sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14306: Notas de leitura (685): “Crónica do descobrimento e conquista da Guiné”, por Gomes Eanes da Zurara, adaptação de Frederico Alves, edição da Agência Geral das Colónias (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Maio de 2014:

Queridos amigos,
Esta adaptação da “Crónica do descobrimento e conquista da Guiné”, publicada em 1944, oferece ao leitor uma visão acalorada de um poderoso panegírico onde se exalta o projeto henriquino, etapa por etapa.
Descobriu-se posteriormente que a cronologia das expedições não foi o ponto forte de Zurara, de tal sorte que ainda hoje não é precisa a data da chegada à Guiné como a conhecemos.
Seja como for é um documento vivacíssimo, exaltado, cedendo a fábulas como a chegada dos navegadores ao rio Nilo, cantada com a maior das exaltações. Zurara escreveu um dos bilhetes de identidade da Guiné, a sua crónica é um desses documentos imorredoiros para a história de Portugal e da Guiné-Bissau, vale a pena, ao menos, conhecer-lhes alguns aspetos capitais.

Um abraço do
Mário


O romance da conquista da Guiné contado a rapazes (2)

Beja Santos

Aqui se continua e finda a recensão quanto ao “Romance da Conquista da Guiné”, uma adaptação da “Crónica do descobrimento e conquista da Guiné”, por Gomes Eanes de Azurara, feira por Frederico Alves, publicação da Agência Geral das Colónias em 1944.

Os descobrimentos henriquinos tomam um rumo imparável, toda a costa está mapeada até ao Cabo Branco, é preciso ir mais longe, o Infante confia a Gonçalo de Sintra uma caravela, diz-lhe para ir direito à Guiné, a bordo vem um gentio que a seu tempo se escapulirá. A caravela vai até à ilha de Naar, mal fundeados, mandou o capitão arrear o batel, rumou-se para a praia, esperou-se pelos mouros. Vieram como inimigos, lutou-se rijamente. Nesse dia, ali ficou morto Gonçalo de Sintra e mais sete. E regressou-se a Portugal. O Infante não desiste, nomeia Nuno Tristão que vai até às ilhas por onde Lançarote, almoxarife de Lagos, andara. Segue-se Dinis Dias em demanda da terra dos negros conhecidos por guinéus, e Zurara escreve:  
“E falando em guinéus, convém não perder de memória que se chamou Guiné a todas as terras primeiramente descobertas na linha da costa Ocidental de África. Não porque todas sejam, na verdade, uma só terra; pelo contrário, fazem diferenças umas das outras”.

Dinis Dias velejou até à vista de um grande cabo a que puseram o nome de Cabo Verde (não confundir com o nome do arquipélago só muito mais tarde deixado).

Talvez em 1445, aparelharam-se duas caravelas por mandado de D. Afonso, Regente do Reino, confiadas a Antão Gonçalves e Diogo Afonso, e largaram para o Rio do Ouro, à busca de indígenas que pudessem converter ou mercadejar, a expedição não teve sucesso, João Fernandes ficara no Rio do Ouro, foi viajar com os nómadas, procurava novidades de alguns reinos de África.

Antão Gonçalves pediu ao Infante para ir até ao Rio do Ouro buscar João Fernandes, prometendo trazer carregamento que pagasse todo o gasto da viagem, e assim foi, Antão Gonçalves, Garcia Homem e Diogo Afonso partiram para a Madeira, o mau tempo separou as caravelas, só se juntaram no Cabo Branco e depois reencontraram João Fernandes, regressaram carregados de homens e desembarcaram os cativos em Lisboa.

O relato de Zurara possui enorme vivacidade, colorido e até moralístico, como se pode ver na expressão “a vida humana é como uma roda que ora gira na direção da fortuna ora na desgraça”. Encerra o essencial de todo o projeto henriquino, quando necessário mostra o heroísmo dos homens da casa do Infante, com uma descrição de Gil Eanes, Cavaleiro de Lagos, a lançar-se contra os mouros, quando se lançaram na terra de Zaara.

É por demais sabido que estes descobridores viajavam verdadeiramente em terra incógnita. E tal como no passado recente Dinis Dias assinalara que ali começava a terra dos negros, esta expedição que passou a terra de Zaara julgou ter chegado a um braço do Nilo. Tinham descoberto água doce e alguém observou que estariam perto do Nilo e dá-se uma cena de combate entre um guinéu e um português, episódio rocambolesco, assim contado:  
“À vista do guinéu, troncudo, membrudo, de estatura grada, o português, miúdo e delgado, foi para ele, de um salto, e pendurou-se-lhe nos cabelos. O negro era teimoso e valente, e, embora, achasse, espantado, que escarneciam da sua corpulência, por mais voltas que desse não conseguiu libertar-se, que o marinheiro parecia um galgo dependurado na orelha de um touro possante”.

