sábado, 20 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14057: (Ex)citações (255): O Marcelino da Mata, que foi um militar valoroso, não precisa que se inventem, e lhe atribuam episódios desse género (Domingos Gonçalves)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 18 de Dezembro de 2014, com a resposta a um comentário de Manuel Luís Lomba:

Prezado Dr. Graça

Envio um pequeno esclarecimento pedido pelo camarada Luís Lomba, que poderá publicar, caso o entenda oportuno.

Um abraço.
Domingos Gonçalves


2. Comentário do nosso camarada Manuel Luís Lomba deixado no Poste 14033(*)

Camarada Domingos Gonçalves.

A viagem do paquete Uíge que vos desestivou no Pidjiquiti, retornou com o nosso batalhão (705) e destivou-nos no Cais da Rocha.

No livro "Crónica da Libertação", Luís Cabral diz que ele e o Chico Mendes, a autoridade máxima na zona Norte, haviam chegado na noite da véspera a Cumban-Hory para a cerimónia de despedida de cooperantes cubanos e do final da formação do Corpo de Comando - uma força de elite de intervenção, réplica aos Comandos de Bissau.

Aquela base estaria para o PAIGC como Brá estaria para o Comando-chefe.

Diz também que o nosso grupo de assalto fez a aproximação pelo lado da enfermaria e os dois teriam sido apanhados de surpresa, se a sentinela não tivesse chegado a avisar o capitão cubano Pina, o instrutor de artilharia e chefe dos cooperantes cubanos, que lançou o alarme, o que não impediu dele e Chico terem de atravessar a bolanha em fuga, tocados à morteirada.

Conta que deixámos quatro corpos, despedaçados pelas suas bazucadas T 21, perto da tenda onde os dois dormiam e sobre o depósito subterrâneo de material de guerra, que não descobrimos. E admite terem neutralizado as nossas transmissões, porque a aviação não apareceu.

Tu dizes que o primeiro sinal rádio dos operacionais aconteceu pelas 08h30 e com o DO do correio.

O nosso grande Marcelino da Mata disse, reprodução do blogue "Rangers & Coisas do MR", que o assalto foi feito por ele e o seu grupo "Roncos de Farim" e que os quatro mortos, dois europeus e dois africanos, pertenciam-lhe.

E disse que a CCaç 1546 havia sido apanhada à mão numa operação junto à fronteira, em Agosto, e que foi ele e o seu grupo de Comandos que a foi libertar do cativeiro no Senegal, trazendo-os de regresso... em cuecas.


Como para nós a guerra nunca acaba, podes esclarecer?

Um Abraço
Manuel Luís Lomba


3. Esclarecimento do camarada Domingo Gonçalves.

Prezado Manuel Luís Lomba:

Respondendo ao teu pedido de esclarecimento tenho a referir o seguinte:

Quando se realizou a operação em causa eu estava a comandar o destacamento de Guidage pelo que acompanhei muito de perto a operação Chibata.

Os Comandos de Farim - os Roncos -, como eram conhecidos, participaram na operação, comandados pelo Marcelino da Mata, que teve, uma intervenção importante no desenrolar dos acontecimentos.

Participei, aliás, em várias ações levadas a cabo pela CCAÇ 1546, reforçada pelo citado grupo. O Marcelino era um combatente arrojado. Teve influência decisiva em várias ações de combate. Ele e o grupo, claro. 

Contudo, sobre o episódio da libertação de prisioneiros, pertencentes à minha Companhia, apenas posso referir, que é mentira. Quer a minha Companhia, quer as outras duas, a 1547 e a 1548, que integravam o BCAÇ 1887, fizeram, ao longo da sua permanência na Guiné, prisioneiros, mas não sofreram prisioneiros.

Vi, também, na Net, a descrição do episódio que referes. 
Uma libertação, aliás, de prisioneiros, de forma bastante simplória. Como disse, é pura mentira.

O Marcelino, que foi um militar valoroso, não precisa que se inventem, e lhe atribuam episódios desse género.

Os mortos em causa foram:
- José Miranda, do BCaç 1887
- António Pires Correia, da CART 1691 (Roncos)
- Sali Jaló, do Pel Mil - 5.ª CMIL (Roncos) e
- Fódè Baio, do Pel Mil 116 -5.ª CMIL (Roncos).

Esta identificação é retirada do relatório de atividades do batalhão 1887.

Ao fixar-me no teu nome, penso que cheguei, e bem, à conclusão de que és, e resides, na zona de Barcelos. Tivemos, penso que durante cerca de três anos, um percurso de vida comum, nos anos de 1954, 1955, e 1956. Recordas-te?

Um abraço de Boas Festas
Domingos Gonçalves  (**)
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 Notas do editor:

Guiné 63/74 - P14056: Conto de Natal (21): Mãe, espero que vossemecê faça o presépio ao pé do forno de lenha (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Dezembro de 2014 com o seu Conto de Natal:

Queridos amigos,
Envio-vos esta lembrança com os melhores votos de mil alegrias natalícias e um 2015 muitíssimo melhor do que este, em sonhos, projetos, pleno de carinhos familiares, um abraço do
Mário


Mãe, espero que vossemecê faça o presépio ao pé do forno de lenha

Beja Santos

Sei que as coisas aconteceram aí pela segunda semana de Dezembro, mas não sei precisar a data. Viera a Bambadinca depois de uma noite a montar segurança em Mato de Cão, os batelões, com uma LDM à frente, entraram no Geba Estreito ao romper da alva, nem refleti duas vezes, pedi boleia para toda a minha malta, e na viagem fui distribuindo tarefas: tu e tu vão tratar do material de transmissões; aquele e aqueloutro pegam nas requisições da comida e lembram ao vagomestre que voltaremos dentro de três dias, dali não sairemos sem uma caixa de bacalhau, traremos o “burrinho” até à margem do Geba; e vêm comigo sicrano e beltrano e vamos até à engenharia por causa dos sacos de cimento e dos prometidos rolos de arame-farpado. Cada um faz o mata-bicho por sua conta, arrancamos para Finete antes do almoço.

Chegámos, pois, cedo, quando a CCS entrava em ebulição, e deu para avistar o comandante a caminho do seu gabinete, saudei-o à distância, tinha mais que fazer. Discutia com o Furriel Dário alguns outros materiais de construção quando avançou em pose Bala, o 19, a intendência do Comandante, fez a continência, mostrou dois dentes em ouro e anunciou: “Nosso comandante precisa de conversar com alfero, logo que esteja despachado vá ao gabinete, é coisa para tratar antes de partir para Missirá, sem falta”. Tudo levava a crer que, dentro do ritmo normal das coisas, se abria a perspetiva para: convocatória para uma operação; advertência para que não houvesse atrasos no pagamento do pré aos caçadores nativos; mais uma sangria de uma seção das milícias para as novas tabancas em autodefesa, cenário de protestos meus e até pedidos para ser retirado daquela guerra de fantasia, a querer melhorar os quartéis, a abastecer imperativamente centena e meia de civis em duas tabancas e com gradual redução de efetivos. Chegara há pouco tempo e já estava farto de tanta omeleta sem ovos, uma guerra de guerrilhas em tom pobrete e sem alegrete.

Mas não, o Comandante recebeu-me não esfusiante mas estranhamente compreensivo, até parecia estar interessado com o andamento das escolas, a melhoria dos abrigos, transmitia-me que o régulo lhe viera agradecer pessoalmente os benefícios que estavam a ser introduzidos no seu território. E após este discurso amenizado, comunicou-me que houvera ali um desacato com um soldado básico, um abrutado que só tinha altura e peso, que comia arrobas de batata, arroz e massa e que, dois dias antes, numa estúpida discussão, enfiara uns sopapos valentes num cabo da manutenção das viaturas que tivera de dar baixa à enfermaria com os maxilares deslocados, ainda não era líquido que o homem não estivesse fraturado. “Faça-me o favor, leve-me aquela besta consigo, não lhe pode dar uma arma para as mãos, dê-lhe trabalhos de trolha, de carpintaria, coisas assim, não o ponha em reforços, é tão brutamontes que não percebe que não pode dormitar no posto, aqui não pode ficar mais tempo, aguente-o, converse com ele, fale-lhe maneirinho, é impossível trazê-lo à razão, o tipo deve ter serradura na cabeça. Daqui a um mês falamos, deixe passar o Natal, pode ser que o anormal se dê melhor lá no fim do mato do que aqui”.

Chamava-se Anastácio, era natural de um lugarejo perto de Pedrógão Grande, suspirava pelos campos de milho, as plantações de batata e o pastoreio das cabras. Frequentara sem nenhum sucesso a escola da freguesia de Vila Facaia, a professora sentiu-se derrotada, o Anastácio não queria nada com a tabuada, a leitura, a redação, nenhum trabalho escolar o impressionava, trabalho só os do campo. O corpo era uma desmesura, quase um metro e noventa, um volume de carnes a fazer pregas, umas manápulas que pareciam enxadas, um vozeirão cavo e quando soprava qualquer sílaba dilatavam-se-lhe as ventas, as sobrancelhas pilosas avançavam pela testa estreita, parecia mato à solta.

O Anastácio acomodou-se, circulava pacífico, adorava ir buscar água à fonte de Cancumba, desmatou furiosamente, criou horta, fez bancos, conversava com os miúdos animadamente. Vieram reclamações do abrigo do Raposo, contrabandista no Marvão, o soldado básico emprestado a Missirá roncava como uma locomotiva, sacudiam-no, era o mesmo que nada. E o cozinheiro andava de boca à banda, com aquela enfardadeira que não se contentava com palha.

Passavam-se os dias, e começou-se a discutir a festa de Natal, a consoada e o almoço do dia 25, primeiro para os homens grandes, depois para as mulheres e crianças, e depois para nós. O Anastácio ouvia tudo sem comentários. E um dia, a seguir ao almoço, acompanhou-me até à morança, e abordou-me:
- Meu alferes, quero que escreva à minha mãe, há coisas que não posso dizer pelas mãos dos outros.
- Olha, agora dava-me jeito, tenho que partir às quatro horas para Finete, antes ainda tenho uns papéis para assinar que seguirão para Bambadinca, entra, senta-te ali, tenho aerogramas que cheguem.

O Anastácio não cabia na cadeira, mandei-o sentar-se na minha cama, o folhelho gemia com aquele peso descomunal. Ele mexia-se a todo o instante, o folhelho parecia agonizar.

- Então diz lá o que deve seguir para a tua mãe.

"Mãe, saúde e felicidades para vocês todos, quero que a minha irmã Ermelinda vá ao Troviscal dizer à avó Zulmira que compre roupa com aqueles duzentos mil réis que foram na carta que mandei em Novembro. E que não me faça mais camisas de lã porque aqui não fazem jeito. Passo a vida a pensar nos meus animais, na égua que o meu pai me deixou, na burra e nas cabrinhas, fico contente em saber que nada lhes aconteceu. O dinheiro que vossemecê recebe é para a vaca, mas também para a promessa que fizemos à Senhora da Confiança se nada me acontecer aqui nesta guerra. Estou agora num sítio onde não me chateiam, mas a comida é um castigo, a carne das cabras não serve para fazer chanfana, o chouriço não tem gosto e há poucos legumes, felizmente que podemos comer bacalhau de vez em quando. Como à gente de cá, farto-me de comer arroz se não passo fome. 
Mãe, tenho um pedido para lhe fazer neste Natal. É o presépio que eu comprei na agência funerária da Sertã, tinha pouco dinheiro e só comprei o Jesus, a Senhora, S. José e aquela placa que lembra a casa dos animais. A vaca não me sai da cabeça, peço ao meu irmão Eduardo para pegar na mota e ir a Pedrógão à loja do Gil para comprar as figuras da vaca e do burro, nunca lhe perdoarei se ele não me fizer a vontade. E já que tem lembranças minhas, faça-me a vontade e tire essas roupas de preto, ainda não estou no cemitério, vista-se como se vestia antigamente, tristezas não pagam dívidas. E tenho mais outro pedido, é fazer-me o presépio e pôr musgo, gostava que ele ficasse ao pé do forno de lenha para eu me lembrar das noites frias e de estar quentinho ali ao pé, já lhe disse noutras cartas que este calor não interessa a ninguém, estou sempre a transpirar, vejo-me obrigado a tomar banho todos os dias e mesmo assim não fico satisfeito porque logo a seguir vêm os mosquitos a picar nas minhas banhas a escorrer. 
Mãe, não sei o que é que hei de dizer mais, é um oficial quem está a escrever a carta dentro de uma cubata, aqui a gente é mais pobre do que nós, felizmente ninguém me diz coisas desagradáveis, posso adormecer a ouvir música que ninguém me diz palavrões. 
Mãe, não se esqueça da promessa da vaca e do burro. Diga aos meus irmãos para me escrever. Vá estando atenta às vacas da feira de Pedrógão, eu quero um bicho gordo para recomeçar a minha vida quando para o ano para aí voltar. Não se esqueça que é ao pé do forno de lenha, ouviu?"

- Desculpa lá, pá, já vamos em três aerogramas, estás-te a repetir com esta história da vaca e do burro e do forno de lenha, ainda tenho coisas para fazer, ficamos por aqui, está bem?
- Obrigado pela sua paciência. Falou ali à mesa que queria ir a Bafatá comprar peças do presépio. Se não houver lugar para mim, não se esqueça de comprar uma vaca e um burro que eu depois faço contas consigo, é um assunto meu.

O Anastácio montou o presépio. Na hora da consoada pôs o Menino Jesus em cima de umas palhinhas e avisou: “Agora vou buscar um fogareiro, é o que há de mais parecido com o fogão de lenha da casa onde eu nasci e para onde estou ansioso por regressar”.

Imagem extraída do blogue Olhar Viana do Castelo, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de Dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14051: Conto de Natal (20): O "amor" de um bode ou a solidariedade entre animais (Manuel Luís R. Sousa)

Guiné 63/74 - P14055: Memória dos lugares (279): Samba Silate, no pós 25 de abril de 1974: As saudades que a guerra não conseguiu apagar mesmo nos guerrilheiros do PAIGC (António Manuel Sucena Rodrigues, ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972/74)

António M. Sucena Rodrigues
em 1973
1. Mensagem, de 18 do corrente, do António Manuel Sucena Rodrigues [ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972/74; membro da nossa Tabanca Grande desde 2008]:

Boa noite,  Luís Graça


É a primeira vez que envio um texto para o blogue. Conta um pequeno episódio, em anexo, que se passou pouco depois do 25 de Abril.

Marca o fim da guerra e o início da paz, o que se enquadra bem nesta época natalícia, apesar de não se ter passado no Natal.

Aproveito para enviar um abraço aos camaradas que se podem identificar nas fotos (tiradas com a máquina que referi no inquérito recente, uma KOWA e que ainda mantenho), em especial ao então Capitão Simão que nunca mais encontrei, com grande pena minha.

Para todos os camarigos, em especial para ti e toda a equipa que mantém este blogue, "no ar", desejo um Feliz Natal e Bom Ano Novo

Um Alfa Bravo.


António M. Sucena Rodrigues
em 2004
2. Memória dos lugares > Samba Silate > As saudades que a guerra não conseguiu apagar mesmo nos guerrilheiros do PAIGC

por António M. Sucena Rodrigues


Cumpri a minha comissão de serviço na Guiné de 23 de Junho de 72 a 30 de Julho de 74. Apanhei lá o 25 de Abril como se pode concluir e por isso tive oportunidade de viver a transição da guerra para a paz. Guardo disso algumas recordações que vou agora contar. 

Estive na CCaç 12 (pertenci à 3ª geração de militares europeus da companhia), inicialmente em Bambadinca e posteriormente no Xime. A vida neste local era certamente igual à que se vivia no resto do teatro de operações da Guiné (salvo alguns casos pontuais, quiçá mais complicados): actividade operacional quanta baste, incluindo as habituais flagelações ao quartel, normalmente de curta duração, que ocorriam aproximadamente de duas em duas semanas e que de resto nunca deixaram mossa grave, com excepção de duas delas, sendo que uma dessas foi a última, e aconteceu poucas semanas depois do 25 de Abril.

Foi um ataque ao cair da noite como normalmente acontecia, com características algo diferentes daquilo que era habitual. Durou mais tempo, com disparos da artilharia (ou RPG) inimiga mais espaçados. Curiosamente uma dessas granadas atingiu uma árvore de grande porte por cima da tabanca tendo os estilhaços ferido alguma população. Foram de imediato tratadas na enfermaria (às escuras). Lembro-me, pelo menos de duas mulheres, uma delas grávida já quase no fim do tempo, e de algumas crianças. É de realçar que nem as mulheres nem as crianças disseram um “ai” que fosse, antes, durante ou depois dos tratamentos. Isto mostra um conformismo com o sofrimento e uma capacidade impressionante de suportar a dor, certamente adquirida pelo “calo” da guerra. Imaginem se fosse cá … .

Mas voltemos ao que interessa. Não foi por acaso que se tratou de um ataque diferente dos habituais. Enquanto estávamos debaixo de fogo verificámos que havia disparos de RPG tracejantes nas nossas costas e algo distantes, o que nunca tinha acontecido. É que ao mesmo tempo foi atacada a tabanca de Samba Silate (*). 

Esta tabanca recebia população refugiada, vinda das chamadas zonas libertadas. Era colocada ali porque, dada a sua localização, tornava-se muito difícil sofrer um ataque de retaliação por parte da guerrilha. De um lado tinha a estrada Bambadinca-Xime e do outro a bolanha e o rio Geba. Pode-se dizer que executaram uma operação bem planeada. Impediram-nos de sair do quartel, atacando-nos durante o tempo necessário, enquanto outro grupo destruía parte da tabanca de Samba Silate.


Foto nº 1 > Xime > CCAÇ 12 (1973/74) > Pós 25 de abril de 1974 > "À esquerda está o 1.º guerrilheiro, que apareceu no Xime, devidamente fardado e desarmado, após o 25 de Abril e poucas semanas depois do último ataque ao Xime em simultâneo com o ataque à tabanca de Samba Silate; à direita está o Jamil (não sei se é o nome correto), que era de etnia Balanta (?) e habitava na tabanca do Xime. Era bem conhecido entre nós como sendo um possível informador do PAIGC. Foi ele que recebeu o guerrilheiro e o levou junto do capitão Simão.


Mas a história não acaba aqui. Não nos podemos esquecer que já tinha acontecido o 25 de Abril. Porém a paz oficialmente ainda não tinha sido acordada entre as novas autoridades portuguesas e a direcção do PAIGC.  Ainda não tinham começado as primeiras conversações em Londres, com Mário Soares do lado de Portugal e Pedro Pires do lado do PAIGC.Passaram mais umas duas ou três semanas e apareceu na tabanca do Xime, pela primeira vez, um guerrilheiro fardado e desarmado. (Foto nº 1).

Foi ter à tabanca de um africano, homem magro e alto, salvo erro de etnia balanta (?), que se chamava Jamil (?) (talvez algum camarada me possa confirmar o nome) mas que era pouco falador e bem conhecido entre nós porque sempre suspeitámos que se tratava de um informador do PAIGC (Foto nº 1).. Foi ele que levou o guerrilheiro à presença do nosso capitão Simão. (Foto nº 2)



Foto nº 2 > Xime > CCAÇ 12 (1973/74) >  Galhardete, Bandeira do PAIGC, oferecido pelo guerrilheiro ao capitão Simão.


 Houve naturalmente cumprimentos cordiais de parte a parte e lembro-me que esse guerrilheiro ofereceu um galhardete com a bandeira do PAIGC ao capitão (Foto nº 2). Por sua vez, este ofereceu-lhe uma garrafa de whisky ( ou brandy, valha a verdade). Esta garrafa trouxe consequências, como veremos mais adiante.

No dia seguinte, a pedido do guerrilheiro, fomos visitar a tabanca de Samba Silate, pouco antes atacada como referido acima (Foto nº 3). Aproveitei para ir na comitiva e tirar as fotos que agora recordo. Foi a primeira vez e única que lá fui, e estava ali tão perto...



Foto nº 3 > Xime > CCAÇ 12 (1973/74 > Samba Silate > Visita do guerrilheiro à tabanca de Samba Silate, sua terra natal.  De pé, pode ver-se o guerrilheiro (segundo a contar da esquerda), o Jamil (?) (de braços cruzados) e o capitão Simão (de camisola branca e com a mão no cinturão).



Foto nº 4 > Xime > CCAÇ 12 (1973/74) > Samba Silate > Pós 25 de abril de 1974 > A Tabanca de Samba Silate estava ainda em reconstrução, após o ataque que referi no texto.




Foto nº 5 > Xime > CCAÇ 12 (1973/74) > Samba Silate > Pós 25 de abril de 1974 >  Continuação da visita à tabanca de Samba Silate.  É curioso observar, pela imagem, que a população não era certamente de etnia Fula nem Mandinga, mas sim Balanta (porquê?).



Foto nº 6 > Xime > CCAÇ 12 (1973/74) > Samba Silate > Pós 25 de abril de 1974 >  Ruinas da casa onde nasceu o guerrilheiro.  Ao fundo, à direita, pode ver-se a cruz que,  segundo ele, foi construída antes da guerra, por um tal missionário que lá viveu e que ele chamava de padre António [Grillo].


A tabanca estava, como se pode ver, ainda em reconstrução do ataque que pouco tempo antes tinha sofrido, conforme referi acima. (Foto nº 4).

Esse guerrilheiro contou-nos um pouco da sua história: era de lá, 
António Grillo (n. 1925, Acerenza,
Itália),  preso pela PIDE em 23/2/1963; 
faleceu em 18/6/2014,  com 89 anos
 de idade,  na sua terra natal;
há um liceu  Padre António Grillo, 
em Bambadinca (onde voltou, 
como missionário, de 1975 a 1986); 
tinha um fortíssima  ligação 
aos balantas de Bambadinca (LG).
e mostrou-nos, com alguma emoção, as ruinas da tabanca onde tinha nascido e vivido enquanto jovem. Falou-nos também numa cruz em cimento (? ) ainda intacta, a qual, segundo ele, havia sido construída, por um tal padre António [Grillo], missionário que lá viveu antes da guerra (*). Também mostrou as ruinas da tabanca onde viveu esse missionário. (Foto nº 6).

Cumprimentou várias pessoas da tabanca, sem grande euforia, mas sempre com respeito. (Foto nº 5).



Foi uma visita simples mas significativa que durou toda a manhã. Foi a oportunidade de reencontrar um passado que a guerra quase fez esquecer mas que na verdade estava bem presente. A vontade de acabar com a guerra não era exclusiva de uma das partes em conflito. Foi uma manhã emocionante. Todos os que, no mato, pegaram em armas, quer de um lado da barricada quer do outro, eram pessoas de corpo e alma, com sentimentos. Só os mandantes supremos é que não sabiam isso. Isto ficou demonstrado neste episódio simples mas significativo. (Foto nº 7).

Após a visita regressámos ao Xime e o guerrilheiro, não me lembro se nesse dia ou num dos seguintes, regressou ao mato tal como de lá veio, sem que dessemos por isso.

Nos encontros amigáveis e de reconciliação que posteriormente realizámos no mato, em Madina Colhido, ele não esteve presente por razões que nos foram explicadas pelo comandante máximo do PAIGC na zona. É que a tal garrafa de whisky que o capitão Simão lhe entregou, era para oferecer ao dito comandante que, com os seus homens deveriam festejar a paz. Acontece que, no auge das emoções, ele bebeu-a só, logo “enfrascou-se”, e por isso foi castigado com prisão. Quem havia de dizer?...

Logo após o 25 de Abril, a comunicação social imediatamente começou a dar notícias da guerra, o que até aí não era permitido pela PIDE. Este ataque que referi acima, não escapou a essa corrida desenfreada às notícias sensacionais. Imaginem a dificuldade que tive em acalmar os meus pais, depois de ter recebido uma carta deles a falarem exactamente nesse ataque e das suas consequências imediatas.

António Manuel Sucena Rodrigues

Ex-furriel miliciano,
CCaç 12 (Bambadinca e Xime, 1972-74) (**)



Foto nº 7 > Xime > CCAÇ 12 (1973/74) > Samba Silate > Pós 25 de abril de 1974 > Para a posteridade aqui ficou uma foto tirada em Samba Silate em que me apresento com as barbas que mantenho há 40 anos. Apenas mudaram de cor.


Fotos, legendas e texto : © António Manuel Sucena Rodrigues  (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]
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Notas do editor:

(*) Sobre Samba Silate e os acontecimentos do início da guerra, em 1963, vd. postes de:

2 de maio de  2010 > Guiné 63/74 - P6292: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/ Mai 71) (10): Samba Silate


(...) Dantes, Samba Silate foi uma grande tabanca balanta e um importante centro de produção de arroz. Mas na altura em que lá estive, era uma terra desabitada e completamente inculta. Dizia-se que qualquer tentativa dos Fulas para o seu aproveitamento seria gorada pelos Balantas.

Neste chão balanta, o Pe. António Grillo, missionário italiano, desenvolveu uma actividade pastoral florescente, reconhecida por muitas pessoas. Lá estava ainda, a testemunhá-lo, uma grande cruz de cimento erguida no local, assim como uma campa, também de cimento, perto da cruz, com a inscrição de Mateus Iala, balanta, que havia falecido em 1958, apenas um mês depois de ser baptizado.

Ao rebentar a guerra houve um forte movimento de adesão e apoio, em Samba Silate, à guerrilha. A tropa, porém, acudiu atacando e matando indiscriminadamente. Mancaman, do Xime, de quem já falei anteriormente  (...) , disse-me que só em Samba Silate morreram mil pessoas (...), incluindo mulheres e gente muito nova. Os que escaparam, uns foram para o mato, outros para Nhabijães, Enxalé, etc..

Pe. António viu-se implicado nos acontecimentos e, depois de preso, foi expulso, sem qualquer julgamento, para a Itália, donde não voltou mais. Constou que, mais tarde, Spínola autorizou o seu regresso, mas que a PIDE não o permitiu. (...)


14 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3059: Memórias dos lugares ( 9): Bambadinca , 1963 (Alberto Nascimento, CCAÇ 84, 1961/63)

11 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2930: Bambadinca, 1963: Terror em Samba Silate e Poindom (Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84, 1961/63


(**) Último poste da série > 17 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14042: Memória dos lugares (278): Antigos quarteis de Farim e Nema (Patrício Ribeiro, sócio-gerente da Impar Lda)

Guiné 63/74 - P14054: Parabéns a você (832): José Casimiro Carvalho, ex-Fur Mil Op Esp da CCAV 8350 e CCAÇ 11 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de Guiné 63/74 - P14049: Parabéns a você (831): Humberto Reis, ex-Alf Mil Op Esp da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71) e João Melo, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAV 8351 (Guiné, 1972/74)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14053: In Memoriam (214): Ana Paula G. Pires Dias (1962-2014): Homenagem e agradecimento (Armando Pires, jornalista reformado da Antena 1; ex-fur mil enf, CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/71)





Foto: © Armando Pires (2014). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem, de ontem, do  nosso camarada Armando Pires:

Luís, Camarada e Amigo.

Tenho o peito inundado das fraternas palavras solidárias que, através do nosso blogue,  me chegaram, num momento de tão grande provação.

Sinto ainda o calor dos abraços que muitos me quiseram levar.

Um obrigado não chega para tanta emoção.

Peço-te que, quando achares possível, juntes nas páginas do nosso blogue a minha gratidão à homenagem que, no documento anexo, quero deixar à minha mulher.


2. Homenagem & Agradecimento

Levaram o teu sorriso.

Mais do que a dor de o ter perdido, a imensa pena de o teres perdido tu.

Esse sorriso com que, corajosamente, lutaste e enfrentaste os últimos anos, os últimos dias, as últimas horas, em batalhas, sempre na esperança, sempre na espera que a tal luz que esperavas, que esperávamos, se acendesse.

No passado dia 5, escrevias no teu diário:

“Ontem dia de consulta de Transplante (pulmonar). A minha debilidade física acabou comigo numa marquesa, enquanto esperávamos a consulta. Entregues todos os exames ainda em falta e remarcada nova consulta para Janeiro. Temos de arranjar solução urgente e definitiva para selar o abcesso que foi aberto a semana passada, sem isso não posso ser transplantada”.

Agora que a tal luz se acendera, ali mesmo à tua frente, um estúpido sopro da vida, apagou-a.

Quero agradecer a todos os camaradas que aqui me deixaram palavras solidárias. Aos que, com a sua presença, envolveram essas palavras num abraço reconfortante.

É nestes momentos, de duras provas, que ganham maior sentido os laços que nos unem.

A todos o meu obrigado. 

Armando Pires [, foto à esquerda]

[, natural de Santarém, trabalhou na Antena 1 como jornalista, foi fur mil enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/71;; é É presença habitual na Magnífica Tabanca da Linha; mora em Miraflores, Algés, Oeiras; tem sido, além, disso, um ativo colaborador do nosso blogue].

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Nota do editor:

Últimos dois postes da série > 

Guiné 63/74 - P14052: Ser solidário (176): (i) A ONG Ajuda Amiga vai enviar, em janeiro ou fevereiro de 2015, um contentor de 20 pés, de ajuda humanitária para a Guiné-Bissau; e (ii) notícias da campanha contra o ébola (Carlos Fortunato, presidente da Ajuda Amiga)


Guiné-Bissau > Bissau > 18/11/ 2006 > "Em 2006 resolvi fazer uma viagem ao passado e reencontrar os bons amigos que deixei na Guiné, o calor humano que só ali existe, aquele cheiro a África que se sente no mato, e de algum modo reencontrar a minha juventude, mas sabendo que existem ali muitas dificuldades, quis também que fosse uma viagem de ajuda e solidariedade, para com aquela boa gente. (...) Se tivesse que resumir a viagem a uma foto e a uma frase, esta []acima] seria a foto (é uma pessoa desconhecida), e a frase seria "Uma viagem fantástica" (Fonte:  Guiné: Os Leões Negros > Uma viagem fantástica, 226/12/2006, crónica de Carlos Fortunato; Foto editada por L.G., reproduzida aqui com a devida vénia]






(...) "Um grupo de trabalho da Ajuda Amiga constituído pelos nossos médicos, por "especialistas" em crioulo, desenho gráfico, fotografia e a nossa modelo Jessica, produziram um folheto, em português e em crioulo da Guiné-Bissau, no âmbito da campanha de luta contra o ébola, a que a Ajuda Amiga aderiu, através do seu Projecto Stop Ébola.

A campanha de angariação de apoios decorre como o previsto, e cerca de 300 kg de sabão, desinfectantes, e produtos de higiene foram já angariados e estão prontos para seguir para a Guiné-Bissau, no nosso contentor que parte no fim do mês de Janeiro de 2015.

A campanha de recolha de apoios e de sabão está em curso, participe.

Os donativos em dinheiro devem ser enviados para a conta da Ajuda Amiga no Montepio Geral com o: NIB 0036 0133 99100025138 26

O IBAN é o PT50 0036 0133 99100025138 26

ou podem ser enviadas através de cheque passado em nome de Ajuda Amiga, para a sua sede:

Ajuda Amiga
R. do Alecrim, nº 8, 1º Dt.º
2770 – 007 Paço de Arcos" (...)




Lisboa > 15/12/2008 > Reunião com a Porline e a Portmar > Da a esquerda para a direita, dr. José Manuel Vidicas, rerente da Portmar, dr. Carlos Fortunato, presidente da Ajuda Amiga, e Engº. Manuel Pinto de Magalhães, general manager da Portline. O Carlos Fortunato é um homem solidário e que sabe bater às portas certas (Neste caso, a Portline - Transportes Maritimos Internacionais, SA,  e as empresas que lhe estão associadas, Portmar - Agência de Navegação, Lda., e Portline Logistics, Lda.,. importantes pareciros da Ajuda Amiga, garantindo o transporte dos contentores com a ajuda humanitária para a Guiné-Bissau) (Foto: Cortesia do portal da Ajuda Amiga).



1. Mensagem do Carlos Fortunato, nosso grã-tabanqueiro, e presidente da direção da ONG Ajuda Amiga

Data: 13 de dezembro de 2014 às 08:37

Luís

Na ONG Ajuda Amiga está tudo a andar para em Janeiro ou inicio de Fevereiro de 2015 enviarmos mais um contentor com ajuda para a Guiné-Bissau, o ano passado enviamos dois contentores um de 40 pés e outro de 20 pés, este será mais pequeno apenas de 20 pés.

Existe um grupo de 3 membros da Ajuda Amiga que está a planear lá ir, são os camaradas Carlos Silva, Carlos Rodrigues e o Luís Campos, os quais vão acompanhar a distribuição, de qualquer modo temos sempre os nossos voluntários locais, a AD e a Embaixada/Cooperação Portuguesa que também nos apoiam.

Eu não irei em 2015 à Guiné, as nossas despesas são todas suportadas por nós, e lá ir todos os anos fica muito dispendioso.

Realizar um projeto na Guiné é sempre uma aventura, todos os anos aparece sempre qualquer coisa que lança dificuldades inesperadas.

Neste momento as questões a que temos que dar mais atenção é ao processo de desalfandegamento do contentor, e ao ébola.

O ébola apareceu pela primeira vez na Região de Boké, na Guiné-Conacri em Outubro passado, esta região fica junto à fronteira com a Guiné-Bissau, mas aqui o surto foi controlado, mas para sul nomeadamente junto à fronteira sul a situação continua descontrolada.

O vírus assumiu tal dimensão na Guiné-Conacri, Serra Leoa e Libéria, que já não é controlável, assim o número de casos e de mortos vai continuar a aumentar.

De qualquer modo parece-me que nestes pequenos focos que aparecem isolados, a resposta está a ser eficaz, e que os conseguem controlar, o problema,  como já referi anteriormente, foi não terem feito no inicio uma intervenção eficaz e terem deixado a epidemia assumir esta dimensão.

