem comentários: