domingo, 22 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14283: Libertando-me (Tony Borié) (5): 50 anos depois

Quinto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.



Desde o tempo em que lutámos na Guiné, quase todos os dias sentimos um certo tipo de “arrepio” a picar-nos a pele, por vezes passamos dias de reflexão e pensamentos dos amigos que por lá caíram. Homens como o “Zargo”, o “Curvas, alto e refilão”, ou o “Bóia”, como carinhosamente o chamávamos, que foi morto por uma maldita carga explosiva, numa ponte armadilhada que existia para os lados de Porto Gole.

Lembramo-nos daquele tempo escuro, mesmo depois da guerra, que para nós durou vários anos, a nossa alma parecia que tinha sido baleada, pelas coisas que vimos, pelas coisas que cheirávamos, pelo isolamento forçado e angustioso, pelas coisas que fizemos e pelas coisas que nunca tivemos oportunidade de fazer, mas que deviam ser feitas naquela idade tão jovem. Lembramo-nos de como a vida se tornava de alguma forma menor, à medida que nos isolávamos sistematicamente daqueles que nós amávamos. Enfim, “lembranças” de irmãos de guerra, que agora, anos mais tarde, o nosso pensamento encontra todos os dias. Há dias, o companheiro Hélder dizia que estas memórias não são já do "Cifra", é verdade, pois do “Cifra” já só resta talvez o pensamento, algum espírito aventureiro e o “C” do “mister “C”, que é como aqui chamamos à doença “cancêr”, pois somos um dos felizmente muitos sobreviventes dessa maldita doença, que há uns anos contraímos e que depois de um rigoroso tratamento, recuperámos, vencemos e ainda por cá andamos.

Neste começo de ano as coisas estão a parecer-nos um pouco diferentes, pois por alguns momentos vamos retornar à personagem “Cifra” e, aquela personagem, que naquele tempo se chamava “Zargo”, hoje é o nosso amigo Jorge, que está a viver por aqui, na Florida, pelo menos uns meses, portanto encontramo-nos, falando também de guerra, mas raras vezes, pois a sua dedicada esposa, assim que houve falar em guerra, logo nos diz, “please, stop fighting with your thought”, que quer dizer mais ou menos, “por favor, parem de lutar com o vosso pensamento”.

Mas vamos à história, porque se não, o dedicado do Carlos Vinhal, ainda vai dizer que o texto é longo. Portanto cá vai.

Era manhã, havia que colocar um leve casaco nos ombros, pois a temperatura assim o recomendava, estávamos do outro lado da Flórida, na parte oeste, no Golfo do México.
A “Europa” andava por lá, aliás, por aqui, de uma maneira ou de outra, tudo nos mostra que as raízes vieram da “Europa” e, as pessoas responsáveis pelos municípios continuam a ter orgulho nessas raízes, admiram e fazem de algumas personagens europeias, os seus heróis.

Em 1982, um armazém de marinha no centro da cidade marítima de St. Petersburg, no estado da Florida, foi reabilitado e um museu foi inaugurado. Eram umas instalações frequentemente sujeitas a furacões de um clima tropical, mas no ano de 2008, depois de uma chamada de atenção quase a nível nacional, Salvador Domingo Felipe Jacinto Dali i Domènech, 1.º Marquês de Dalí de Púbol, conhecido no mundo das artes, apenas como Salvador Dalí, que foi um importante pintor catalão, conhecido pelo seu trabalho “surrealista”, tinha finalmente o seu museu.

Mais de cinquenta anos depois, o “Zargo”, nome de guerra do nosso companheiro de luta na Guiné, quando nós éramos única e simplesmente o “Cifra”, dizia-me: “Estas instalações são comparáveis a um forte antigo, mas com linhas modernas e, algo surrealistas”.


Foi construído na margem da baía, próximo do Teatro Mahaffey, na parte baixa da cidade, numa estrutura que apresenta uma grande porta de entrada em vidro em forma de triângulos, que por sua vez formam círculos por onde entra a luz natural, feito de vidro de 1,5 polegadas de espessura, a que deram o nome de "Enigma", pois esta porta de entrada de vidro tem 75 metros de altura que engloba uma escada em espiral, que nos conduz ao tal “enigma”.


As restantes paredes são compostas de concreto de espessura de 18 polegadas, projectado para proteger esta valiosa colecção dos frequentes furacões que assolam a baía, onde se inclui 96 pinturas a óleo, mais de 100 aguarelas e desenhos, 1300 ilustrações, fotografias, esculturas e objectos de arte, e uma extensa biblioteca de arquivo.


Entre outras pinturas, está “The Hallucinogenic Toreador”, que é uma pintura a óleo que Salvador Dalí em 1970, seguindo os cânones da sua interpretação particular de pensamento surrealista, transmite o desagrado de sua esposa para as touradas, através da combinação de simbolismo com ilusões de ótica e alienando ainda motivos familiares, ele cria a sua própria linguagem visual, está lá a aplicação do método paranóico-crítico, dentro desta pintura combina as imagens versáteis como um exemplo elucidativo da sua criação artística, onde uma poça de sangue se transforma numa baía abrigada, na qual uma figura humana é uma jangada amarela, vista no horizonte.

O “Zargo”, ria-se ao ouvir alguém ao nosso lado comentar, “a lot of drugs”, que quer dizer mais ou menos “muita droga”!.

As pinturas de Dalí chamam a atenção pela incrível combinação de imagens bizarras, com excelente qualidade artística e, tanto para nós, que era o “Cifra”, ou para o Jorge, que era o “Zargo”, que muitas vezes estávamos sobre influência em cenário de guerra, talvez “deambulando” por outros horizontes, que nos ajudava a viver aquela terrível guerra, apreciamos a arte de Dalí, que dizem que foi influenciado pelos “mestres do Renascimento”.

Dalí insistia na sua "linhagem árabe", alegando que os seus antepassados eram descendentes de mouros, que ocuparam parte da Península Ibérica por quase 800 anos, afinal, tal como um qualquer “Zargo” ou “Cifra” e, atribuía isso ao seu amor por tudo o que é desejado com alguma fantasia, também tal como nós, que vivemos uma guerra em África, fugindo depois para o continente Americano, na procura do desejado, que muitos de nós nunca encontrámos.

Voltando à guerra que nós vivemos, torna-se um pouco claro que o seu custo é ainda maior do que nós possamos imaginar, porque a guerra tem um apetite insaciável pela morte, que ainda hoje, continua a matar, não só a quem nela participou activamente, pois as pessoas começam com sentimentos de confusão, depois move-as um longo pensamento de raiva e, finalmente, vem a indiferença. Mas aquele esgotamento escuro e emocional ainda se encontra de pé, mesmo à beira de um abismo, convidando-nos a saltar, pensando que com essa estúpida atitude, todos os sentimentos vão acabar.
Já chega de guerra e de confusões, vamos fazer como o Dalí, “viver o nosso mundo surrealista”. Quero lembrar que, com a excepção do Teatro-Museu Dalí, criado pelo próprio Dalí na sua cidade natal de Figueres, Catalunha, Espanha, o “Dalí Museum”, na cidade de St. Petersburg, é no estado da Florida que estão as maiores coleções do mundo, de Salvador Dalí.

Tony Borie, Fevereiro de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14259: Libertando-me (Tony Borié) (4): ...e o Lisboa rasgou o cartão

1 comentário:

antonio graça de abreu disse...

Dizes, meu caro amigo:

A dedicada esposa, assim que houve falar em guerra, logo nos diz, “please, stop fighting with your thought”, que quer dizer mais ou menos, “por favor, parem de lutar com o vosso pensamento”.

Meu caro camarada, como eu conheço
estes entendimentos e palavras, mas em chinês, por parte da minha mulher chinesa que abomina a guerra e as sequelas da guerra, e passa a vida a dar-me na cabeça por causa da Guiné.

Quanto ao Museu Dali de S. Petersburgo, na Florida, tive a sorte, e um desbragado prazer de o visitar, há menos de um ano, em Março de 2014.
Aluguei um carro em Miami, viajei pela Florida durante seis dias(Everglades, crocodilos,astronautas, Cape Canaveral, Ferraris aos montes)a descoberta do universo, a ostentação dos ricos, made in America, o equilibrio dos pobres, made in Mexico. E mais os outros todos. America, fascínios do mundo.
O Museu norte americano de S. Petersburgo, (onde caí, por acaso, na ronda pela Florida) é excepcional,
maravilhas na obra de Salvador Dali. Pagas a peso de ouro (Dali gostava de ouro, quem é que não gosta, até os tipos gregos do Syriza gostam), por um magnata
americano das massas comestíveis, esparguetes e mais mil variedades, amigo de Dali, que ao morrer em 1991,
legou o seu espólio dos quadros de Salvador Dali, à cidade norte-americana que melhor o soubesse conservar e perservar.
E foi S. Petersburgo que avançou,
construindo este fabuloso museu Dali, na Florida,
um museu encantatório e mágico.

O que é que isto tem a ver com a nossa Guiné?
Tudo, porque estamos vivos, trazemos dentro de nós uma guerra que jamais esquecemos, mas somos cidadãos (os melhores!) do mundo.

Abraço,

António Graça de Abreu