Na minha opinião pessoal agora só com a vacina será possível conseguir controlar esta situação, claro que neste momento significa vacinar 20 milhões de pessoas...

Além do habitual apoio ao ensino e à língua portuguesa, aos idosos,  nomeadamente antigos combatentes, às famílias carenciadas e às crianças, vamos fazer uma pequena campanha de prevenção contra o ébola.

Se houver resposta positiva aos pedidos de apoio financeiro, poderemos dar maior dimensão à campanha de prevenção do ébola, produzindo mais folhetos, distribuindo mais sabão e fazendo mais ações de sensibilização.

A Guiné-Bissau voltou a abrir as suas fronteiras com a Guiné-Conacri no passado dia 9-12-2014, em resposta ao apelo de não exclusão das populações dos países onde grassa a epidemia do vírus, mas Senegal continua com as fronteiras fechadas com a Guiné-Conacri.

A Organização Mundial de Saúde publica periodicamente relatórios no seu site (que pode ser consultado aqui):

Envio-te em anexo o mapa com a situação retirada do relatório de 10-12-2014.

Envio-te também o folheto e o press release que a Ajuda Amiga elaborou sobre o ébola.



Situação da epidemia do ébola na África Ocidental, em 10/12/2014 (Fonte: WHO, 2014)


No nosso site em http://ajudaamiga.com.sapo, na página "Noticias" vamos dando conta das nossas ações, a última noticia foi sobre a visita da Primeira Dama da Guiné-Bissau ao armazém da Ajuda Amiga na Amadora. (*)

Obrigado pela vossa disponibilidade e colaboração, e espirito de solidariedade que desde sempre têm demonstrado.

Aquele abraço

Carlos Fortunato



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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 14 de dezembro de 2014 > Guiné 67/74 - P14023: Ser solidário (175): (i) a Primeira Dama da Guiné-Bissau em visita privada às instalações, na Amadora, da ONG Ajuda Amiga; (ii) Rubiato Nhamajo, Miss Guiné-Bissau Portugal 2014, e Yasmin Djo, Miss Turismo Guiné-Bissau Portugal 2014, colaboram como voluntárias com a Ajuda Amiga

Guiné 63/74 - P14051: Conto de Natal (20): O "amor" de um bode ou a solidariedade entre animais (Manuel Luís R. Sousa)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Sousa (ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74, actualmente Sargento-Ajudante da GNR na situação de Reforma), com um belo Conto de Natal em que o protagonista não é o burrinho nem a vaquinha mas um bode.


O “AMOR” DE UM BODE

Sim, isso mesmo, o “amor” de um bode! 

Como pretexto para vos cumprimentar, de ir ao vosso encontro, tenho-vos enviado alguns dos meus “postais”, como, por exemplo, “O Douro sob o meu olhar”, "Vila Flor em dia de noivado”, “Vila do Conde é um poema”, etc. Hoje, com o mesmo objectivo, por muito estranho que vos pareça, imbuído de espírito de Natal, tenho o gosto de levar até vós mais um dos meus “postais” alusivo ao “amor”, solidariedade, companheirismo, em que o protagonista é este ruminante. Esses sentimentos que, pelo que presenciei, não são exclusivos dos humanos.

Como reformado, e como transmontano que se preza, cultivo um pequeno quintal num terreno contíguo à minha residência. Entre as diversas culturas que ali granjeio, como não podia deixar de ser, fiel aos costumes de Trás-os-Montes, plantei uma centena de pés de couves de penca, cuja finalidade, para alguns deles, era acompanharem o bacalhau na noite de consoada.


Ali próximo existe um campo a pousio, cujo proprietário, para evitar que o mato ali crescesse, autorizou um vizinho, depois deste vedar todo o perímetro do terreno com uma rede de arame, a colocar ali cerca de duas dezenas de ovelhas e meia dúzia de cabras, entre as quais o dito bode, a figura principal do enredo desta história.


As ovelhinhas, mais pachorrentas, limitaram-se sempre à área circunscrita pela cerca, enquanto que as cabras, lideradas pelo imponente e chifrudo bode, amarfanhavam a dita cerca com as patas e, “upa”, saltavam para fora e todos os terrenos limítrofes eram deles, incluindo, para minha “desgraça”, o meu bem tratado quintal.

Na minha ausência, para meu desgosto, os assaltos à minha horta sucederam-se, não obstante eu ter avisado o proprietário dos bichos, a ponto de todos os pés de pencas terem sido dizimados e, portanto, “nicles”, não há, este ano, daquela horta, couves para a consoada. Com uma selectividade cirúrgica, porfiaram fazer desaparecer apenas as couves de penca até à última folha, até ao tutano, ignorando as nabiças e as couves galegas ali existentes, provavelmente por terem um trago mais amargo.

Perante este quadro, tão cioso da minha horta, escusado será dizer o “pó” que eu apanhei aos caprinos que já não os podia “enxergar” e entre as pragas que lhes roguei, a mais benévola, era que uma alcateia de lobos por ali passasse e os devorasse. Descarregava a minha ira, algumas vezes, quando os via aproximar do quintal, correndo-os à pedrada. Tal era a frequência das investidas, que até já tinha pesadelos de noite ao sonhar que as cabras me estavam a invadir a horta.


Recentemente, encontrando-me eu no mesmo quintal a proceder à sementeira de inverno, das favas e das ervilhas, constatei que uma das cabras, ao tentar transpor a rede da cerca, lutava para se desenvencilhar das malhas de arame que se lhe enlearam no pescoço e nos chifres. Quanto mais estrebuchava mais o garrote a apertava.

- Bem feito..., bem feito…, é para que te sirva de emenda para não vires cá para fora a abocanhar as couves dos outros - rejubilava eu em pensamento, enquanto a azougada cabra lutava cada vez com mais dificuldade, perante os berros desesperados do bode branco que a acompanhava e se movimentava inquieto de um lado para o outro, à sua volta, como a pedir ajuda para libertarem a companheira.

Como ninguém se aproximava, incluindo eu que estava ali próximo, o bode, continuando a berrar desatinadamente, correu pelo campo fora, para o extremo oposto, em direcção à residência do dono do terreno, deixando eu de o ver a partir do meio do percurso, por interposição de um bloco habitacional implantado junto ao terreno, facto que me intrigou e me fez ficar ainda mais atento àquela cena.

Ficou ali então a cabra sozinha a lutar com as malhas da rede, quase a sufocar, o que, não obstante a minha “raiva”, a minha indignação, pelo que já referi, com problemas de consciência, larguei a enxada e preparava-me para ir libertar o animal já prestes a abafar. Entretanto, volvidos alguns instantes, para minha surpresa, surgiu por detrás do referido prédio habitacional a esposa do proprietário do terreno em socorro da cabra, seguida do bode ainda a bramir como um desmamado.

Depois desta, muito a custo, a ter soltado das malhas da rede, ambos, a cabra e o bode, correram pelo campo fora como a festejarem a libertação.

Perante o que acabara de testemunhar, de tal modo o gesto do bode me tocou, embora revoltado por me terem rapinado as pencas do Natal, que não pude deixar de exclamar com esta “terna” expressão, aqui para nós que ninguém nos ouve, “…filho da puta do bode…” 


Não quis, portanto, deixar de partilhar convosco esta linda história de “amor”, à parte a “ternura” da expressão com que terminei, e de, aproveitando o contexto, levar até vós, como ilustração da mesma história, a bonita melodia Love Story, nostálgica para os menos jovens. Precisamente, uma história de amor.

Se bem reparastes ao longo do texto, falei-vos de amor, solidariedade, companheirismo, couves, bacalhau e animais. Como sabeis, tudo isto integra a festa de Natal que se aproxima. Aceitai, portanto, esta história como um postal de Natal. Um postal diferente, especial, que, só por isso, e porque a mesma história foi o motivo de ir mais uma vez ao vosso encontro, a perda das minhas couves de penca não foi em vão. Bem pelo contrário, foi até compensadora.

E, já agora, para terminar, sabeis como vou resolver o problema das couves para não deixar o bacalhau da ceia na solidão? Se não houver uma boa alma de um de vós, os mais próximos, que se tenha enternecido com a pungente história das minhas couves e me dispense uma “tronchuda” para a ceia de Natal, O mercado espera-me.

