sábado, 11 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12574: Blogoterapia (246): Uma história de vida contada na primeira pessoa (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


UM AVC QUE NÃO DEU TRÉGUAS E QUE TENTOU 
DIZIMAR ESTE JÁ GASTO COMBATENTE DA GUINÉ


UMA HISTÓRIA DE VIDA CONTADA NA PRIMEIRA PESSOA


Quando no ano de 2011 integrei o grupo de antigos combatentes que marcaram presença no almoço do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, em Monte Real, vislumbrei desde logo um caminho que eventualmente poderia transportar-me a outros trilhos, apenas sonhados mas entretanto vedados, por motivos aliás que se prenderam em exclusivo com a minha atividade jornalística desportiva durante cerca de 30 anos, sendo que a partir dessa fonte de inspiração me ressaltaram à mente um rol de eternas recordações que guardo religiosamente no meu álbum sobre a Guiné.

O desafio a Monte Real foi-me lançado pelo meu grande amigo e camarada RANGER Pedro Neves, que me lançou dicas sobre o reencontro de velhos camaradas que, transversalmente, cruzaram o solo de uma Guiné que jamais ousou dar folgas ao destemido jovem soldado sem medo atirado então para a frente de combate.

Como piriquito assumi a minha primária presença nesse encontro, dissequei momentos inesquecíveis dos nossos tempos de Guiné com outros camaradas, e resolvi de pronto partir para a elaboração de um livro onde trouxe a público uma obra, a quinta do meu pecúlio, intitulada “GUINÉ-BISSAU AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU 1973/74”, histórias de um furriel miliciano – Operações Especiais/Ranger – que cruzou a guerra com a paz.

Confesso que essa viagem a Monte Real configurou, para mim, como mais um desafio às minhas capacidades motoras, uma vez que as limitações do meu AVC, ocorrido na madrugada do dia 27 de julho de 2006, impunham, obviamente, algumas restrições, embora calculadas, mas que representaram no final mais uma batalha vencida.

Ao volante do meu carro, adaptado claro, galguei quilómetros, desafiei virtuais adversidades e a viagem Beja-Monte Real-Beja, saldou-se como uma rixa vencida.

Não me restam hoje dúvidas, ainda que devidamente controladas, que a inquietação de vencer os males do meu AVC, que me levou a jamais atirar a toalha ao chão e não me deixar cair em pressupostos desesperos, reforço, tem tingidas auréolas de um antigo combatente e de uma especialidade ranger que muito me ensinaram a vencer as intempéries deparadas numa vida que já vai longa, mas onde residem substanciais resquícios de obstáculos de outrora ultrapassados na peleja de uma Guiné que continua sempre presente em nós.

AVC ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL NA PRIMEIRA PESSOA, foi um livro que lancei em 2009 e que me tem proporcionado vários encontros nacionais, sendo o propósito transmitir aos outros que a enfermidade, a nossa, não deverá ser encarada como um fim, mas como o início de uma nova vida na qual teremos de procurar alternativas, que as temos, para solucionar o problema entretanto deparado.

Reconheço, por que é certo, que o AVC é, também, uma das principais causas de morte. Todavia, os que por cá ficam têm que saber lidar com as consequências deixadas pela doença. Saber gritar bem alto que somos na realidade vencedores e não simples malabaristas num palco circense universal.

Neste contexto, convido todos os camaradas para verem este vosso amigo e antigo combatente da Guiné no programa "CONSIGO", RTP 2, no dia 1 de fevereiro, sábado, pelas 11h00, onde citarei a minha inequívoca recuperação de um AVC que tentou levar-me desta vida terrestre, mas cuja emboscada se saldou, por enquanto, numa contundente vitória.

Resta-me publicamente agradecer ao nosso camarada Luís Graça, assim como aos seus fiéis editores, a disponibilidade oferecida pelo nosso blogue por alguns dos textos por mim aqui publicados, sendo certo que alguns deles abriram uma janela, também além-fronteiras, para uma outra visibilidade dos tempos da guerrilha guineense. A menina de Gabu, uma criança nascida dos "Filhos do Vento", por exemplo, espelha uma irreversível verdade com contornos agora sobejamente conhecidos.

Esta reportagem do programa CONSIGO é da autoria de Dora Alexandre, uma jornalista que me descobriu através do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. OBRIGADO!


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de MR:

Guiné 63/74 - P12573: O nosso livro de visitas (175): Era amigo do malogrado Carlos Alberto Graça Gonçalves, em Alfama, o "Manjerico" e, na Ponte Caium, o "Charlot", do 3º Gr Comb / CCAÇ 3546 (Piche, 1972/74) (Artur Barata)

1. Dois comentários do Artur Barata (que está a seguir o nosso blogue e que foi combatente em Angola, na 3ª C / BCAÇ 4515/73) [, foto à direita]:


(i) Comentário ao poste P6042 [Tabanca Grande (209 ): Jacinto Cristina...


Amigo [Jacinto Cristina],  fiquei feliz por o ter encontrado, sendo da CCAÇ  3546 e BCAÇ 3883.
Pois eu também sou um antigo combatente, mas o que me leva a escrever é porque um amigo meu dessa companhia faleceu aí na Guiné no dia 14 de junho de 1973: era o Carlos Alberto Graça Gonçalves, natural de Lisboa, Alfama , conhecido entre os amigos como Manjerico.

Ele era meu amigo de infância. Quando ele veio passar férias, um pouco antes da sua morte, tivemos juntos uns dias, pois eu estava em Santa Margarida a tirar o IAO para ir para Angola. Por isso não pude ir ao seu funera.

Ele esta no Alto São João no Talhão dos combatentes, já lá fui prestar a minha Homenagem. Mas o que eu queria saber é se tem alguma foto dele ou se sabe dar o contacto de alguém que tenha.

Já agora a morte dele foi numa operação ou numa coluna ?


(ii) Comentário ao poste P8061: (De)Caras (7): Reconstituição...

Agora acabei de saber que o Carlos Alberto Graça Gonçalves tinha a alcunha, na vossa companhia, do Charlot. Para mim era um irmão e era em Alfama o Manjerico. Nas férias dele convivemos bastante e quando nos despedimos ele ia para aí, para a Guiné, e eu para Angola. Ele fartou-se de jurar e a dizer que não queria voltar. E eu fui um dos culpados porque nunca pensei que vinha o 25 de Abril. Sei que tem uma filha, que a vi nesses dias e nunca mais a vi.


Grande amigo grande irmão, que saudades, uem tiver uma foto dele por favor enviem para arturbarata18@gmail.com

Um abraço para todos os companheiros de guerra.

Atentamente, Artur Barata.

PS - Se quiser ver o site feito por mim,  da minha companhia,  a 3ª CCAÇ / BCAÇ 4515/73,  aqui vai o link http://companhiadecacadores4515.blogspot.pt/





Guiné-Bissau > Região de Gabu > Piche > Ponte Caium > Memorial aos mortos da CCAÇ 3546 (1972/74): "Honra e Glória: Fur Mil Cardoso, 1º Cabo Torrão, Sold Gonçalves ["Charlot"], Fernandes, Santos, Sold AP Dani Silva. 3º Gr Comb, Fantasmas do Leste. Guiné- 72/74"...

