sábado, 20 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14055: Memória dos lugares (279): Samba Silate, no pós 25 de abril de 1974: As saudades que a guerra não conseguiu apagar mesmo nos guerrilheiros do PAIGC (António Manuel Sucena Rodrigues, ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972/74)

António M. Sucena Rodrigues
em 1973
1. Mensagem, de 18 do corrente, do António Manuel Sucena Rodrigues [ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972/74; membro da nossa Tabanca Grande desde 2008]:

Boa noite,  Luís Graça


É a primeira vez que envio um texto para o blogue. Conta um pequeno episódio, em anexo, que se passou pouco depois do 25 de Abril.

Marca o fim da guerra e o início da paz, o que se enquadra bem nesta época natalícia, apesar de não se ter passado no Natal.

Aproveito para enviar um abraço aos camaradas que se podem identificar nas fotos (tiradas com a máquina que referi no inquérito recente, uma KOWA e que ainda mantenho), em especial ao então Capitão Simão que nunca mais encontrei, com grande pena minha.

Para todos os camarigos, em especial para ti e toda a equipa que mantém este blogue, "no ar", desejo um Feliz Natal e Bom Ano Novo

Um Alfa Bravo.


António M. Sucena Rodrigues
em 2004
2. Memória dos lugares > Samba Silate > As saudades que a guerra não conseguiu apagar mesmo nos guerrilheiros do PAIGC

por António M. Sucena Rodrigues


Cumpri a minha comissão de serviço na Guiné de 23 de Junho de 72 a 30 de Julho de 74. Apanhei lá o 25 de Abril como se pode concluir e por isso tive oportunidade de viver a transição da guerra para a paz. Guardo disso algumas recordações que vou agora contar. 

Estive na CCaç 12 (pertenci à 3ª geração de militares europeus da companhia), inicialmente em Bambadinca e posteriormente no Xime. A vida neste local era certamente igual à que se vivia no resto do teatro de operações da Guiné (salvo alguns casos pontuais, quiçá mais complicados): actividade operacional quanta baste, incluindo as habituais flagelações ao quartel, normalmente de curta duração, que ocorriam aproximadamente de duas em duas semanas e que de resto nunca deixaram mossa grave, com excepção de duas delas, sendo que uma dessas foi a última, e aconteceu poucas semanas depois do 25 de Abril.

Foi um ataque ao cair da noite como normalmente acontecia, com características algo diferentes daquilo que era habitual. Durou mais tempo, com disparos da artilharia (ou RPG) inimiga mais espaçados. Curiosamente uma dessas granadas atingiu uma árvore de grande porte por cima da tabanca tendo os estilhaços ferido alguma população. Foram de imediato tratadas na enfermaria (às escuras). Lembro-me, pelo menos de duas mulheres, uma delas grávida já quase no fim do tempo, e de algumas crianças. É de realçar que nem as mulheres nem as crianças disseram um “ai” que fosse, antes, durante ou depois dos tratamentos. Isto mostra um conformismo com o sofrimento e uma capacidade impressionante de suportar a dor, certamente adquirida pelo “calo” da guerra. Imaginem se fosse cá … .

Mas voltemos ao que interessa. Não foi por acaso que se tratou de um ataque diferente dos habituais. Enquanto estávamos debaixo de fogo verificámos que havia disparos de RPG tracejantes nas nossas costas e algo distantes, o que nunca tinha acontecido. É que ao mesmo tempo foi atacada a tabanca de Samba Silate (*). 

Esta tabanca recebia população refugiada, vinda das chamadas zonas libertadas. Era colocada ali porque, dada a sua localização, tornava-se muito difícil sofrer um ataque de retaliação por parte da guerrilha. De um lado tinha a estrada Bambadinca-Xime e do outro a bolanha e o rio Geba. Pode-se dizer que executaram uma operação bem planeada. Impediram-nos de sair do quartel, atacando-nos durante o tempo necessário, enquanto outro grupo destruía parte da tabanca de Samba Silate.


Foto nº 1 > Xime > CCAÇ 12 (1973/74) > Pós 25 de abril de 1974 > "À esquerda está o 1.º guerrilheiro, que apareceu no Xime, devidamente fardado e desarmado, após o 25 de Abril e poucas semanas depois do último ataque ao Xime em simultâneo com o ataque à tabanca de Samba Silate; à direita está o Jamil (não sei se é o nome correto), que era de etnia Balanta (?) e habitava na tabanca do Xime. Era bem conhecido entre nós como sendo um possível informador do PAIGC. Foi ele que recebeu o guerrilheiro e o levou junto do capitão Simão.