Feliz Natal de 2014 para todos os meus companheiros ex-combatentes e familiares.
Manuel Sousa
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14048: Conto de Natal (19): Uma viagem a outros Natais (Francisco Baptista)

Guiné 63/74 - P14050: Notas de leitura (658): “A Enfermeira Chinesa”, de Rui Coelho e Campos, Sítio do Livro, 2014 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2014:

Queridos amigos,
As surpresas literárias, felizmente nestas investidas escriturais dos combatentes, são como as contas de missanga: é no enfiamento que o multicolorido reverbera e chama a nossa atenção.
É surpreendente a qualidade dos contos de Rui Coelho e Campos, pena é, em meu modesto entender, que tenho ajuntado estes portentosos contos ajuntando-lhes missangas de menor valia, isto quando se percebe que aquela África e aquela guerra lhe fervem nas veias, sente-se à légua que tem muitos contos a dar para o crisol da literatura de guerra.

Um abraço do
Mário


As guerras iguais e as disparidades dos trópicos (as guerras diferentes)

Beja Santos

Há um fio condutor em todas as guerras e as guerras que travámos em África não foram exceção: a aprendizagem do horror dentro da aprendizagem do meio, a comunicação do grupo a sobrepor-se às práticas culturais anteriores, a interiorização de um medo visceral, um tumulto psicossomático, umas vezes silencioso, outras vezes avassalador, daí a rigidez ou a explosão que transfigura o homem no herói… Não vale a pena desfiar o caudal de argumentos, são sobejamente conhecidos, e por nós experimentados. Quando lemos um relato da Batalha de Estalinegrado ou de Monte Cassino, sabemos que aqueles homens, independentemente da ideologia que os respaldava, suspiraram pelos seus entes queridos, temeram, expuseram-se graças a uma força desconhecida. E ficaram fiéis aquelas memórias, indeléveis, ficaram agregadas a um património que cada um deles sabe que os ultrapassa, até porque houve mortos e feridos, atos destemidos entre vencedores e vencidos.

As nossas guerras em África foram diferentes pela dimensão do território, pela natureza do inimigo, pela latitude e longitude, pela fauna e pela flora, pelo mosaico étnico em que cada um se teve que ambientar. Está escrito e reescrito que 10 quilómetros na Guiné não são equiparáveis a 10 quilómetros em Angola e Moçambique. Nas diferentes literaturas, os seus autores ressaltam cheiros, amplas distâncias, florestas do tipo galeria, zonas penhascosas, colunas que percorrem durante largos dias elevações e vales de grande amplitude. Há, é certo, a inquietude das tropas acantonadas, silêncios que urge saber desfibrar, memórias que se soltam para que a vida seja tolerável na caserna ou no posto de sentinela. E há os estampidos, as explosões, os terrenos minados, aquelas emboscadas que desorientam, que está fora da zona de fogo. Semelhanças e dissemelhanças: as lembranças que pesam como ferro em brasa; a comida rasca e as agressões verbais ao cozinheiro, aquele tempo a escorrer como chumbo líquido e a malta a endurecer o palavreado, a atacar a cerveja como se esta fizesse esquecer o arame farpado à volta e os potenciais perigos vindos da mata na noite escura.

Temos pois, sem equívoco, disparidades literárias porque a circunstância de todas aquelas guerras esculpiram tempos e realidades distintos. É saboroso, por vezes, olhar para outros teatros de operações que não o da Guiné e perceber-lhe o que nos identifica e nos aparta. Tomo como referência, para este exercício o livro de contos “A Enfermeira Chinesa”, de Rui Coelho e Campos, Sítio do Livro, 2014. Ali se diz que o autor foi alferes miliciano de infantaria numa Companhia de Intervenção em Moçambique e é advogado. É o primeiro livro de contos, fica-se a saber, mas o autor dribla folgadamente a técnica deste género literário: não há engorduramentos, desenvolvimentos extasiantes, o descontrolo das falas.

No conto Zahida é indispensável localizar o teatro em que se processam encontros e desencontros desamorosos. Há uma porta principal que dá acesso à pista do aeródromo, a certas horas, mulheres e homens cruzam a porta principal e transportam ao ombro as suas alfais, vão até à machamba. Nessa porta principal está uma milícia sentada, vigilante. Aqui começa o jogo de amores recônditos, inconfessáveis:
“O grupo das três mulheres do régulo tarda a transpor a porta principal; Faad, que ficou ligeiramente para trás, ilumina os dentes muito brancos e olhos em movimento alternado e suave em direção em Posto 1, desatinando Matsinhe, soldado criado no Sul nas margens do Umbelúzi, onde aprendera a agarrar mulher, agora ansioso pelo anoitecer para agarrar Faad.
O jogo discreto dos olhos de Faad é captado no Posto 1; o local, a hora, os cuidados, as promessas, tudo é registado por Matsinhe que, uma vez o sol recolhido, vai juntar as missangas de cores múltiplas no leito de capim acamado, onde mergulhará no copo macio de Faad, escutando, os olhos cerrados, o marulhar das águas do Umbelúzi.
Mas os sinais dos olhos de Faad também são captados por Zahida, mulher segunda do régulo, cansada da pele lisa de Faad, onde as missangas rolam e brilham sempre.
Durante o dia, ao ritmo lento da enxada, Zahida lança as sementes da urdidura; tem de secar o atrevimento de Matsinhe e devolver Faad aos amores do soldado Mezulo; talvez por falar pouco, ou por ter vindo do Luatize, ou porque lhe lembra o filho, no mato, fugido à chibata do cipaio – sabe-se lá se regressa, um dia, com eles… - Mezulo é o consentido de Zahida.
Evita a porta principal e reentra mais cedo no aldeamento, emergindo de entre as fiadas do arame farpado, decidida a alijar de vez o fardo da ousadia de Matsinhe.
Antes que chgue aos ouvidos do régulo, acaba-se o fingimento entre Faad e Zahida; decidiu, vai procurar Mezulo e contar-lhe tudo. Não teme o escândalo; embora saiba que, quando há zaragata entre militares, a ninguém falha o pormenor das razões e o detalhe dos factos, ela confia que Mezulo intervirá com prudência e eficácia, sem que o régulo venha a suspeitar de nada.
Mezulo chega amanhã, na coluna que vem da cidade”.

Segue-se a descrição da coluna a emergir da poeira densa da picada. Zahida conta tudo a Mezulo. Quem irá resolver a situação será Caímo. Chegou a hora da feitiçaria, presume-se que o aldeamento vai ser atacado. Matsinhe já está a sofrer os efeitos do feitiço, a medicina convencional nada pode resolver. Entra em cena o alferes que desmantela toda esta história de feitiços, altera-se e impõe-se:
“Cabrão, filho da puta, feiticeiro de trampa, fodo-te o canastro. Se o Matisnhe morre, vais lerpar também, mas à porrada!»… é Santiago, com os nervos à solta e o medo aos berros, perdido por um ou por mil, as veias do pescoço reluzem à chama pálida do petromax; a coronha da Mauser de Changane, empunhada por Santiago, voa em direção à testa de Caímo que se protege apavorado, os braços em volta da cabeça; e, o copo encolhido, indefeso, a rolar no chão, os olhos esgazeados, grita, grita, muitas vezes, e Changane grita também mas ri, ri muitas vezes, «Sim, sim, vou partir o xiquembo de Matsinhe!», clama Caímo, clama Changane.

Matsinhe recupera, já não vai morrer. Alguém vai ao focinho de Mezulo, não se sabe quem. O régulo sovou Faad e também Zahida, que não cuidou da mulher mais nova como era sua obrigação, e enviou um recado ao alferes para se iniciarem as negociações da reparação que lhe é devida pela honra ofendida por um soldado do Sul, reparação que mete dinheiro, cerveja e panos, talvez um relógio de pulso que o sargento vai pagar.

E o empolgante do conto, o âmago do segredo, fica para o frenesim da operação, em vagas os helicópteros estão a lançar as tropas no assalto. No meio da algazarra, Santiago aproxima-se do alferes e conta aquilo do feitiço do Matsinhe:
«Conte lá… depressa!» 
«Na manhã a seguir à chegada da coluna, depois do Mezulo ter falado com ele, o Caímo agarrou num cordel de amarrar as sacas da farinha, dos mais finos, e embrenhou-se no mato até chegar à zona onde começa a floresta; apanhou uma folha de árvore caída sobre o capim, uma folha seca…»
«Despache-se, os helis já aí estão!» 
«…fez-lhe um furo, inseriu o cordel e deu um nó, com muito cuidado para não rasgar a folha; depois… o feiticeiro pendurou o cordel, com a folha suspensa na ponta, no ramo de uma árvore na floresta…»
«Rápido!», insiste o alferes, o vento das hélices a esmagar o capim e a levantar rolos de poeira vermelha.
«… e quando o vento batia na folha seca e a fazia girar…», grita Santiago, as duas mãos à volta da boca, «o coração de Matsinhe rodopiava, rodopiava, rodopiava como um louco!» 

