segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13870: Notas de leitura (649): 1 de Novembro de 2014, na Feira da Ladra (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Novembro de 2014:

Queridos amigos,
As coisas são como são, há dias de farta colheita e outros de míngua.
Naquela manhã ensolarada de 1 de Novembro havia pepitas guineenses inesperadas, prontas a ser colhidas: uma fotografia que complementa outras que estão no blogue, cheira-me que eram arquivos da revista Ultramar, ou mesmo depositadas no SNI; uma surpreendente revista A Terra, número colonial, de 1934, um capitão-de-fragata fala sobre as etnias guineenses, diz coisas acertadas e outras não tanto. Mas a colheita foi mesmo farta, só tive pena de não ter adquirido uma fotobiografia de Mário Pinto de Andrade, o alfarrabista já me conhece as fraquezas, pediu muito, regateámos, a bolsa não dava tudo, regressei de orelha murcha.
Fica para a próxima.

Um abraço do
Mário


1 de Novembro de 2014, na Feira da Ladra (1)

Beja Santos

Foi uma romagem fértil, carregadinha de surpresas.
Na companhia do Raúl Perez dirigimo-nos para aqueles vendedores que vêm com caixas pejadas de fotografias, com batizados, casamentos e outros eventos. Embarco na aventura, operação paciente, mergulhar as mãos, tirar aquelas recordações todas vindas de espólios, de herdeiros desapiedados que põem a privacidade dos ancestrais a nu por tuta e meia. Pois bem, é entre fotografias de banquetes, com poses militares, que surge esta imagem, parente de uma outra que já apareceu no blogue, o padre Afonso, na direita, troca cumprimentos com D. António Ribeiro, estamos talvez em 1971, há um grupo de jovens guineenses que vai até Fátima, um deles está atento e pronto a discursar. Tudo se passa num salão do Patriarcado, então a funcionar no Campo dos Mártires da Pátria. Por feliz acaso, já consta do blogue a fotografia em que estes jovens apresentaram cumprimentos a Silva Cunha, há uma outra de muçulmanos a caminho de Meca. Estou de olho arregalado, e por várias razões. Foi o padre Afonso que me casou, em 20 de Abril de 1970, na catedral de Bissau, nessa tarde o Alexandre Carvalho Neto, ajudante do governador andava nervosíssimo, não me podia explicar porquê, no dia seguinte todos sabíamos que houvera um massacre de três majores, um alferes e comitiva numa estrada entre Pelundo e Jolmete, eram oficiais de primeiríssima água, dizia-se.

Este senhor D. António acompanhara a JUC – Juventude Universitária Católica, foi aí que nos conhecemos. Pois acontece que no dia 15 de Março de 1995 me encaminhava para o Hospital dos Capuchos, seria umas 15 horas, atravessei o Campo dos Mártires da Pátria, ia pela primeira vez ser operado a uma hérnia que me castigava horrivelmente. Ao passar à porta do Patriarcado, D. António saiu de um carro, cumprimentou-me e expliquei-lhe para onde ia, ataviado pedi um saco de pertences. Foi conversa estranha, quis saber detalhes sobre a operação, em que serviço ficaria, etc. Foi operado a 16 à tarde e fiquei a pairar numa cama numa enfermaria de neurocirurgia. Na tarde de 17, ainda bem aboborado, entra-me o médico e questiona-me quem é que deve entrar primeiro para me ver, se o cardeal se um antigo presidente da República, é protocolo que ele conhece com a voz entaramelada ter-lhe-ei respondido:
“Por favor, entram os dois ao mesmo tempo, nada de cadeiras, veem-me, agradeço-lhos a visita e mando-os em paz, quero dormir, esquecer estas dores, este dreno que não me dá nenhuma posição confortável, desculpe o incómodo”.


Olho de novo para esta fotografia, pergunto o que fazem hoje estes dois jovens, o senhor do meio é-me uma cara conhecida, mas não sei quem é. Regateio o preço da fotografia, ela será minha a qualquer preço, estão ali seres que conheci há décadas e que estimei. E está ali a Guiné a cruzar-se de novo na minha vida.

Agora ando a passarinhar nas bancas ao ar livre, o Raúl Perez, bibliófilo, anda por ali de nariz espetado à procura de incunábulos, coisas valiosas, eu limito-me a andar ao papel baratucho e amarelecido, sempre com a Guiné na mira. Então não é que me sai a revista A Terra, revista portuguesa de geofísica, nunca vi uma coisa destas, não diz o número nem a data, mas refere na contracapa: 1.ª Exposição Colonial Portuguesa, aberta de 15 de Junho a 30 de Setembro próximo. Notável manifestação patriótica, cultural, económica e pitoresca em que se demonstra, por forma eloquente, o esforço colonizador dos portugueses nos últimos 50 anos. Durante o certame, a que concorrem indígenas de todas as províncias do império colonial português, realizar-se-ão conferências, congressos, paradas agrícolas, formaturas de antigos combatentes das campanhas de Áfricas, e outras manifestações interessantíssimas. Estamos pois em 1934, a exposição foi no Porto, na comitiva da Guiné vinha o régulo Mamadu Sissé, um braço-direito de Teixeira Pinto, Eduardo Malta desenhou-lhe um filho, é um desenho soberbo, já aqui mostrado. A exposição deu brado, as senhoras do Porto e arredores encolerizaram-se com as Bijagós de peitaça ao léu, não eram modos de se apresentarem, o capitão Henrique Galvão viu-se e desejou-se.