O Fur Mil Op Esp Amândio de Morais Cardoso, natural de Valpaços, morreu aqui, vítima de uma aramdilha que ele montava e desmontava com regularidade, na margem do rio...A trágica ocorrência foi no dia 19 de Fevereiro de 1973. Os restantes morreram numa emboscada entre a Ponte Caium e Piche, 14/6/1973..


Foto: © Eduardo Campos (2010). Todos os direitos reservados

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Nota do editor:

Último poste da série > 27 de dezembro de 2013 >  Guiné 63/74 - P12512: O nosso livro de visitas (174): Camarada não identificado, pertencente ao Pel Caç Nat 61 de Cutia, comandado pelo ex-Alf Mil Simeão Ferreira que hoje é médico nas Termas de Monte Real

Guiné 63/74 - P12572: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (6): Cuidado com as aparências




1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), com data de 7 de Janeiro de 2014:

Carlos
Antes de mais, votos de boa saúde extensivos a todos quantos passaram por terras da Guiné.



PEDAÇOS DE UM TEMPO

A foto deste vosso ex-camarada no dia em que chegou a Mansambo, depois de um mês de férias na metrópole. Vinha de levantar algum equipamento que tinha deixado na arrecadação, se tive dias difíceis de passar, este foi um deles, ao ponto de ainda não o ter esquecido.


Hoje vou falar da minha primeira viagem de avião e, de dois camaradas que viajaram comigo.

6 - CUIDADO COM AS APARÊNCIAS…

Nem sempre aquilo que parece é; na madrugada do dia vinte e quatro de Janeiro do já distante ano de mil novecentos e setenta e dois, juntei-me a vários camaradas no quartel dos Adidos, em Lisboa, tendo como destino viajar até à então província ultramarina da Guiné.

Apesar da noite estar preste a dar lugar ao dia quando o avião em que viajamos levantou voo, ainda toda a cidade se encontrava iluminada. Para quem como eu, era a primeira vez que viajava em tal meio de transporte, foi qualquer coisa de espetacular.

A sensação que tive era de irmos a sobrevoar uma enorme montanha toda iluminada. Passados os primeiros momentos em que a curiosidade, a expectativa e alguma incerteza deram lugar à “tranquilidade possível”, era chegado o tempo de conversarmos um pouco e, logo procuramos saber se algum de nós tinha como destino a mesma Companhia.

Até chegarmos a Cabo Verde fomos pondo a conversa em dia, com o avançar das horas, no velho e lento avião, comecei a sentir alguma descompressão, apesar das ideias completamente baralhadas. Era chegado o momento da primeira aterragem, no aeroporto dos Pargos, na ilha do Sal e, nova sensação até então para mim desconhecida. Depois da conversa que tive com os camaradas de viagem fiquei a saber, dos que íamos, dois iam comigo para o Leste, para a Cart 3493, que tinha como destino Mansambo, o Batalhão de que fazia parte a Companhia com os nossos futuros camaradas já tinha partido de barco há cerca de um mês. Soube também que ambos tinham já mais de ano o meio de tropa, alguns problemas disciplinares levaram a que só agora fossem mobilizados.

O primeiro juízo que fiz, erradamente, foi que, provavelmente não seriam os melhores colegas para quem como eu gostava das coisas muito “certinhas”. Só depois soube que o Agostinho era condutor, tinha tido um acidente pouco relevante, mas enquanto o auto não foi resolvido, não foi mobilizado, só por isso ia agora. O Vila Cova devia ir como furriel, mas alguma coisa não correu bem, foi mobilizado como soldado.

Mas a realidade cedo provou que eu fizera um juízo errado acerca dos meus camaradas. O Vila Cova, ao chegar à Companhia foi colocado na secretaria, bom colega nada conflituoso, tinha apenas o inconveniente de por vezes reagir mal a determinados pequenos acontecimentos, que para a maioria não tinham nenhuma importância… apesar de muito tempo já ter passado, ainda recordo o sofrimento e desorientação que uma abelha lhe provocou ao deixar-lhe o respetivo ferrão cravado no rosto, num dia em que seguíamos em coluna para Bafatá, pouco depois de termos passado pela povoação de Afiã.
O Agostinho, um dos bons amigos que tive durante todo o tempo de comissão, tinha como principal defeito, uma qualidade que poucos tinham, parecia só estar bem a trabalhar.

Entre outras provas do seu valor, recordo uma noite em que foi necessário fazer uma coluna a Bambadinca, para evacuar um camarada que tinha acionado uma mina, num dos patrulhamentos que normalmente faziam quando estávamos em Mansambo. O Agostinho logo se disponibilizou para seguir na frente da coluna com a GMC sem que a estrada tivesse sido picada, como em condições normais sempre fazíamos.

Durante o tempo de comissão demonstraram que afinal o menos interessante do grupinho que viajamos para mesmo local era mesmo eu. Ao longo da vida somos confrontados com situações assim. Quando nos acontecem é bom não as esquecermos, para não voltarmos a fazer juízos errados.

António Eduardo Ferreira
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE DEZEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10871: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (5): O whisky não era para todos

Guiné 63/74 - P12571: Bom ou mau tempo na bolanha (42): O navio Uíge (Tony Borié)

Quadragésimo segundo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



O diário do Cifra, quando se abriam algumas páginas, era horrível, triste, às vezes era melhor mudar de página, pois lá só havia rabiscos, que pareciam letras, talvez fosse escrito em momentos de aflição, ou então devia de ter acabado de fumar algum cigarro feito à mão, estavam lá coisas assim, o Cifra, vai só mencionar algumas, onde as palavras se conseguem coordenar e também vai “amaciar” as palavras, porque a linguagem é um pouco parecida com a do Curvas, alto e refilão.

Dia 2 de Setembro, que devia de ser de 1964
O comando prendeu um africano, que por duas vezes se tentou suicidar na prisão, antes, era muito estimado por alguns no aquartelamento, principalmente pela polícia do estado, pois era ele que ajudava essa polícia, servindo de carrasco, com um chicote nas mãos, a interrogar e servindo também de intérprete, quando havia interrogatório aos prisioneiros. Tinha toda a liberdade, passeava-se pelo aquartelamento em construção, fazendo perguntas, entrando e saindo onde bem queria, parecia tal e qual a polícia do estado, vivia na aldeia que existia próximo do aquartelamento, tinha quatro mulheres, para as quais levava comida e não só, do aquartelamento. No parecer dessa mesma polícia do estado, era um guerrilheiro disfarçado. As quatro mulheres ficaram viúvas, pois ele foi evacuado de helicóptero, não sabe o Cifra para onde, pois nunca mais o viu no aquartelamento, nem na aldeia. Mais tarde, houve uma notícia, que nunca foi confirmada, que tinha morrido por “acidente”, na capital da província. 

Mudando de página, vem lá assim:
Dia 13 de Março, que devia de ser de 1965
O Cifra veio à capital da província, no carro dos doentes, sem licença, portanto “desenfiado”, porque chegava o navio “Uíge” com tropas novas, onde devia vir um amigo da região do Cifra em Portugal, que trazia uma encomenda da mãe Joana. 
Quando deixou o carro dos doentes, no hospital, arranjou uma boleia num jeep para o cais de embarque. Pelo caminho tiveram um acidente com outra viatura militar, mas antes de vir a Polícia Militar, o Cifra abandonou o local a mancar, porque não tinha autorização para se deslocar à capital da província. Foi com dores até ao cais, mas quando lá chegou o amigo já tinha desembarcado e seguido com o seu batalhão, levando a encomenda da mãe Joana, não sabe o Cifra para onde.