Mas a história não acaba aqui. Não nos podemos esquecer que já tinha acontecido o 25 de Abril. Porém a paz oficialmente ainda não tinha sido acordada entre as novas autoridades portuguesas e a direcção do PAIGC.  Ainda não tinham começado as primeiras conversações em Londres, com Mário Soares do lado de Portugal e Pedro Pires do lado do PAIGC.Passaram mais umas duas ou três semanas e apareceu na tabanca do Xime, pela primeira vez, um guerrilheiro fardado e desarmado. (Foto nº 1).

Foi ter à tabanca de um africano, homem magro e alto, salvo erro de etnia balanta (?), que se chamava Jamil (?) (talvez algum camarada me possa confirmar o nome) mas que era pouco falador e bem conhecido entre nós porque sempre suspeitámos que se tratava de um informador do PAIGC (Foto nº 1).. Foi ele que levou o guerrilheiro à presença do nosso capitão Simão. (Foto nº 2)



Foto nº 2 > Xime > CCAÇ 12 (1973/74) >  Galhardete, Bandeira do PAIGC, oferecido pelo guerrilheiro ao capitão Simão.


 Houve naturalmente cumprimentos cordiais de parte a parte e lembro-me que esse guerrilheiro ofereceu um galhardete com a bandeira do PAIGC ao capitão (Foto nº 2). Por sua vez, este ofereceu-lhe uma garrafa de whisky ( ou brandy, valha a verdade). Esta garrafa trouxe consequências, como veremos mais adiante.

No dia seguinte, a pedido do guerrilheiro, fomos visitar a tabanca de Samba Silate, pouco antes atacada como referido acima (Foto nº 3). Aproveitei para ir na comitiva e tirar as fotos que agora recordo. Foi a primeira vez e única que lá fui, e estava ali tão perto...



Foto nº 3 > Xime > CCAÇ 12 (1973/74 > Samba Silate > Visita do guerrilheiro à tabanca de Samba Silate, sua terra natal.  De pé, pode ver-se o guerrilheiro (segundo a contar da esquerda), o Jamil (?) (de braços cruzados) e o capitão Simão (de camisola branca e com a mão no cinturão).



Foto nº 4 > Xime > CCAÇ 12 (1973/74) > Samba Silate > Pós 25 de abril de 1974 > A Tabanca de Samba Silate estava ainda em reconstrução, após o ataque que referi no texto.




Foto nº 5 > Xime > CCAÇ 12 (1973/74) > Samba Silate > Pós 25 de abril de 1974 >  Continuação da visita à tabanca de Samba Silate.  É curioso observar, pela imagem, que a população não era certamente de etnia Fula nem Mandinga, mas sim Balanta (porquê?).



Foto nº 6 > Xime > CCAÇ 12 (1973/74) > Samba Silate > Pós 25 de abril de 1974 >  Ruinas da casa onde nasceu o guerrilheiro.  Ao fundo, à direita, pode ver-se a cruz que,  segundo ele, foi construída antes da guerra, por um tal missionário que lá viveu e que ele chamava de padre António [Grillo].


A tabanca estava, como se pode ver, ainda em reconstrução do ataque que pouco tempo antes tinha sofrido, conforme referi acima. (Foto nº 4).

Esse guerrilheiro contou-nos um pouco da sua história: era de lá, 
António Grillo (n. 1925, Acerenza,
Itália),  preso pela PIDE em 23/2/1963; 
faleceu em 18/6/2014,  com 89 anos
 de idade,  na sua terra natal;
há um liceu  Padre António Grillo, 
em Bambadinca (onde voltou, 
como missionário, de 1975 a 1986); 
tinha um fortíssima  ligação 
aos balantas de Bambadinca (LG).
e mostrou-nos, com alguma emoção, as ruinas da tabanca onde tinha nascido e vivido enquanto jovem. Falou-nos também numa cruz em cimento (? ) ainda intacta, a qual, segundo ele, havia sido construída, por um tal padre António [Grillo], missionário que lá viveu antes da guerra (*). Também mostrou as ruinas da tabanca onde viveu esse missionário. (Foto nº 6).

Cumprimentou várias pessoas da tabanca, sem grande euforia, mas sempre com respeito. (Foto nº 5).



Foi uma visita simples mas significativa que durou toda a manhã. Foi a oportunidade de reencontrar um passado que a guerra quase fez esquecer mas que na verdade estava bem presente. A vontade de acabar com a guerra não era exclusiva de uma das partes em conflito. Foi uma manhã emocionante. Todos os que, no mato, pegaram em armas, quer de um lado da barricada quer do outro, eram pessoas de corpo e alma, com sentimentos. Só os mandantes supremos é que não sabiam isso. Isto ficou demonstrado neste episódio simples mas significativo. (Foto nº 7).

