quarta-feira, 25 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14406: Os nossos seres, saberes e lazeres (79): Alguns encantos da Ilha Terceira (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2015:

Queridos amigos,
É imperdoável ficar só em Angra do Heroísmo, há muito mais património histórico e riquezas naturais em derredor. Basta pensar em Praia da Vitória. Recomendo aos potenciais viandantes que leiam previamente Vitorino Nemésio, ele tinha aqui a sua terra natal. E se viajarem mais para o Ocidente, é obrigatório ler ou reler "Mau tempo no canal".
Outro aspeto surpreendente da Terceira é sentir-se uma melhor repartição da riqueza, é certo que há o dinheiro dos emigrantes mas sente-se que há vida com bastante qualidade, uma classe média atuante.
Espero que não resistam agora a visitar a Terceira, vem aí os voos low cost, não esqueçam.

Um abraço do
Mário


Alguns encantos da ilha Terceira

Beja Santos


Não se pode sair de Angra sem visitar o Castelo de S. Filipe e a reserva florestal do Monte Brasil. O Castelinho, conhecido por S. Sebastião, está no outro extremo, também é impressionante, tem hoje no seu interior uma pousada. Angra dispôs de mais fortes e fortins, havia que dissuadir o corso e a pirataria tentados pelas enormes riquezas vindas do Oriente e das minas do México e do Perú. São Filipe, também conhecido São João Baptista do Monte Brasil é uma imensidão de muralhas e possui uma lindíssima porta de armas, aqui viveram Gungunhana e D. Afonso VI, há memórias dos dois. Na previsão de um desembarque hostil na Terceira posicionaram-se em pontos estratégicos peças de artilharia que ali estão, relíquia do passado.


Há alguns anos atrás o artista Manuel Botelho fez uma exposição com armas, espingardas metralhadoras, eram fotografias que pareciam não possuir volume, não meter respeito, estavam ali como metal organizado, como estética em instalação, autênticos ready made. Não me canso de olhar esta peça, tive sorte com a luz e o ambiente, sei que é memória de uma guerra, porventura nem funcionou, os Aliados ficaram a muitos quilómetros daqui, nas Lajes, era o porta-aviões e ancoradouro que se iria revelar indispensável para as frotas aéreas, caso da Guerra dos Seis Dias e os ataques ao Iraque.


Temos aqui as indicações para o museu a céu aberto, de um lado está esta dissuasora artilharia, mas se o visitante inclinar a cara tem de frente a magnífica angra e um recorte transversal do casario entre S. Mateus da Calheta e Porto Judeu. Que contraste, no cimo deste Monte Brasil.


Saiu-se de Angra do Heroísmo, Ribeirinha é a primeira povoação, depois Feteira, a Serretinha, mais adiante Porto Judeu, e depois paragem obrigatória em S. Sebastião. Há razões de sobra para visitar este portentoso tempo, cheira ainda a século XV, mas é o século XVI que aqui predomina, é bem patente o tardo-gótico, dá gosto a harmonia do alçado e dos volumes, afagar esta cantaria. No interior está reservada uma enorme surpresa, imagine-se, há por ali pinturas murais, caso único nas ilhas.


Posso ler na brochura da matriz da vila de S. Sebastião: “Em termos insolares, estas pinturas murais são caso único. São as mais antigas que se conhecem nas ilhas e, em termos nacionais, pertencem a um grupo restrito de frescos primo-quinhentistas que simultaneamente estão em bom estado de conservação”. Julga-se que estes frescos terão sido elaborados entre 1510 e 1530. O fresco da direita é de S. Martinho o outro é de uma santa que não fixei. Por ali divaguei a mirar os tetos e as alfaias religiosas, as portas laterais também são impressionantes. Infelizmente, foram imagens que se perderam.



O culto do Espírito Santo prevalece nesta região arquipelágica, é devoção incontornável, tal como o Senhor Santo Cristo. A hierarquia católica teve grande contencioso com estes ritos, a coroação do menino imperador, cerimonial talvez com resquícios de paganismo. O que interessa é que não há freguesia que não possua o seu Império bem garrido, sempre bem mantido. Foi autorizado a entrar no império pelos pintores em plena lavra, as cerimónias estão para breve, apanhei o altar nu, a imagem de Santa Isabel e as coroas do Espírito Santo estão guardadas em casa do mordomo. É impossível não nos impressionarmos com estes templos, únicos no país.


Prossegue o passeio pela Fonte do Bastardo, o objetivo é a Praia da Vitória, terra de muitas belezas e com belo porto, nele começou a derrocada do miguelismo, aqui perderam a veleidade da supremacia naval. Entrámos primeiro na matriz, templo de enorme riqueza, também tardo-gótico, tivemos sorte com a hora, andava por ali o sacristão que nos levou a ver as preciosidades da sacristia. E o inesperado aconteceu.


Pena é que o menino Jesus não apareça mais nítido, ele faz parte da história de Portugal, quase de maneira insólita. Como se sabe, D.ª Maria II deu à luz 11 filhos, e era tal a devoção neste menino na Praia da Vitória que sempre que se aproximava a sua hora feliz vinham buscá-lo, a monarca pariu sempre com este Jesus a seu lado.