Triste e com dores, sentou-se no muro, que também fazia de banco, na beira do rio, com a maré baixa, calor húmido e sufocante, o barco lá ao longe um pouco inclinado, pois devia de estar com o casco a bater no lodo, esperando a maré cheia. Tinha saído pela manhã de Mansoa, no carro dos doentes, a caminho do hospital, contente e sem qualquer dor, e regressou à tarde triste e cheio de dores, vindo do hospital.
Durante a viagem de regresso começou a pensar no barco inclinado, que no seu pensamento talvez estivesse a ir ao fundo, e um dia, no futuro, já não o levaria de regresso à Europa. 
Naquele momento o barco devia de estar sem militares vestidos com um camuflado novo, que já tinham desembarcado, talvez prontos ou não, para uma guerra, num cenário muito longe de onde eram oriundos, no próximo dia, talvez com a maré cheia, iriam embarcar novos militares, mais velhos dois anos, com o camuflado velho, roto e coçado, fartos de guerra, e também já não teria o peso do equipamento bélico, que tinha transportado da Europa, que devia ser, armas, canhões e explosivos, que talvez servissem para matar pessoas, mas no pensamento do Cifra, o barco estava inclinado, quase a ir ao fundo, pois a maré estava baixa, e o Ilhéu do Rei, que se via do lado de lá do barco inclinado, com paisagem africana, e não europeia, mais parecendo um vigilante, com os olhos muito abertos, a ver quem entrava e saía do rio. 

Entretanto o carro dos doentes chegou a Mansoa, alguém ajudou o Cifra a saltar do veículo militar, e o sacana do Curvas, alto e refilão, que o esperava, junto do Setúbal, do Trinta e Seis, do Marafado, do Mister Hóstia e do Furriel Miliciano, a fumar o cigarro feito à mão, pois estavam à espera de abrir a encomenda, e comerem e beberem o que a mãe Joana tinha mandado para o seu filho, que andava na Guiné a dar o corpo às balas, diz-lhe a sorrir: 
- Porra, a encomenda devia de ser grande, até vens a mancar com o peso!

O Cifra fechou o diário, com receio que lhe explodisse nas mãos!.

Tony Borie, 2010
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12514: Bom ou mau tempo na bolanha (41): "Contra-guerrilheiro"

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12570: Fábricas de Soldados - Localidades e Unidades Militares do Exército por onde passámos (José Martins) (5): G - Localização dos Órgãos, Unidades e Serviços do Exército (1961-1974) (4): Municípios de Mafra, Odivelas, Oeiras, Paço de Arcos, Penafiel, Penamacor, Ponta Delgada, Portalegre, Porto, Póvoa de Varzim, Queluz, Sacavém e Santa Margarida




1. Quinta parte da série "Fábricas de Soldados", trabalho do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5 - "Gatos Pretos", Canjadude, 1968/70), enviado ao nosso Blogue em mensagem do dia 18 de Dezembro de 2013:















(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12558: Fábricas de Soldados - Localidades e Unidades Militares do Exército por onde passámos (José Martins) (4): G - Localização dos Órgãos, Unidades e Serviços do Exército (1961-1974) (3): Município de Lisboa

Guiné 63/74 - P12569: E fazíamos grandes jogatanas de futebol (4): Futebolices em Mampatá e a CART 2519... (Mário Pinto)


1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os Morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos a seguinte mensagem.


Camaradas,

Já que estamos numa de futebolices, Mampatá e a CART 2519 não podiam ficar indiferentes ao pontapé na bola que salutarmente se fazia naquela altura por lá.

Ficaram célebres algumas peladinhas que fazíamos com a inclusão do Capitão da Companhia, que aliás era o próprio a incentivar o pessoal para a mesma. Entretanto aproveitavámos a peladinha para lhe aplicar umas valentes caneladas de amizade que levava o mesmo, muitas vezes, a queixar-se e com hematomas nas pernas, tal era a dose.

Chegou-se também a fazer um Campeonato com as Companhias de Aldeia Formosa, respectivamente, CART 2521 e CCAÇ 2616 e CCS do Batalhão, que ficavam a cerca de 7Km de nós.

O nosso Vagumestre e o Fur Mil José Alberto Gonçalves, do Pel Caç Nativos, chegaram mesmo a criar uma escola de djubis de Mampatá onde ensinavam algumas práticas da modalidade.

O Futebol  nem sempre foi uma constante da nossa Companhia, pois nos primeiros tempos a intensidade e o empenhamento na construção da estrada Buba-Aldeia Formosa era tal que a nossa disposição para qualquer coisa era nula. Só mais tarde e depois de nos termos fixado na Tabanca é que criámos condições para a sua prática com o fim de nos recrearmos nos momentos de descanso..... 

Junto algumas fotos desses tempos, com maior predominância sobre as escolas de Jubis de Mampatá.  [Seguem algumas fotos desses bons tempos].








Um abraço a todos
Mário Pinto
Fur Mil At Art da CART 2519 
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Nota de M.R.: 


Vd. último poste desta série em: 

9 DE JANEIRO DE 2014 > P12561: E fazíamos grandes jogatanas de futebol (3): O 'Jogo da Bola' nos intervalos da guerra: os craques da CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/74) ... (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp)

Guiné 63/74 - P12568: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (29): O que os rapazes dos cachecóis precisam de saber: que o Eusébio foi um português muito especial, que ajudou a escrever uma página muito especial da história de Portugal, da Europa e de África...


1. Texto enviado, em 8 do corrente, pelo António Rosinha [, fur mil em Angola, 1961/62, foto à esquerda; topógrafo da TECNIL, Guiné-Bissau, em 1979: ou, como ele gosta de dizer,colon, em Angola, de 1959 a 1974; cooperante na Guiné-Bissau, de 1979 a 1993; membro da nossa Tabanca Grande desde 29 de novembro de 2006]:


Assunto: De Gungunhana a Eusébio ou de Mouzinho de Albuquerque a Maurício Vieira de Brito e Tudela e os rapazes dos cachecóis


Tem gente que com um grão na asa dá-lhe para cantar, uns dá-lhe para o fado, outros coisas de Joselito e passodobles, e há um amigo meu que por tudo e por nada, após o café e bagaço saía-lhe o Kanimambo.

Um dia, ainda antes do café e do bagaço disse ao "jovem", na casa dos 50 que João Maria Tudela tinha morrido recentemente.

Quem é essa pessoa? Perguntou-me ele.

Claro que como antigo "cólon", quando cheira a colónias, lá tenho que explicar, as coisas que mais novos tiveram a sorte de não ter visto, e o meu amigo lá soube que cantava a música de um "cantor colonial" em Landim, patrício de Eusébio.

Penso que mudou de reportório após a minha explicação.

Claro que podemos gostar de ouvir música de Wagner sem saber sequer que essa pessoa existiu.

Isto vem a propósito de os "rapazes dos cachecóis", que tanto se manifestam, principalmente os do Estádio da Luz, se imaginarão as voltas que o mundo deu, para Eusébio ir parar a uma Selecção Nacional de um País europeu, e porque razão se discute se um simples futebolista deve ou não ir para o Panteão Nacional.


