domingo, 23 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13932: Memórias de Gabú (José Saúde) (45): Incompreendidos e injustiçados



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mis uma  mensagem desta sua fabulosa série.

As minhas memórias de Gabu


Camaradas, 


Stress pós-traumático de guerra: uma patologia irreversível 

Incompreendidos e injustiçados

O tema é perseverso, admito. Mas, foi, é e será uma realidade inquestionável com o progredir do tempo. Todos nós conhecemos pormenores de uma guerra que transvazou sentimentos onde a nossa irreverente juventude se sobreponha a uma ordem de fatores que ditava uma indesmentível verdade na hora exata em que se lutava pela sobrevivência: “matar para não morrer”.

Confesso que a temática da guerrilha na Guiné mexeu, seguramente, com todos os camaradas que palmilharam trilhos comuns e sempre imprevisíveis. Jamais reneguei que nós, putos na casa dos vinte anos, formávamos “esquadrões da morte” e que nunca premeditávamos o momento subsequente. Depois… vinham os tormentos.

Revejo as nossas saídas para o mato, ou as colunas que, a espaços, eram facilmente sujeitas a confrontos reais com um IN que na orla do matagal emboscava jovens soldados sem medo. Aliás, os estridentes sons das armas foram “receitas” cabais para uma peleja que ditava fins incompreensíveis. Era assim a guerra que conhecemos.

Um enorme frenesim mexia com as nossas almas. Vidas destroçadas e um futuro incerto. E a certeza diz-nos que muitos camaradas morreram, outros ficaram estropiados, outros feridos com maior ou menor gravidade e outros viverão eternamente sob uma patologia a que se dá o nome de stress pós-traumático de guerra.

Incompreendidos e injustiçados os antigos combatentes sentem que são gentes onde o lapidar de enfadonhos sobressaltos, e que foram de facto muitos, se entrelaçam com emoções, algumas fatídicas, assim como num abismal desconforto de que resultaram perturbações inevitavelmente indestrutíveis.

Percebo e compreendo a atitude de camaradas que se refugiam no silêncio quando a temática abordada é a guerra. Aquela maldita guerra que terminou com a Revolução dos Cravos – 25 de abril – já lá vão 40 anos. Um espaço curto que significa o seu fim, é certo, porém as feridas, não sanadas, teimam manter-se à tona das nossas vivências quotidianas.

Suavizando esses instantes de autênticos arrojos, resta fixarmo-nos sobre a nossa presença na Guiné, sublinhando, com convicção, que para trás ficou uma comissão militar forçada e a certeza de que fomos enviados para os “corredores da morte” em defesa de falsas razões impostas por pseudointelectuais que não abdicavam da fútil frase impingida a todos os que partiam para a guerra em além-mar: “Em defesa da Pátria”.

Sou mais um dos antigos camaradas que jamais se resignará perante as imposições de uma classe política que não soube e desconhece os horrores vividos pelos antigos combatentes numa frente de guerra tida como desumana e desigual, creio.

É justo, por isso, que as nossas vozes se façam ouvir, exaltando para um padecimento horrível num espaço que não conhecíamos e donde trouxemos raciocínios fortes para implorámos justiça. Uma justiça feita pelos homens e não por “advogados dos diabos” que optam por falácias imorais, sendo que as suas teses subservientes aos senhores do poder carecem, obviamente, de um rigor que me atrevo a citá-lo como bárbaro. 


Observo com atenção depoimentos de antigos camaradas. Camaradas que, não obstante a virtualidade de sermos hoje pessoas que já mergulhámos na casa dos 60 anos, outros nos 70, ainda sofremos de sequelas do stress pós-traumático de guerra que muito nos atormenta. Julgo, aliás, que poucos dormem isentos de maquiavélicos sonhos que nos transportam a pesadelos incontroláveis.



José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523


Lembro, com um misto de nostalgia e de um suplício inquietante, a madrugada de 1 de fevereiro de 1985 uma ação levada a cabo no Bairro Alemão, em Beja, pelas FP 25. Morava no 6º andar de um edifício de uma rua próxima – 25 de abril - e ao ouvir os rebentamentos vim à janela, deparando-me então com um cenário que me transportou para outros lugares.

O meu estado de ansiedade foi enorme. A Guiné suplicava o recordar de ataques noturnos aos quartéis. O breu da noite implorava calma. Calma? Bolas, eu tremia que “nem varas verdes”. O resto da noite foi passada em branco.

No meu subconsciente existiam sons e imagens da guerra que pareciam não quebrar o infinito de um horizonte distante. Beja, naquela noite, foi palco de uma “guerrilha” que me transportou para as minhas memórias de Gabu que me fez recordar noites de insónia e de grandes pesadelos.

Camaradas, na minha ótica não é fácil tratar o tema da guerra de ânimo leve. Sou um ouvinte atento da temática. Sou, também, um espetador assíduo de comentários de antigos camaradas que timidamente contam detalhes pelos quais passou.

As esposas, senhoras que sempre souberam lidar com desastrosos momentos onde o desespero se cruzou com hilariantes atitudes do marido, foram, e são, personagens apaziguadoras de resquícios de uma guerra que trouxe, afinal, alterações comportamentais para os antigos combatentes que vivem ainda hoje manietados a um conflito onde foram apenas soldados de uma Pátria que persiste em subestimar a sua ação nas frentes de combate.

Incompreendidos e injustiçados, nós, antigos combatentes, apenas pedimos celeridade numa opção que se prende, simplesmente, com direitos afincadamente reclamados. Muitos camaradas já partiram para a eternidade; outros reclamam justiça; outros esperam em vão por resoluções que levam anos por decidir e outros aguardam pacientemente pelo dia em que sejamos, finalmente, reconhecidos. 

Camarada Juvenal Amado, este texto teve, também, como inspiração o post que assinas sobre o teu reencontro com o camarada João Maximiano e que esteve em Saltinho. Um homem que sofre de stress pós-traumático de guerra causado pela guerrilha do Guiné. Um camarada que esteve com a morte a seu lado.

Juvenal, meu amigo, sabes que este teu velho camarada absorve toda a informação sobre a temática de uma guerra que se estendeu por Angola, Moçambique e Guiné. Nessa colheita de informação retiro ensinamentos sobre essas três frentes de guerra e de onde resultam enfermidades eternas. O João Maximiano é, somente, mais um dos exemplos conhecidos Força, camarada! 


Incompreendidos e injustiçados permanecem, e é verdade, muitos dos nossos antigos camaradas. Fica o repto: até quando?



Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
____________

Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 

15 DE NOVEMBRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13899: Memórias de Gabú (José Saúde) (44): Imagens de Gabu em 1999


2 comentários:

Costa Abreu disse...

Incompreendidos e injustiçados,
Estou inteiramente de acordo contigo, no entanto a sempre a esperanca que isto mude, infelismente e possivel que ja nao seja do nosso tempo, pois sermos respeitados como vi o respeito sobre os velhos combatentes em Englaterra e America e coisa que infelismente nao acontece em PORTUGAL, mas com estes governos depois do 25 de Abril nao e de esperar outra coisa. E SO PARA OS TACHISTAS.
Julio Abreu
Grupo de Comandos Centurioes
Ex-Guine Portuguesa

Costa Abreu disse...
Este comentário foi removido pelo autor.