Rui Coelho e Campos dá-nos contos assombrosos nestas memórias moçambicanas e mais uma vez me interrogo como é que toda esta prosa de altíssima qualidade passa ao lado das grandes editoras e dos leitores, que mistério é este como estes grandes contos de um combatente correm risco de passar despercebidos. Dito isto, que o leitor interessado por esta literatura, obrigatoriamente prosopopeia que a memória guardou e criou, dá depressa à procura de “A Enfermeira Chinesa”.
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14029: Notas de leitura (657): "Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, a arma da teoria, unidade e luta”, Seara Nova, 1976 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14049: Parabéns a você (831): Humberto Reis, ex-Alf Mil Op Esp da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71) e João Melo, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAV 8351 (Guiné, 1972/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 16 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14034: Parabéns a você (830): António Paiva, ex-Soldado Condutor Auto do HM 241 (Guiné, 1968/70)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14048: Conto de Natal (19): Uma viagem a outros Natais (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 17 de Dezembro de 2014:

Este texto não será ainda a estória dessas viagens de lazer, de prazer, relaxamento, pelos vales, planícies, montanhas, florestas, muitas vezes refletidos em grandes lagos ou grandes rios onde espelham o seu encanto e a beleza.

Terá sido nessas viagens e passeios pela natureza onde as paisagens que nos encantam se duplicam nas águas límpidas e transparentes, onde Narciso se apaixonou pela sua própria imagem.
Não será também a estória das viagens pelas maravilhas construídas pelas mãos hábeis de tantos artífices e artistas que povoam as cidades da terra.
Pela mente todos os dias viajamos, de corpo e alma de vez em quando.

Hoje a minha viagem de menino leva-me à igreja de Brunhoso.
Próximo do local onde assistia com a família masculina (as mulheres ficavam separadas, atrás dos homens, talvez para não haver lugar a troca de olhares sensuais e pecaminosos) a todas as cerimónias religiosas, havia um altar, com um Menino Jesus, quase todo nu, somente com um pano a tapar-lhe o sexo.

Dentre todos os santos que povoavam os altares da igreja sempre achei muita graça a esse menino, pois parecia-me mais humano do que todos os outros santos adultos que, por vezes muito bem vestidos e enfatuados duma forma antiga, pareciam olhar mais para o alto do que para as pessoas.

Esse menino parecia um outro como eu quando ainda o era, e que estaria disposto a brincar comigo e com os da minha idade. Na Missa do Galo, no Natal, esse menino descia do seu pedestal e o padre dava a beijar os pés dele a toda a gente. Hoje raramente vou à missa mas confesso camaradas que ainda sinto muita ternura por esse menino de barro.

Brunhoso, nesse tempo, tinha poucas árvores de fruta e as laranjeiras não cresciam lá, queimadas pelas geadas, em minha casa como na maioria apreciávamos muito a fruta, que não sendo de colheita própria, raramente se comprava. O meu pai que eu julgava muito sovina, depois da Missa do Galo, todos os anos invariavelmente, comprava o grande cesto de fruta que era leiloado pelos rapazes no adro da igreja, que continha sobretudo laranjas.

Para mim e os meus irmãos era quase um milagre do Menino Jesus, saber que esse grande cabaz de laranjas ia para nossa casa.
Muito obrigado pai por tantos milagres.

Portugal > Bragança > Mogadouro > Brunhoso > Terra com história, património e gente de carácter. Foto de Aníbal Gonçalves, grande divulgador da sua região, em particular o nordeste transmontano. Professor, alia a fotografia ao geocaching.  É natural de Bragança, vive em Vila Flor. Tem página no Facebook. Cortesia da sua  página dedicada a Brunhoso.

Os meus Natais na Guiné foram dias como os outros, no quartel ou no mato, tanto em Buba em 1970 como em Mansabá em 1971. Que me recorde, não houve bacalhau nem rabanadas nem outro petisco da quadra natalícia.

Porque eu sempre associei o Natal ao frio e por vezes à neve, deixei passar o Natal sem nostalgia, porque estava enfeitiçado pelo calor e pelo cheiro quente da terra africana e nesse tempo nunca imaginei um Menino Jesus negro.
Na Guiné vivi em terras de muçulmanos e por outro lado andava desinteressado de manifestações religiosas de qualquer crença.

" Decididamente é difícil pensar que não é Natal", como diz o nosso poeta e comandante Luís Graça.

Este texto que evoca o Natal, dedico-o a ele pela dedicação e trabalho que diariamente desenvolve pela manutenção e vitalidade do blogue, ao meu camarada de Mansabá e quase vizinho actual, Carlos Vinhal igualmente um grande obreiro e sacrificado do blogue.

Os outros camaradas que me desculpem mas vou dedicá-lo também a outros dois camaradas:
Ao camarada Jorge Picado, mais velho e sereno do que eu, que também esteve em Mansabá, e que aprendi a apreciar por conhecimento pessoal e pela bonomia que transmite nas palavras que escreve.
Ao amigo José Luís Fernandes, pela autenticidade, humanidade e profundidade de tudo o que já escreveu no blogue e pela ausência já tão longa, com que nos penaliza e que espero não se prolongue muito mais.

A todos os camaradas desejo um Bom Natal e um Bom Ano.
A todos um grande abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12504: Conto de Natal (18): "Uma Luz de Natal no alto do Monte", por Adriano Miranda Lima - Cor Inf Ref

Guiné 63/74 - P14047: A minha máquina fotográfica (15): Comprei-a em 73, em Bissau por 5.000 pesos, que utilizei durante muitos anos na vida civil e fez algumas viagens ao estrangeiro na década de 80 (Agostinho Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Agostinho Gaspar (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1972/74), com data de 13 de Dezembro de 2014:

Boa tarde,
Depois de esquecida durante décadas, veio o blogue lembrar um dos nossos passatempos favoritos: as máquinas fotográficas.

Quando fui para a Guiné não tinha máquina fotográfica, passados alguns meses comprei uma simples a um colega da Companhia, que depois vendi a outra pessoa.

Meses mais tarde comprei outra, mais moderna, com tantas técnicas, que ainda hoje não sei usar todas, comprei-a em 73, em Bissau, e custou-me 5.000 pesos (manga de patacão!).

Máquina essa que utilizei durante muitos anos na vida civil e fez algumas viagens ao estrangeiro na década de 80.

Modelos mais modernos deixaram-na esquecida durante mais de 20 anos na gaveta. Até o dia em que no blogue falaram de máquinas fotográficas, que tinham sido usadas durante o tempo na Guiné e lembrei-me da minha.

Em anexo, envio fotos actuais dela e algumas fotos tiradas também por ela há mais de 40 anos.

Melhores cumprimentos,
Agostinho Gaspar



 




Equipa dos Mecânicos
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14046: A minha máquina fotográdfica (14): Comprei-a logo nos primeiros dias em Bissau, numa loja de material fotográfico ao lado do forte da Amura, em Julho de 1968, com dois colegas do curso de Mafra, o Rego e o Amorim. Eram todas iguais, marca “Fujica” (Fernando Gouveia)

Guiné 63/74 - P14046: A minha máquina fotográfica (14): Comprei-a logo nos primeiros dias em Bissau, numa loja de material fotográfico ao lado do forte da Amura, em Julho de 1968, com dois colegas do curso de Mafra, o Rego e o Amorim. Eram todas iguais, marca “Fujica” (Fernando Gouveia)

1. Mensagem do nosso camarada Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec Inf, Bafatá, 1968/70) com data de 12 de Dezembro de 2014:

Para todos os camaradas, com um grande abraço:

De início não contava escrever sobre este tema das máquinas fotográficas mas como “já que tanto insistem” aí vai.

Já em tempos referi a marca da máquina que me acompanhou na minha comissão na Guiné e com a qual tirei centenas de fotos.
Foi a páginas vinte e nove do livro “Na Kontra Ka Kontra”, que escrevi debaixo da adrenalina acumulada durante a visita que fiz à Guiné em Março de 2010.

O invólucro de couro da minha “Fujica” ajudou à sua longevidade.

Não posso deixar, mais uma vez, de agradecer ao blogue e ao próprio Luís Graça e Carlos Vinhal, não esquecendo o António Pimentel, este, que me incentivou a rever locais e gentes de há quarenta anos atrás.

Quanto à máquina, comprei-a logo nos primeiros dias em Bissau, em Julho de 1968. Eu próprio e mais dois colegas do curso de Mafra, o Rego e o Amorim, compramos três máquinas iguais “Fujica”, numa loja de material fotográfico, ao lado do forte da Amura.