Penso que estes jovens dos cachecóis precisavam de uma explicação da parte dos mais velhos, porque também acho que estes jovens estão como o intérprete do Kanimambo, que cantava em Landim e não sabia quem era o Moçambicano João Maria Tudela, E PENSAM QUE Eusébio representou só futebol para a geração dele.

É que corremos o risco de enlouquecermos uma geração, se não ensinarmos os rapazes a olhar para Eusébio sem bola.

Que não é uma simples bola que leva Eusébio a poder morar eternamente em certos "condomínios".

Claro que não ficam mais felizes se souberem que Gungunhana era patrício de Eusébio, que veio de barco para Portugal a convite de Mouzinho de Albuquerque e não sabia jogar à bola e falava em Landim.

E também não ficarão mais felizes se souberem que foi um angolano, Maurício Vieira de Brito, que trouxe o Moçambicano e outros africanos para Portugal para jogarem à bola.

Também tem que se dizer à juventude dos cachecóis que aquilo que representa a figura de Eusébio não é consensual para todos os portugueses da geração do Eusébio.

Antes pelo contrário, temos que dizer aos jovens que tirando a bola, a lembrança de Eusébio divide alguns portugueses da sua geração, principalmente uns que eram mais europeístas, outros mais africanistas.

Os rapazes precisam saber tudo, principalmente que uma simples bola não é política, nem religião, portanto haverá algo mais representativo para os portugueses a acompanhar a imagem de Eusébio.

E também se tem que divulgar e explicar, porque na terra natal, Moçambique, não há uma manifestação oficial exuberante como em Portugal.

Talvez se os mais jovens tentarem compreender 
todos os motivos, razões e até contradições nas
origens de tanta admiração lusa pela figura de Eusébio, 
aí a "bola" não será tão pontapeada.


[Foto à esquerda: Outdoor da Câmara Municipal de Lisboa, com um "obrigado" ao Eusébio, Reproduzido, com a devida vénia, do sítio da CML]


Teremos que dizer ao pessoal mais novo, que Eusébio foi um português muito especial, que ajudou a escrever uma página muito especial da história de Portugal, da Europa e de África.

Uma página em que podem entrar com destaque, Gungunhana e Tudela, Maurício e também Adolfo Vieira de Brito, angolanos, presidentes dos encarnados

Cumprimentos,

Antº Rosinha
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Nota do editor:

Último poste da série > 31 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12527: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (28): A TAP e a Guiné-Bissau ou... a Guiné "TAPdependente"

Guiné 63/74 - P12567: Notas de leitura (551): "Antologia da Terra Portuguesa - Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Macau e Timor", por Luís Forjaz Trigueiros (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Agosto de 2013:

Queridos amigos,
Mal irrompeu a guerra em Angola e surgiram obras de reportagem sobre a região; o mesmo acontecerá com a Guiné e Moçambique.
Autores de cunha nacionalista, caso de Luís Forjaz Trigueiros e Amândio César, lançar-se-ão em obras de cunho antológico.
Este volume de Luís Forjaz Trigueiros é sintomático quanto à quantidade e qualidade de autores: Cabo-Verde preenche praticamente metade do volume, as outras colónias terão porções muito mais magras. Trigueiros optou por Zurara em vez de André Álvares de Almada, ambos indispensáveis; escolheu Fernanda de Castro, foi pena ter escolhido um texto menor”; selecionou avisadamente páginas de Teixeira da Mota e João Augusto da Silva. Estranhamente, nem uma palavra sobre Fausto Duarte.
Para que conste.

Um abraço do
Mário


A Guiné aos olhos de Luís Forjaz Trigueiros

Beja Santos

Pelos anos 1960, a Livraria Bertrand lançou uma coleção que deixou nome: Antologia da Terra Portuguesa. O país que éramos então foi descrito região por região, com exceção do chamado Ultramar em que Luís Forjaz Trigueiros escreveu volumes separados para Angola e Moçambique e Manuel de Seabra escreveu sobre Goa, Damão e Dio e Luís Forjaz Trigueiros sobre Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe, Macau e Timor.

A fatia de leão coube a Cabo-Verde, Forjaz Trigueiros compendiou textos, por vezes de uma enorme beleza, assinados por escritores como José Osório de Oliveira, Manuel Lopes, António Pedro, Nuno de Miranda, Gabriel Mariano, Onésimo Silveira, Baltazar Lopes e Daniel Filipe.

Mais curto será o espaço que o autor reservará à Guiné, mas convém referir que escolheu bem o que saiu das mãos de Gomes Eanes de Zurara, Augusto Casimiro, Fernanda de Castro, Maria Archer, Teixeira da Mota, António de Cértima, João Augusto, Landerset Simões, Manuel Belchior e Manuel Henriques Gonçalves. Escolha é escolha, sempre sujeita a reparos, na conceção de um Portugal do Minho a Timor, Forjaz Trigueiros, dentro da sua lógica, escolheu avisadamente. Como se passa a referir.

Primeiro, o autor do chamado achamento da Terra dos Negros, Gomes Eanes de Zurara e a sua Crónica dos Feitos da Guiné. Lançarote, almoxarife de Lagos, dirige-se ao Infante D. Henrique e pede licença para ir à Guiné:
“E se Deus trouxer o feito de nossos contrários, presas de grande valor, pelas quais de vosso quinto devereis receber grande proveito, do qual nós não ficaremos sem parte. E disto, senhor, vos praza havermos vossa resposta, para despachadamente seguirmos nossa viagem, enquanto nos o verão dá tempo para isso”.

Chega-se à Guiné – então o que se entenderia por ela – Nuno Tristão e outros são frechados e morrem do veneno das setas. A viagem prosseguirá em condições precárias, com logística deficiente, poucos homens, os nautas chorosos pela morte do capitão, de escudeiros e homens de pé. E como numa oração Zurara escreve:
“Ó grande e supremo socorro de todos os desamparados e atribulados, que nunca desamparas aqueles que te chamam em maior necessidade, que ouviste os clamores daqueles que gemiam a ti! Onde bem mostraste que ouvias suas preces, quando em tão breve lhe enviaste tua celestial ajuda, dando esforço e engenho a um tão pequeno moço, nado e criado em Olivença, que é uma vila de sertão mui afastado do mar, o qual avisado por graça divinal, encaminhou o navio, mandando ao grumete que diretamente seguisse o norte, abaixando-se um pouco à parte do levante, ao vento que se chama nordeste, porque ali entendia ele jazia o reino de Portugal, cuja viagem eles seguir desejavam!”.

E elogia os nautas inexperientes que conduziram a torna-viagem, onde foram recebidos pelo Infante, “contar-lhe o forte aquecimento da sua viagem, apresentando-lhe a multidão das frechas com que seus parceiros morreram, de cuja perda o Infante houve grande desprazer, porque quase os criara todos, não pôde escusar tristeza daquela humanidade que ante a sua presença pelo espaço de tantos anos fora criada”.