Após a visita regressámos ao Xime e o guerrilheiro, não me lembro se nesse dia ou num dos seguintes, regressou ao mato tal como de lá veio, sem que dessemos por isso.

Nos encontros amigáveis e de reconciliação que posteriormente realizámos no mato, em Madina Colhido, ele não esteve presente por razões que nos foram explicadas pelo comandante máximo do PAIGC na zona. É que a tal garrafa de whisky que o capitão Simão lhe entregou, era para oferecer ao dito comandante que, com os seus homens deveriam festejar a paz. Acontece que, no auge das emoções, ele bebeu-a só, logo “enfrascou-se”, e por isso foi castigado com prisão. Quem havia de dizer?...

Logo após o 25 de Abril, a comunicação social imediatamente começou a dar notícias da guerra, o que até aí não era permitido pela PIDE. Este ataque que referi acima, não escapou a essa corrida desenfreada às notícias sensacionais. Imaginem a dificuldade que tive em acalmar os meus pais, depois de ter recebido uma carta deles a falarem exactamente nesse ataque e das suas consequências imediatas.

António Manuel Sucena Rodrigues

Ex-furriel miliciano,
CCaç 12 (Bambadinca e Xime, 1972-74) (**)



Foto nº 7 > Xime > CCAÇ 12 (1973/74) > Samba Silate > Pós 25 de abril de 1974 > Para a posteridade aqui ficou uma foto tirada em Samba Silate em que me apresento com as barbas que mantenho há 40 anos. Apenas mudaram de cor.


Fotos, legendas e texto : © António Manuel Sucena Rodrigues  (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]
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Notas do editor:

(*) Sobre Samba Silate e os acontecimentos do início da guerra, em 1963, vd. postes de:

2 de maio de  2010 > Guiné 63/74 - P6292: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/ Mai 71) (10): Samba Silate


(...) Dantes, Samba Silate foi uma grande tabanca balanta e um importante centro de produção de arroz. Mas na altura em que lá estive, era uma terra desabitada e completamente inculta. Dizia-se que qualquer tentativa dos Fulas para o seu aproveitamento seria gorada pelos Balantas.

Neste chão balanta, o Pe. António Grillo, missionário italiano, desenvolveu uma actividade pastoral florescente, reconhecida por muitas pessoas. Lá estava ainda, a testemunhá-lo, uma grande cruz de cimento erguida no local, assim como uma campa, também de cimento, perto da cruz, com a inscrição de Mateus Iala, balanta, que havia falecido em 1958, apenas um mês depois de ser baptizado.

Ao rebentar a guerra houve um forte movimento de adesão e apoio, em Samba Silate, à guerrilha. A tropa, porém, acudiu atacando e matando indiscriminadamente. Mancaman, do Xime, de quem já falei anteriormente  (...) , disse-me que só em Samba Silate morreram mil pessoas (...), incluindo mulheres e gente muito nova. Os que escaparam, uns foram para o mato, outros para Nhabijães, Enxalé, etc..

Pe. António viu-se implicado nos acontecimentos e, depois de preso, foi expulso, sem qualquer julgamento, para a Itália, donde não voltou mais. Constou que, mais tarde, Spínola autorizou o seu regresso, mas que a PIDE não o permitiu. (...)


14 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3059: Memórias dos lugares ( 9): Bambadinca , 1963 (Alberto Nascimento, CCAÇ 84, 1961/63)

11 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2930: Bambadinca, 1963: Terror em Samba Silate e Poindom (Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84, 1961/63


(**) Último poste da série > 17 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14042: Memória dos lugares (278): Antigos quarteis de Farim e Nema (Patrício Ribeiro, sócio-gerente da Impar Lda)

2 comentários:

António Duarte disse...

Parabéns Rodrigues, pelo teu escrito.
Como sabes regressei em janeiro de 74 e gostaria de ter vivido este encontro. Recordo a história por ti contada do encontro da Ccaç 12 com o PAIGG em Madina? Colhido?.
Vê se recordas e escreve outro.
Abraços
A Duarte
Cart 3493 e Caç 12

jpscandeias disse...

O ex-Capitão Simão é ortopedista e trabalha no hospital de Évora. Com esta dica penso que será fácil chegar à fala com ele.

João Silva furriel mil, at, inf Cacaç 12 1973.