E no meio da fantasia de que se tinha chegado ao Nilo, Zurara é luxuriante na descrição, que ultrapassa todos os níveis da fantasia:  
“O Nilo é o rio das maravilhas, o rio mais nobre do mundo, e a sua grandeza foi cantada pelos sábios da Antiguidade.
Dizem alguns que ele nasce ao pé do Mar Vermelho e dali corre, para o Ocidente, através de muitas terras, e formando, no meio, a Ilha de Meroe. Nesta ilha, do senhorio da Etiópia, há uma cidade outrora chamada Sabá, ao tempo em que o faraó do Egipto lá enviou Moisés. Foi Cambises, rei da Pérsia, quem lhe pôs este nome.
Chegando o Nilo a Meroe, dali se encaminha para o Norte e, do setentrião, volta ao meio-dia; e em certas estações do ano transborda do leito e inunda os campos do Egipto”.

Prosseguem as refregas, reencontram-se as caravelas, regressam os navios a Lagos, mas a impaciência para regressar à costa da Guiné é enorme. E Zurara descreve a valentia de Nuno Tristão que partiu para a terra dos negros e que sessenta léguas além do Cabo Verde ordenou que se entrasse num rio, saíram em batéis e enfrentaram doze embarcações com oitenta guinéus, armados de frechas. E Zurara escreve lamentoso:  
“No fim de contas – Deus louvado – dos vinte e dois homens dos batéis, apenas dois ficaram sãos. E dos sete da caravela que primeiro escaparam, dois caíram trespassados ao levantar dos ferros e jazeram vinte dias às portas da eternidade (…) Assim acabou, o nobre, valente cavaleiro Nuno Tristão, que muito amava a vida; e também João Correia, Duarte de Holanda, Estevão de Almeida e Diogo Machado, fidalgos que o Infante criara na sua Câmara; e outros escudeiros e peões e mareantes e demais gente da companha.
Então, os corpos foram atirados ao fundo dos mares, sepultas suas carnes já frias nos ventres dos peixes vorazes! Mas que importa o túmulo? É igual que sejamos lançados à terra, como às águas, que nos devorem os peixes ou as aves! Felizes dos que morrem com Deus! E se os leitores desta história orarem por Nuno Tristão e pelos outros portugueses, tais mortes tornaram bem-aventuradas!”.

E diz Zurara que o Infante chorou tamanha perda, pois a quase todos criara, em sua casa, desde meninos.

Aqui e acolá, Zurara deriva para outros episódios, como é o caso das Ilhas Canárias, fala da Madeira e do Porto Santo e de novo regressamos à terra dos negros, como Gil Eanes como capitão. No Cabo do Resgate tomaram 46 mouros e houve escaramuças. Para trás ficara o episódio de na região da Guiné, num imenso paul, Diogo Afonso e mais quinze, passaram à frente dos outros e penetraram num arvoredo muito denso e foram surpreendidos, de través, por uns guinéus armados de azagaias, e Zurara escreve:
“Então, correu sangue da nossa gente das terras de África, pois quis a má fortuna que, de sete feridos, morressem logo cinco – dois portugueses e três estrangeiros, dos que acorriam de longe, tentados pela fama de aventuras, e pela largueza de alma do senhor Infante”.

O relato encaminha-se para o seu termo, sempre ziguezagueando na cronologia. Em 1447, o Infante envia caravelas a um lugar chamado Meça, lá voltaram João Fernandes, que vivera sete meses entre os naturais da terra de Zaara, e Diogo Gil, e Rodrigueanes, entre outros, houve tempestade e tiveram que regressar ao reino. E assim escreve Zurara:
“Foram correndo os anos; e, à medida que passavam, tanto se acostumaram os moradores de Lagos, por aquelas terras de mouros, e tamanha confiança ganharam, por sobre as ondas do oceano, que já os homens não se contentavam em viajar até África para guerrear os infiéis e dilatar a lei de cristo. Mas até houve alguns pescadores que abandonaram os lugares conhecidos de seus pais e avós e foram deitar as redes no mar africano. Muitos dos que na conquista de Guiné se esforçaram, puderam ver, por lá, as águas coalhadas de peixe; e, ao tornarem, rogaram a D. Henrique permissão de longínqua pescaria”.

Zurara findou a sua crónica em 18 de fevereiro de 1453. O documento que escreveu é peça fundamental para a história dos descobrimentos henriquinos. Continua a ser polémico, nesta extensa e nebulosa costa da Guiné, saber quem chegou e quando à terra dos negros, os historiadores debatem e não se entendem quanto à data rigorosa da chegada ao que foi a Guiné onde tivemos praças e presídios até que no século XIX se deu a ocupação e nasceu aquela Guiné que é hoje a Guiné-Bissau.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14286: Notas de leitura (684): “Crónica do descobrimento e conquista da Guiné”, por Gomes Eanes da Zurara, adaptação de Frederico Alves, edição da Agência Geral das Colónias (1) (Mário Beja Santos)

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