Passando à frente de Augusto Casimiro e Fernanda de Castro, temos Maria Archer (1899 a 1982) a descrever um tornado em Bissau:
“Calmaria. Uma nuvem branca mancha o azul intenso do céu. Não bole folha. O mar é de leite. De súbito surge um ponto negro no horizonte e em poucos minutos aumenta, amplia-se, cobre todo o céu como uma tampa negra. Um furacão terrível desencadeia-se. As árvores desfolham-se, dobram-se, gemem. Batem as portas e janelas, estilhaçam-se vidros, há gritos nas casas. As ruas despovoam-se. Toda a população se recolhe. Quem não encontra abrigo deita-se no chão. Os barcos, no porto, são balouçados por vagalhões medonhos. Partem-se as amarras. Os animais, espavoridos, correm pelos campos.
Uns minutos de inferno. Dez, quinze minutos, o máximo. Depois o tornado vai-se, passa, leva a outros lugares o seu estrondo de maldição. Volta o céu azul, o ar calmo, o sossego. Foi-se o tornado”.

Segue-se depois um termo de comparação, saíra da Guiné em 1918, não havia uma única estrada, nem iluminação elétrica, nem esgotos ou águas canalizadas. Não havia automóveis na Guiné, os barcos a motor eram raros. Décadas mais tarde, sente-se por lá um outro ritmo de vida. Passou-se a viajar de automóvel pela Guiné, de gasolina pelos rios e canais, certos burgos estão iluminados a eletricidade. Há hortas, há desporto, resiste-se mais ao clima. E a autora termina assim:
“Despediram-se de mim, no cais, o cozinheiro mandinga, o criado de mesa grumete, a lavadeira cabo-verdiana, a muleca mancanha, que era gentia, como todos os da sua raça.
E eu pensei : 
- Eis um grupo que representa o povo da Guiné!

O criado grumete e a lavadeira cabo-verdiana diziam-me: 
- Deus lhe dê boa viagem! E benziam-se.

Eu não sei se lhes dei, a vocês, uma ideia do que é a Guiné, e do seu encanto de terra bárbara e do seu pitoresco de Babel das raças indígenas. Eu, por mim recordo-a com a mais intensa impressão que me deixou a África”.

Forjaz Trigueiros escolhe páginas esplêndidas de Teixeira da Mota sobre a expansão portuguesa na Guiné, e depois poesia de António de Cértima. Um escritor ainda recentemente aqui abordado, João Augusto Silva, autor da obra premiada “África, da vida e do amor na selva”, é o autor seguinte de onde podemos ler o “Apólogo do Falcão e Abutre”:
“À sombra de uma árvore, um alto poilão secular, descansa, tranquilo, o abutre. No mesmo ramo em que ele assenta, caiado pelos dejetos brancos de tantos que ali passaram, veio pousar um falcão. Depois de trocarem cumprimentos, o falcão sempre palreiro e irrequieto, increpou o abutre de desprezível, de cobarde, de madraceiro, e quantos nomes lhe acudiram à cabeça louca e leviana. Chamou-o e tornou a chamar o ser mais miserável da criação. Mas, finalmente, furioso com o silêncio enervante do abutre, aconselhou, para terminar: 
- Deixa a carne podre e infecta dos monturos e faz como eu, que me alimento com a carne dos animais que abato à custa de um labor intenso. Porque não abandonas essa vida de pária, sempre no esterco à procura daquilo que outros abandonam?

O abutre, paciente, ouviu tudo e não teve o mínimo gesto de protesto, de indignação sequer. Nisto, porém, em grande velocidade, passou entre os dois uma avezita de penas multicolores. Doido, desordenado, o falcão lançou-se em perseguição da ave; mas tão desastradamente o fez que, de encontro a um tronco robusto, foi bater em cheio com o peito. Louco, cheio de dor, piando e repiando, caiu no chão, exânime, sobre as folhas secas.

Nesta altura, o abutre, lentamente, levanta voo e vai pousar, sereno, junto ao moribundo. O falcão, nas vascas da agonia, ainda pôde ver, a seu lado, cheio de horror, a silhueta tenebrosa e agoirenta do abutre. E trémulo perguntou: 
- Que vens aqui fazer? Grave, imperturbável, o abutre respondeu: 
- Aguardo o teu fim.”

Forjaz Trigueiros inclui ainda textos de Landerset Simões, Manuel Belchior e imagens da Guiné da autoria de Manuel Henriques Gonçalves. Não deixa de ser estranho certas omissões, como é o caso de Fausto Duarte, nome relevante da literatura colonial.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12549: Notas de leitura (550): "O Muro", por Afonso Valente Batista (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P12566: História da CCAÇ 2679 (66): Amizade que ficou (Cândido Morais)

1. Mais um episódio para a série da História da CCAÇ 2679, desta vez a cargo do nosso camarada Cândido Morais (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71) que nos fala de amizade, aquela que nos marca indelevelmente:


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

66 - Amizade que ficou 
(a veracidade dos factos aqui relatados, não implica realidade nos nomes dos intervenientes…)

Nos quintais da minha aldeia há sempre alguma coisa para fazer, e o meu não escapa a essa certeza. Se quisermos, podemos dispor de permanente entretenimento, que vai das tarefas mais rotineiras às mais pesadas ou mais complexas. Mas há também aqueles momentos em que decidimos intimamente ultrapassar as preocupações pelos trabalhos que nunca encontrarão o seu termo, aproveitando as condições de que dispomos, para usufruirmos alguns momentos de repouso e de libertação, apreciando as dádivas de Deus que tantas vezes nos passam despercebidas e temos ali sempre à mão.

Foi num desses momentos, numa amena tarde primaveril, que - estendido ao sol de um leve calor reflectido pelo empedrado do chão - espraiei o pensamento pelos anos vividos na Guiné-Bissau ao tempo da guerra colonial, dando comigo a reflectir sobre amizades firmes e indestrutíveis que lá consolidei. Na verdade, essas amizades foram de tal modo fortalecidas pelo tempo e pelas adversidades, que ainda hoje, passados tantos anos, estão declaradamente presentes nas palavras e na emoção dos nossos encontros, como se fosse ontem que nos despedimos no cais da cidade do Funchal.

Nessas cogitações, lembrei-me dum facto passado em pleno destacamento de Copá, que foi o local mais isolado que conheci na ex-colónia - na sua ponta leste -, e que quase penetrava o solo hostil dum dos países vizinhos que davam guarida ao IN.
A quietude do dia, a sensação agradável que sentia sob o sol ameno que me visitava no quintal, deram-me tempo para sentir saudade daqueles tempos difíceis, que não me inibo de abordar em conversas com os amigos, embora com muito pouca frequência. Intimamente, instalou-se em mim a convicção de que não albergo problemas de consciência relativamente à guerra, na qual compareci por imposição da pátria que todos tínhamos na altura, e durante a qual nunca me desviei dos caminhos que tiveram o seu inicio na minha terra natal, bem como das minhas mais profundas convicções sobre a convivência entre os homens, mesmo que sejam elementos activos e contrários duma dura guerra, e senhores de diferentes convicções.

Por vezes, passam-nos ao lado alguns factos da vida real em que fomos intervenientes ou que sucederam próximos. Por isso, penso que é bom que os rememoremos, para melhor entendermos a sua dimensão e os seus possíveis efeitos sobre a nossa própria vida: Os Silvestres do meu pelotão nada tinham a ver um com o outro. Nem parentesco, nem proximidade que se enxergasse nas suas características pessoais. Sempre distingui um do outro, conhecedor que era de cada uma das personalidades, que eles também não disfarçavam. Os únicos pontos que detinham em comum eram o facto de ambos usarem o apelido Silvestre, ambos serem casados (na Madeira, muitas vezes os casamentos ocorriam muito cedo…) e se não incorro em erro, ambos terem já deixado alguma descendência na pérola do Atlântico.