Se não me engano custaram-nos 1.500$00 cada. Vim depois a saber que os meus colegas de compra não ficaram muito satisfeitos com elas. No que me diz respeito gostei imenso dela pois além de me “fazer” a guerra ainda durou mais vinte anos. O seu fim só se deu com o colapso do fotómetro, com que já era equipada.

A existência do fotómetro permitia-me tirar fotos em modo automático. Assim, e pelo facto de com o polegar direito fazer a focagem bem como a passagem à foto seguinte, conseguia tirar fotografias seguidas só com a mão direita.

Durante a comissão tirei centenas de slides e, penso, só um rolo de fotos a preto e branco (reveladas por um qualquer camarada do Comando de Agrupamento em Bafata) e um rolo de fotos coloridas.

Durante os vinte e dois anos em que funcionou tirei quase sempre slides e da marca “Agfa” tendo sido todos revelados em Barcelona pois em 1968 não havia essa possibilidade em Portugal. Como curiosidade direi que nunca se extraviou um sequer.

Termino referindo mais uma vez, que agradeço aos camaradas atrás referidos e também à minha “Fujica” o inesquecível, emocionante e indelével prazer que senti ao entregar as três fotografias que se seguem às pessoas respectivas quarenta anos depois, quando da tal visita à agora Guiné-Bissau.

Ao mostrar a foto à Bobo, ela muito emocionada disse: Ah, ah, ah, ah, ah, ah a minha Maria.

A bajuda agora a mulher grande Kadidja, embora só nos tivéssemos visto uma vez, quarenta anos depois, ainda me reconheceu e soube referir o local onde lhe tirei a foto.

O Tchame já tinha morrido mas o filho não deixou de ficar altamente emocionado quando lhe entreguei a foto do pai.

Fernando Gouveia
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14045: A minha máquina fotográdfica (13): Tive, desse tempo, uma Kowa SE T que depois vendi; e tenho ainda uma Minolta SR T 101... Se um dia quiserem fazer um museu com as "máquinas de guerra", contem com a minha... Não a vendo, tem um grande valor sentimental... (Manuel Resende, ex-alf mil, CCaç 2585, Jolmete, Pelundo e Teixeira Pinto, 1969/71)

Guiné 63/74 - P14045: A minha máquina fotográfica (13): Tive, desse tempo, uma Kowa SE T que depois vendi; e tenho ainda uma Minolta SR T 101... Se um dia quiserem fazer um museu com as "máquinas de guerra", contem com a minha... Não a vendo, tem um grande valor sentimental... (Manuel Resende, ex-alf mil, CCaç 2585, Jolmete, Pelundo e Teixeira Pinto, 1969/71)

1. Mensagem de Manuel Resende, com data de 11 do corrente


[ Manuel Resende, com o Dandi, em pose para a fotografia; ex-Alf Mil da CCaç 2585/BCaç 2884, Jolmete, Pelundo e Teixeira Pinto, 1969/71]


Caros Luís e Vinhal,


Em anexo segue um pequeno texto sobre as minhas máquinas fotográficas na guiné.

Tambés as fotos para serem coladas nos locais próprios. (Vd aqui o link do meu álbum fotográfico.  referido no texto).

Desejo-vos um Santo Natal. Muitas prendinhas do Menino Jesus e um 2015 um pouco melhor que este.

Um abraço, Manuel Resende




Crachá da CCAÇ 2585 ( Jolmete, Pelundo e Teixeira Pinto, 1969/71)


2. As minhas máquinas fotográficas 

por Manuel Resende


Amigo Luís Graça

A propósito da sondagem das fotos e máquinas fotográficas da nossa comissão na Guiné (*), tenho todo o prazer em dar a minha opinião, pois já nessa altura eu era o fotógrafo da Companhia, havia de facto mais algumas máquinas, mas quase todos me batiam à porta.

Tirava fotos individuais a quem me pedia e colectivas, sendo a revelação feita sempre em Bissau e com cópias “por cabeça”. O nosso 1º Sarg. Vinagre ia todos os meses a Bissau tratar dos assuntos necessários, e levava os rolos para revelar e trazer as cópias que eram feitas em tempo oportuno. Também comprava o que lhe encomendássemos, como foi o caso da minha máquina fotográfica, da minha pressão ar “Diana 37 de 5,5 mm”, etc. Convém não esquecer que Jolmete era só o Quartel, depois do arame farpado era mato e turras.

Lembro-me que o Fur Guarda tinha uma máquina, salvo erro Olympus. O Fur Rodrigues também tinha uma, mas a que me chamou mais a atenção era a do Alf. Mosca, uma Yashica, tipo caixa, de ver por cima, que fazia negativos de 60x60 mm e tinha uma lente com luminosidade de 1:1.2, o que na altura era o máximo que se fabricava. As fotos de 12x12 cm ficavam extremamente nítidas. Tenho a certeza que ele a levou para fotografar os “amigos”, como ele dizia, que o assassinaram juntamente com os Majores.





Eu, depois de “tirar” a especialidade de Atirador de Artilharia em Vendas Novas (a nossa artilharia era G3), fui colocado no BII 18 dos Arrifes, em Ponta Delgada - Açores, e passado um mês de lá estar a descansar, recebi guia de marcha para o Pragal (Almada) para formar Companhia para a Guiné, e no meu regresso dos Açores viajei no Paquete Funchal. Foi lá que eu vi uma linda máquina Reflex, marca Kowa, com lente de 1:1.8. Comprei também um Flash electrónico, com regulação de luz (manga de ronco), que ainda hoje funciona. A máquina custou 2.800$00 e o Flash custou 1.000$00.






Sensivelmente a meio da comissão resolvi comprar a máquina dos meus sonhos. Numa das idas a Bissau do nosso 1º Vinagre, pedi-lhe que me comprasse uma que eu já tinha namorado na casa Pintosinho, nos dois dias em Bissau à nossa chegada. Era uma Minolta SRT 101, com lente 1:1.2, só que na altura não tinham esse modelo, pelo que o nosso 1º resolveu comprar a melhor que lá tinham, a mesma mas com lente 1:1.4, e que me custou 7.800$00. Ainda hoje a tenho e funciona bem. Entretanto vendi a alguém da Companhia, e que já não me lembro, a anterior. 





Amigo Luís,

se um dia quiseres fazer um museu de máquinas antigas podes contar com a minha, pois o valor real é nulo, mas o valor sentimental é grande e eu não a vendo.

Em relação às minhas fotos e slides estão todas num álbum na net. São trezentas e tal, mas acho que muitas são de nível particular e penso que não terás interesse em publicá-las. Estás à vontade para publicar as que bem entenderes.


Um abraço

Manuel Resende

(Fotos e link em anexo)





Álbum do Manuel Resende > Foto nº 24 > "Como as palmeiras eram pesadas"



Álbum do Manuel Resende > Foto nº 57 > "Cubano ferido"



Álbum do Manuel Resende > Foto nº 85 > "Capitão Almendra" (**)


Fotos (e legendas): © Manuel Resende  (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 15 de dezembro de2014 >  Guiné 63/74 - P14030: A minha máquina fotográfica (12): Ainda tenho, operacional, a minha Fujica Compact S, comprada em finais de 1972, em Bissau (Armando Faria, ex-fur mil, MA, CCAÇ 4740, Cufar, 1972/74)


(**)  Vd. poste de 1 de julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4622: Fichas de Unidades (4): História do BCAÇ 2884 (José Martins)


(...) Companhia de Caçadores nº 2585


(...) Iniciou o deslocamento, por fracções, em 15 e 16 de Março de 1969, com destino a Teixeira Pinto donde, no dia seguinte, segue para Jolmete, afim de render a Companhia de Caçadores nº 2366.

Na dependência do Batalhão de Artilharia nº 2845, assume a responsabilidade do subsector Jolmete e, após remodelação dos sectores, fica na dependência do Batalhão de Artilharia 2866 e posteriormente na dependência do seu batalhão.

Colaborou na protecção e segurança dos trabalhos da estrada de Bula - Ponta de S. Vicente, guarnecendo as bases de Bipo e Ponta Fortuna, e realizou operações nas regiões de Bugula, Ponta Nhaga, Peconha e outras.

Foi rendida, em 12 de Fevereiro de 1971, pela Companhia de Caçadores nº 3306.

(...) Distinguiram-se e foram condecorados os seguintes militares:

(...)

Por acção praticada no dia 22 de Outubro de 1970:

ANTÓNIO CAMILO ALMENDRA, Capitão Miliciano Graduado de Infantaria, foi condecorado com a medalha da Cruz de Guerra 1ª Classe, conforme Ordem do Exército nº 17, IIª Série de 1971; (...)