Mas o que é que tem de especial este número da revista A Terra? É dedicada a Portugal de além-mar, há artigos de Gago Coutinho, Ramos da Costa, Carvalho Brandão e outros, primam os oficiais da Marinha e os engenheiros, o Império é passado ao crivo da geologia, da meteorologia e da geofísica. É neste número precioso que o capitão-de-fragata José L. Teixeira Marinho publica o artigo sobre as etnias guineenses, precedendo-o de uma nótula histórica. E depois escreve:

 “Os Felupes que habitam o canto noroeste da província, são de cor preta retinta, traços regulares, robustos. Usam um vestuário rudimentar; cultivam o arroz e o milho e são grandes bebedores de vinho de palma. São muito supersticiosos e bastantes insubmissos.

Os Baiotes, Banhuns e Cassangas diferem pouco dos Felupes. Todos eles ocupam a margem direita do rio de Farim. Parece terem sido os Cassangas os senhores da região compreendida em o Casamansa e o rio de Farim.

Os Mancanhas ou Brames usam de uma linguagem muito semelhante à dos Papéis. Cultivam a mancarra e criam gado.

Os Papéis são de cor retinta, robustos, mas indolentes; eram muito altivos e aguerridos antes de serem definitivamente submetidos pelas forças do governo da província, comandadas pelo capitão Teixeira Pinto.

Uma tribo à parte, a dos Papéis do Biombo, distinguia-se já anteriormente pela sua fidelidade ao governo. Estes abusam menos do álcool que os outros Papéis e são mais trabalhadores, cultivando grandes arrozais. Exploram parte dos palmares das ilhas Bijagós. Habitam a ilha de Bissau e a região do Churo, entre os rios Mansoa e Farim.

Os Manjacos parecem no seu aspeto físico, nos costumes e na língua aos Papéis. São mais trabalhadores, mais inteligentes e excelentes marinheiros. Muito industriosos, emigram para Dakar e Zinguichor procurando trabalho, exploram os palmares de outras regiões e em meados do século XIX uma grande colónia de Manjacos estabeleceu-se na margem direita do rio Grande, onde se dedicou à cultura da mancarra, que deu enorme incremento à exportação e ao movimento do rio que decaiu depois de expulsos os Manjacos dali pelos Beafadas.

Os Balantas são altos, fortes, ágeis, muito inteligentes. Superam todas as outras raças da Guiné na técnica da cultura do arroz. Dotados de um vivo espírito de independência nunca se subordinaram a régulos. Praticam o roubo com incrível perfeição, sendo a qualidade de ladrão astuto a mais apreciada. Rapaz que na cerimónia do fanado não apresente provas de alguns roubos notáveis não arranja noiva; o elogio fúnebre de um homem de categoria consiste na exaltação das suas qualidades de ladrão.

Os Fulas invadiram pacificamente a região que atualmente forma a parte nordeste da província e que estava ocupada pelos Mandingas. Apoderaram-se depois do território, passando de escravos que eram a senhores pelo direito da força. De cor cobreada, altos, magros, de feições regulares, nariz aquilino, são incontestavelmente o grupo étnico mais civilizado dos que habitam o território da Guiné. Não se consideram pretos e usam dessa designação quando se referem às outras pessoas da Guiné, que consideram inferiores.

Os Mandigas dedicam-se ao comércio e à indústria.

Os Beafadas não diferem muito no aspeto físico e costumes dos dois últimos grupos; estão em decadência em consequência das lutas com os Fulas que duraram longos anos. Ocupam os territórios situados nas margens do rio Grande.

Os Nalus são também adeptos da religião muçulmana. Ocupam os territórios ao sul do rio Tombali. São já hoje em número reduzido, em consequência da absorção dos Sossos”.

E vai por aí fora, fala ainda nos Oincas e nos Bijagós, prevê um futuro brilhante para a província da Guiné. E talvez por ser marinheiro, não deixa de dar um parecer estratégico: “A Guiné, com as praias do norte defendidas por um extenso cordão de baixos de areia, com o arquipélago dos Bijagós defendido por uma barreira de recifes, com a vantagem de poder manter-se isolado por muito tempo, pode tornar-se inexpugnável por um ataque marítimo, bastando para isso defender os poucos canais que lhe dão acesso”. Por esta é que eu não esperava.

Tenho mais surpresas, a manhã está radiosa e eu estou radiante, dali a um bocado, com a mesma casualidade com que respiro e vou conversando descontraidamente com o Raúl Perez, vou descobrir o Romance da Conquista da Guiné e um conjunto de ensaios de António Carreira, um dos maiores historiadores da Guiné e de Cabo Verde.

Eu depois conto.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13857: Notas de leitura (648): “Triângulo de Guerra”, de António Garcia Barreto, Edição de Maria Simão, 1988 (2) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Antº Rosinha disse...

Mais uma bem interessante do BS.

Pena que sejam brancos a catalogar os pretos.

Não concordo com a referência aos Papeis do Biombo, foi dos poucos lugares em toda a África minha conhecida e Brasil, Cacem e Quarteira, onde africanos me foram hostís, e eram jovens.

Caso raro em África, é a harmonia inter-étnica da Guiné.

Só os políticos se vão liquidando uns aos outros, graças a Deus.

antonio graça de abreu disse...

Estou sempre a aprender.
O MBS fala da sua busca de incunábulos na Feira da Ladra.
Incunábulos são os primeiros livros impressos, com datas entre 1450 e 1500.
Há disso na Feira da Ladra?
Tudo é possível neste mundo, mas livros do século XV na Feira da Ladra, com a Guiné e tudo?

Abraço,

António Graça de Abreu

António Tavares disse...

A Exposição Colonial do Porto, em 1934, serviu de ensaio à Exposição do Mundo Português (ou do Duplo Centenário) de 1940, em Lisboa.
A Exposição do Mundo Português foi um evento com o propósito de comemorar simultaneamente as data da Fundação do Estado Português (1140) e da Restauração da Independência (1640).
Abraço.