Um dia, descansava eu na espécie de palhota que utilizava para me proteger do sol abrasador em pleno dia - localizada no centro do destacamento -, dedicando quase exclusivamente o pensamento às questões do dia a dia do aquartelamento, por vezes também desviado para o Minho distante onde pairava a minha saudade, ou para problemas menores que se me apresentavam para resolver naquele inóspito local. De dia, raramente éramos atacados no aquartelamento, pois dispúnhamos de boa visibilidade para o exterior e o IN não conseguiria aproximar-se muito sem ser detectado pelos homens destacados nos abrigos e valas exteriores que cercavam completamente a tabanca e as instalações militares que com ela se misturavam. Seriam, por isso mesmo, um alvo fácil, e por isso também preferiam mover-nos ataques nocturnos, durante os quais conseguiam aproximar-se mais do arame farpado que era a nossa primeira resistência no terreno, imediatamente antes das valas que interligavam os vários abrigos entre si, em círculo de razoável dimensão. Na altura, a guarnição do aquartelamento era composta por dois pelotões, sendo um nativo – de homens recrutados no próprio território e que podiam ser de diversas etnias – e, o outro, um dos quatro pelotões da Companhia de Caçadores madeirenses (CCAÇ 2679), neste caso o 1.º pelotão, no qual me encontrava integrado.
O sossego que reinava naquele momento, acabou por ser bruscamente interrompido pelo José António, Cabo do meu pelotão a quem fora confiada a HK, que era natural da ilha de Porto Santo, onde ainda há pouco tempo detinha funções de funcionário camarário. Vinha ofegante, e transmitiu-me apressadamente:
- Meu furriel, venha ali a baixo, que os Silvestres estão engalfinhados! E parece-me que isto não vai acabar bem…

Levantei-me de imediato e parti em direcção ao local onde se desenrolava a contenda, tendo de imediato verificado que já havia bastante população local a assistir, de semblante carregado e aparentando reprovação. Dei imediatamente ordem, em voz alta, para que parassem com a briga, mas verifiquei, um pouco surpreso, que não me prestaram a mínima atenção. E por isso concluí que a coisa estava mesmo azeda e seria necessário tomar uma medida drástica, tanto no sentido de que se apercebessem da minha presença e acabassem com a contenda, como também para que a população se compenetrasse que a tropa tinha uma disciplina a cumprir, mesmo que fosse preciso que alguém de tal se encarregasse. Por isso, avancei sobre ambos – que se encontravam aos tombos pelo chão, agredindo-se mutuamente – e peguei o que na altura estava por cima, segurando-o firmemente pelos sovacos e atirando-o de imediato contra a parede de uma cubata próxima. O segundo levantou-se então e, sem ver sequer quem o separara do seu opositor, correu novamente sobre ele, recomeçando a luta, agora em pé. E foi esse momento que me deu azo a que, dispondo de ambos em posição normal e erecta, os agredisse uma ou duas vezes – não me lembro bem -, “fazendo-lhes ver” que era eu que estava presente e que era necessário que a briga acabasse ali mesmo.

Na verdade, sucedeu aquilo que lhes era exigido. Ambos pararam de se agredir e ambos se quedaram numa posição submissa, que muito me consternou na altura, de tal modo os vi abatidos e conscientes de que tinham participado numa grande asneirada. Não me detive muito tempo por ali e, vendo os ânimos serenados definitivamente, afastei-me aparentando calma e serenidade, mas intimamente envolvido num turbilhão de pensamentos e de interrogações sobre se eu próprio teria procedido da melhor maneira.

Para mim, as decisões que normalmente se seguem a grandes e inesperados acontecimentos, nunca devem ser tomadas a quente. E por isso me dirigi para a palhota, onde voltei a estender-me sobre a esteira de verga, reflectindo agora no incidente em que acabara de participar. “Que diabo, homens casados e com filhos na Madeira, a portarem-se assim”! E eu? Não acabara também por fazer o mesmo? Bem… não foi exactamente a mesma coisa, eu fiz isso apenas para separá-los e para impor a necessária disciplina, coisa que a mim competia nessa altura! Mas não haveria outro modo, sem ser a bater? Talvez houvesse, mas eles não obedeceram doutra forma…”

Foi longa a minha meditação sobre o assunto, que continuei a amadurecer durante a noite, julgando-me apto a reagir na manhã seguinte. E a primeira coisa que fiz foi mandar chamar os soldados Silvestre, a quem fiz questão de receber juntos. Quando os vi entrar – ambos de rosto alterado e demonstrando preocupação -, concluí de imediato que também eles não tinham passado bem a noite. Era sabido que atitudes como aquela, se participadas, poderiam ser alvo de duro castigo, e isso eles não queriam, a poucos meses do final da comissão de serviço. Por isso optei por falar com eles utilizando firmeza na voz mas alguma compreensão no semblante.

- Dá licença, meu furriel?
- Entrem, se fazem favor e fechem a porta.
- O “nosso” furriel mandou chamar?
- Mandei, mandei. Que é que vos parece?
- Pois…

E foi então que eu, com alguma verborreia para não correr o risco de eles me interromperem, lhes fiz ver a gravidade do que tinham feito. Falei-lhes no único inimigo que tínhamos de enfrentar e que se encontrava lá fora, na defesa da imagem da guarnição perante as populações nativas, na necessidade de preservação da harmonia no interior do pelotão, no perigo de um deles se magoar seriamente, nas “notícias” que poderiam ser enviadas para a Madeira pelos seus próprios colegas, nas questões disciplinares ligadas a factos como aquele, mas também no problema que me tinham criado quando me vi obrigado a agredi-los para manter a ordem e a disciplina, a eles, homens casados e já com filhos a crescer…

Conforme ia falando, também os fixava intensamente. E comecei a aperceber-me que os rostos crispados que detinham até ao início da conversa, se iam distendendo quase imperceptivelmente, e o olhar tenso se ia transformando, parecendo dar a entender algum alívio e compreensão pelo que eu ia dizendo, e que eles escutavam atentamente.
Quando acabei de falar, gerou-se um silêncio pesado dentro daquele exíguo espaço fechado, tardando a ser quebrado por um deles, que entendeu dizer-me:
- Meu furriel! É só isso que tem para nos dizer?
- É, Silvestre. É só isso que tenho para vos dizer…
- Pois, meu furriel, nós pensávamos que vínhamos cá para ouvir qual era a “porrada” que íamos apanhar…
- Não Silvestre, não há “porrada” nenhuma. Eu queria é que vocês tivessem mais juízo e não me obrigassem nunca mais a fazer uma figura daquelas!
- Mas, meu furriel, nós os dois já fizemos as pazes ontem, e até viemos juntos para cá. Aquilo foi um bocado de cerveja a mais, e passou logo…
- Pois passou – acrescentei eu – mas o espectáculo toda a gente o viu ou soube dele, e eu não escapei a isso tudo que vocês criaram. E isso não tinha que acontecer!
- O meu furriel dá licença que lhe diga? Pois bateu e bateu muito bem! Nós até vínhamos para cá a dizer que ainda tínhamos levado poucas, depois do sarilho que armamos. E até vamos ser muito mais francos, pois vínhamos também a conversar que, se apanhássemos uma “porrada”, ela seria muito bem merecida! O “nosso” furriel que nos desculpe, mas isto também nunca mais torna a acontecer.