Desde a minha primeira visita à Terceira que este soberbo edifício não me sai da memória, nada conheço de tão vigoroso, com tal peso ancestral de modernidade quinhentista ímpar. É a câmara de Praia da Vitória, permitiram a visita ao salão nobre, edificante e com uma pompa e circunstâncias contidas. Tudo bem mantido, em ponto nenhum se veem lixos no chão, circula-se com prazer. E antes de almoço, visita-se ali ao pé a casa de Vitorino Nemésio, ali nasceu em 19 de dezembro de 1901, há objetos pessoais, pode ver-se o seu primeiro livro da juventude, a sua guitarra e fotografias. E fomos à casa das tias, quem leu o magnífico “Mau tempo no canal”, sabe como estas tias foram tão importantes na juventude deste grande nome da literatura portuguesa.


Antes de comer um filete de abrótea e saborear um bocadinho de alcatra de carne (bem procurei uma alcatra de peixe boca negra, não fui bem sucedido), passou-se da Igreja da Misericórdia, tem uma fachada vasta, o fotógrafo amador preferiu este detalhe, convenhamos que há muita garridice nestes azuis e brancos, os terceirenses incentivam as cores garridas, quase fluorescentes, é uma defesa contra o céu de chumbo, como se a natureza se confrontasse com os verdes dos prados, estes azuis esmaltados, castanhos, amarelos, a paleta é delirante.


Banqueteados, vamos agora a caminho das Lajes, a povoação é enorme, vimos o lado português e o lado norte-americano, do aeroporto arrancou um avião pesadão que infletiu para as Américas. Uma passageira da excursão pediu ao guia que se parasse num pasto, gostava de dar ao neto uma foto com vacas. Aproveitei a deixa, e já está, é daqui que vem leite, manteiga e queijo que tanto aprecio, é surpreendente a evolução destes lacticínios, tão saborosos com os queijos de S. Jorge à frente.


Estamos à beira mar, caminhamos para o ponto oposto de Angra do Heroísmo, há muitos miradouros, Ponta do Mistério, Ponta das Quatro Ribeiras, Ponta da Furna, Ponta dos Biscoitos. Procurei registar imagens destas costas escarpadas, há aqui muita falésia a pique, em contraste com tons azuis e turquesa das águas com a espuma muito branca sobre os pedregulhos e calhaus rolados. Espero que apreciem.


Não estivesse um dia tão nebulado e víamos claramente visto a Ilha de S. Jorge, que parece um paquiderme adormecido. Mas não, o que mais gosto neste escarpado são os tons azuis da água, e aquele instante em que a tromba de água se deflagra no rochedo. Que querem, vaidades do amadorismo.


O guia está esmorecido, os céus turvaram-se, é impossível ir ao interior, nesta altura não se pode visitar a Gruta do Algar do Carvão, e com este nevoeiro não é agradável andar pelas reservas florestais no coração da ilha. Toca de aproveitar onde há visibilidade, visitamos demoradamente os biscoitos, vamos agora até Altares, pasmem com a igreja paroquial de S. Roque dos Altares. É quase uma cópia numa igreja norte-americana, desobedece na sua estrutura à configuração do património religioso açoriano, mas é imponente, ao lado visitamos o museu etnográfico, singelo, o império é também imponente. E há mais surpresas no interior da igreja, vejam.


O altar-mor é marcadamente neogótico, as cores são bem vistosas, tudo muito aprumado, não pode haver negligências em tudo quanto seja local de culto, é o esmero na reparação para fazer face às inclemências das chuvas diluvianas, dos ventos que lembram tornados e de uma humidade capilar que não sendo rapidamente sustada tudo apodrece. Uma natureza que faz com que o açoriano viva em permanente sobressalto. As térmitas são outra forma de cataclismo, desfazem as casas, parecem epidemia, são tão temidas quase como os tremores de terra, esses sismos crónicos que a vulcanologia quer prever, para salvar vidas. O passeio acabou, vamos agora para Angra. Sento-me frente ao mar, recapitulo outras visitas. Mal cheguei e perguntei pela casa museu do senhor Ernesto Oliveira Martins, um grande colecionador. Morreu, a casa está fechada, desta feita não vou ver pratas preciosas, mobiliário indo-português, marfins requintados. É assim a viagem, fica uma coletânea de momentos especiais da nossa existência. Desde que aqui aportei, em 1967, sinto-me irremediavelmente tocado por esta cultura e afabilidade. E pela primeira vez na vida parto sabendo que dentro de dias vou regressar a uma ilha mais à frente, o Pico. Espero dar notícias.
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14384: Os nossos seres, saberes e lazeres (78): Relato de visita a Angra do Heroísmo (Mário Beja Santos)

1 comentário:

JD disse...

Caríssimos,
Com estas belíssimas fotos enquadradas por legendas explicativas, o Mário presta um serviço notável ao turismo nos Açores.
JD