Fiquei sentado por uns instantes, que julgo que foram breves. E avaliei a simplicidade daqueles homens endurecidos por uma vida adversa na Madeira, e depois por longos meses de isolamento no mato da Guiné, por noites sem dormir, e por tantas, tantas saudades que mal caberiam na pequena ilha onde os tínhamos ido buscar, e que não podiam visitar, mesmo no gozo das férias a que tinham direito, pois não dispunham de dinheiro suficiente para a viagem de avião. Intimamente, senti-me ainda pior do que quando decidi chamá-los, e experimentei um estranho aperto na garganta face àquela demonstração de genuína humildade, contendo a possibilidade de qualquer outra palavra que pudesse indiciar um pedido de desculpas que decerto eles não compreenderiam mas eu achava muito natural nesse momento.
Depois, em comedido impulso, dei eu próprio dois passos em frente, torneando a mesa que tinha entre mim e eles, e abracei ambos sem levar em conta a eventual existência de alguma regra militar que me impedisse de o fazer. Foi apenas um curto momento, resultante dum gesto espontâneo e imediatamente correspondido, qual bálsamo salutar e mitigador das asperezas duma guerra crua.

No calor ameno de um sol primaveril que me visitava no quintal, eu trouxe à memória o rosto dos Silvestres do meu pelotão, emergentes daquele grupo de homens rudes e humildes, que nos olhavam directamente nos olhos, e que eram solidariamente firmes como as rochas são dos montes, quando as incidências da guerra aconteciam. Os Silvestres nada tinham a ver um com o outro, a não ser o facto de terem nascido na mesma ilha, e de serem tão bravios quanto ela era há mais de 40 anos. Mas eram os homens do meu pelotão, em quem confiava cegamente e que me alegraram sempre com a sua amizade, presente ainda nestas cogitações - que por vezes alimento - sobre a crueza duma guerra que alguns querem fazer esquecer, mas que foi apenas mais uma, entre tantas que o mundo alimentou.

Nestes curtos momentos em que lhes dedico o meu pensamento, eu sinto por eles a mesma gratidão e a mesma amizade.

(Com esta história verídica, pretendo apenas prestar homenagem aos madeirenses de quem guardo grata memória)

Cândido Morais
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12448: História da CCAÇ 2679 (65): Dia da Raça (José Manuel Matos Dinis)

Guiné 63/74 - P12565: O Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - As acções especiais durante o segundo semestre de 1973 (parte I) (Jorge Araújo)

1. Mensagem do Jorge Araújo (ex-Furriel Mil. Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), com data de 25 de Novembro de 2013:

Caríssimo Camarada Luís Graça,
Os meus melhores cumprimentos.
Depois de três narrativas tendo por enquadramento histórico a «Ponta Coli» [Postes: 9698; 9802 e 12232], eis outra, agora referente à presença dos camaradas militares da CART 3494 na «Ponte do Rio Udunduma».
Entre a “Ponta…” e a “Ponte…” o que muda é a vogal, uma vez que a substância da nossa missão era a mesma: «SEGURANÇA», mas em diferentes pontos [locais] na Estrada Xime-Bambadinca, afastados, entre si, meia-dúzia de quilómetros.
Ora leiam a 1.ª parte.

Obrigado
Jorge Araújo
Nov/2013


O DESTACAMENTO DA PONTE DO RIO UDUNDUMA 
(XIME-BAMBADINCA) 

- As acções especiais durante o 2.º semestre de 1973 [parte I] -

1. A génese da segurança à Ponte do Rio Udunduma 
 - Antecedentes históricos 

A história diz-nos, enquanto memória de um passado que continua presente, que a segurança à 1.ª Ponte [velhinha] do Rio Udunduma, situada na Estrada Xime-Bambadinca, teve o seu início no dia 29 de Maio de 1969, 5.ª feira, na sequência da dupla acção do PAIGC, levada a cabo na noite do dia anterior (28/29Mai69) por dois bigrupos (cerca de 100 elementos). Essas duas acções tiveram como alvos o ataque ao Aquartelamento de Bambadinca, sede, à época, do BCAÇ 2852 (1968/70), e, simultaneamente, à Ponte do Rio Udunduma, situada a cerca de quatro quilómetros desta localidade, a qual foi dinamitada, resultando desse acto ter ficado parcialmente danificada, conforme se pode observar nas imagens a baixo.

Foto 1 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma – Jul/1973] – imagem de como ficou a ponte velha na sequência da explosão de 28Mai1969, obtida ao nível do solo.

Foto 2 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma – Jul/1973] – imagem da ponte velha, obtida da nova estrada onde foi construída uma nova ponte sobre o rio, inaugurada entre finais de 1971 e início de 1972. 

Os primeiros operacionais das NT a avançar para esse local foram os do 3.º GComb da CART 2339 (1968/69), sediada em Mansambo, sob o comando do Furriel Carlos M. Santos (Vd Postes: 7459 e 7859).

Foto 3 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma – Jul/1973] – imagem da estrada velha, assinalando-se a ponte semidestruída em 1969, e Bambadinca, ao fundo, como local mais próximo, a quatro quilómetros desta. Na linha do horizonte, vê-se a nova estrada na qual é possível contar uma coluna de mais de uma dezena de viaturas civis, em direcção ao Cais do Xime. 

Recuperado o controlo daquela pequena fracção de terreno circunscrita ao afluente do Geba e da bolanha contígua, a Ponte do Rio Udunduma, mesmo depois de ter ficado bastante danificada, não mais voltou a estar/ficar desprotegida até ao fim da guerra de guerrilha [Abril/1974], devido à decisão de aí se instalar uma força militar [especial] que, com o decorrer do tempo, haveria de dar lugar à organização de um Destacamento [amostra de… ou mini…].

Entretanto, uma nova ponte haveria de ser construída a seu lado, a poucas dezenas de metros, maior e perfeitamente adequada ao grande fluxo rodoviário, civil e militar, que diariamente circulava nesta estrada, com ligação a toda a zona leste do território, com maior destaque para as localidades de Bafatá, Nova Lamego, Piche, Canquelifá, Galomaro e Saltinho. Segundo julgo saber, a sua construção esteve a cargo da empresa Tecnil, e a sua inauguração deverá ter ocorrido entre finais de 1971 e início de 1972.

Foto 4 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma – Jul/1973] – imagem da nova ponte construída pela empresa Tecnil. Ela foi obtida da ponte velha.

Durante cinco anos, muitos foram os camaradas que aí permaneceram vigilantes, num contexto desprovido de qualquer retaguarda de apoio militar, em que cada um de nós estava completamente abandonado à sorte da divina providência e à sua couraça, tendo como mais-valia a capacidade de sobrevivência, pois se tivesse acontecido algum ataque, ele seria sempre de surpresa, e, por esse método, nem os peixinhos se salvavam. Em suma: miserável e degradante, já que não tinha rigorosamente nada. Ou melhor, tinha o que as imagens abaixo deixam entender.

Foto 5 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma – Jul/1973] – imagem de um buraco aberto no chão, coberto de troncos de palmeira, terra e chapas de zinco a cobri-los, protegido no exterior com bidões de gasóleo cheios de terra, com uma pequena abertura, tendo no seu interior uma cama de ferro, especial do mobiliário militar, com colchão adequado …a um sono tranquilo [que enorme ironia].

A cama tinha um mosquiteiro comprado em Bafatá, nas “libanesas”. Este acabaria por ter uma dupla função, na medida em que, protegendo-nos dos mosquitos e das melgas, servia também de cama elástica e/ou trampolim para treino de flexibilidade e destreza dos ratos do mato que nos visitavam durante a noite, em sessões contínuas. Para além desta actividade físico-desportiva em ginásio coberto, sem necessidade de inscrição prévia ou celebração de contrato de fidelização, a equipa de roedores ainda tinha a pouca vergonha de nos levar os sabonetes e as meias para a sua comunidade, algures nas redondezas, certamente muito importante na sua higiene.

Era, então, um contexto maravilhoso … e com muita animação.

Foto 6 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma] – o mesmo chalé T0 quatro anos antes, com o camarada furriel Humberto Reis, do 2.º GComb da CCAÇ 12, em momento de reflexão (P7481), aguardando… talvez a passagem do carteiro? ou, ainda, uma boleia para a metrópole? OU…? Só o próprio nos poderá dizer!

Entre o tempo das fotos 5 e 6 [quatro anos], outros camaradas por lá passaram de diversos Grupos de Combate destacados das Unidades instaladas naquele Sector (L1), considerado um dos de maior vastidão em todo o TO, nomeadamente: CART 2339 (1969), de Mansambo – CART 2520 [1969 - 2 secções], do Xime – CCAÇ 12 [1969-71], de Bambadinca – PEL CAÇ NAT 52 [1972] – PEL CAÇ NAT 63 [Out/1972] – CART 3493 [Mar/1973 - 2 secções], de Mansambo – CART 3494 [Abr/1973-74 - 1 secção +], de Mansambo-Xime.


2. As acções especiais durante o 2.º semestre de 1973 

Com a transferência do Xime para Mansambo, ocorrida nos primeiros dias de Março de 1973, a CART 3494, através dos seus diferentes GComb, passou a ter uma agenda e missões muito distintas das que tinha tido anteriormente no Xime, o que é perfeitamente natural e normal, pois não havia [não há] dois contextos iguais.

No nosso caso, foi-nos atribuída mais uma missão especial: a de comandar uma “secção +” do meu pelotão [o 1.º], num total de doze elementos, com o objectivo de proteger a(s) Ponte(s) do Rio Udunduma, actividade que registava já quatro anos.

Avançámos com armas e [poucas] bagagens, na medida em que as condições logísticas e físicas do local eram incrivelmente pouco dignas e, por essa razão, um desafio permanente à superação de qualquer ser mortal.

Não havia nada… mas mesmo nada… com excepção de capim, três buracos no chão, muitos mosquitos e alguns ratos, conforme relatos anteriores. Electricidade cá tem. Água cá tem. Comida cá tem. Mas criatividade e improvisação… muita.

Dois petromax e a claridade da lua; alguns lustres de garrafas de cerveja; poucas velas de cera, reforçadas com meia-dúzia de isqueiros [os dos fumadores], era esta a panóplia de instrumentos que iluminavam os nossos olhos e ideias e aqueciam, simultaneamente, os nossos corações, durante as noites. Mas, como o ser humano é um ser de assimilação e de acomodação [tal como se verifica nos tempos de hoje], as semanas e os meses lá foram passando ao ritmo de… um dia de cada vez.

Esse ano de 1973 foi um ano muito duro para todos nós, militares no CTIG. E no local da Ponte do Rio Udunduma não foi diferente ou excepção. As orientações recebidas dos meus superiores, em particular do comando da CCS, de quem o “grupo especial” dependia logisticamente, assentavam num dualismo cartesiano [de René Descartes, 1596-1650], construídas na ideia de que de dia era para trabalhar, à noite era para estar vigilante. Enfim… já passaram quarenta anos.

Como não fomos para a Guiné em viagem de turismo, as alternativas eram escassas ou quase nulas, pelo que, a bem da defesa pessoal e da melhoria das condições de vida naquele contexto, lá metemos as mãos à(s) obra(s), levando-nos a alterar, significativamente, a sua paisagem por via de algumas benfeitorias.

Dito isto, passaremos em revista três dessas acções especiais, organizadas por fases, e que completam a primeira parte desta história da nossa vida colectiva.


A) – FECHO DO CONDOMÍNIO…


Fotos 7 e 8 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma] – a primeira acção especial desenvolvida por elementos do 1.º GComb, da Cart 3494 [um grupo constituído por uma dúzia de militares = a 1 secção +], foi a delimitação do território, do então designado «Destacamento da Ponte», ou, ainda, por «Condomínio da Ponte». Merece relevo a elevada capacidade técnica de todos os seus executantes. [O 1.º, na foto 8, é o soldado Joaquim Cerqueira, do lugar da Valinha - Amarante].

Tratou-se de uma experiência de alto valor pedagógico, na justa medida em que fez apelo à motricidade fina do efectivo aí residente, por via de não existirem protecções das mãos, vulgo luvas, na manipulação do arame farpado. De referir, que esta acção aconteceu na época das chuvas.


B) – CONSTRUÇÃO DE NOVAS MORADIAS…


Fotos 9 e 10 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma] – as imagens dão conta do modelo de arquitectura da nova moradia T1. Era rectangular, com duas águas, e tinha dois quartos e uma sala de jantar, mas não havia comer. Os alimentos, confeccionados em Bambadinca, na CCS, chegava-nos às diferentes horas do dia, segundo a sequência das refeições. 

O edifício foi construído junto ao caminho da “estrada antiga” [picada].
Como estará hoje?


C) – CONSTRUÇÃO DA “ROTUNDA DA PONTE” – A 1.ª NO MATO …


Fotos 11 e 12 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma] – as imagens referem-se à «Rotunda da Ponte» que decidimos construir [sem projecto, logo sem aprovação autárquica] como ícone da CART 3494, através da reprodução do seu símbolo. Para a sua construção foi utilizado o cimento sobrante da moradia e as pedras foram retiradas dos espaços envolventes da nova ponte. Para sinalizar a aproximação à rotunda foi pintada a base [disco] de um bidão de gasóleo com “obrigatório circular” e colocado em local visível, na extremidade de um tubo de ferro. Como curiosidade, todos os veículos que por lá passavam [em particular o jipe do CMDT OP do BART 3873], os seus condutores cumpriam o código da estrada. 


D) – INSTALAÇÕES DE APOIO…

Foto 13 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma] – imagem referente às óptimas condições higiénicas do aldeamento… de muitas estrelas… sobretudo à noite.

É possível, ainda, observar os nossos animais da/de companhia, em processo de socialização… e de solidariedade.

Com esta imagem, damos por concluída a primeira parte da história referente à nossa passagem pela Ponte do Rio Udunduma – 2.º semestre de 1973.

Espero que tenham gostado de a ler, independentemente de aqui e ali ter utilizado alguma ironia e imagens metafóricas, e de ver as imagens seleccionadas.

Como complemento, acredito que a narrativa tenha servido, quiçá, como elemento de comparação com um vasto leque de outros exemplos que constam do currículo de muitos de Vós, e que ainda estamos a tempo de dar conta na nossa «Tabanca».

Um forte abraço para todos, com muita saúde e energia.
Jorge Araújo.
Nov/2013