domingo, 29 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14416: (Ex)citações (269): O poeta Herberto Helder (1930-2015) que eu "conheci"... (António Graça de Abreu)




Dedicatória autografada de Herberto Helder (1930-2015) ao António Graça de Abreu, no seu livro "Poesia Toda", editado em 1990. O autor de “A Morte Sem Mestre”, seu último livro, publicado em vida (2014),  agradece aqui a oferta do livro "Poemas de Li Bai" (1990), traduzido do chinês para portuguguês,  que valeu ao nosso camarada, ele próprioo poeta, o Prémio Nacional de Tradução do Pen Club Português e da Associação Pirtuguesa de Tradutores (1991).



1. Mensagem que nos enviou o António Graça de Abreu [, foto atual à esquerda], com data de 24 do corrente:

A propósito da morte do poeta Herberto Helder, fui buscar as palavras que sobre ele, e sobre quase todos nós, escrevi em Bissau, em 15 de Abril de 1974.

Eis o texto no meu Diário da Guiné (Lisboa. Guerra e Paz Ed., 2007), pags. 212/213. cinco dias antes de regressar a Portugal, com a comissão terminada:


Bissau, 15 de Abril de 1974

A noite passada não dormi, foi uma directa à moda antiga, não para estudar mas para ler. Às onze e meia da noite meti-me a sério numa cavalgada informe, com sentido, pela “Construção do Corpo” e a “Poesia I”, toda, de Herberto Hélder. Li, reli, li outra vez. Com prazer e enfado, semi-cilindrado pela magia dos versos. Herberto, hermético e luminoso, às vezes confundindo, aclarando, fluindo, enlevando no caudal do rio das palavras. Assim:


Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.


(…)

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se a boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbadas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.


Capa do Diário da Guiné (2007)
Às cinco e meia da manhã, nem ponta de sono. Tinha de ir fardado de alferes ao hospital para o último tratamento ao meu famoso dente. Quando o dia nascia, parti à descoberta dos homens que nunca leram um livro, que nada sabem de poesia mas que, a seu modo, são sábios como o Herberto Hélder.

A Bissau negra acordava para mais um dia. Saí para a rua, doze quilómetros desde a casa do Luís até ao hospital. Fiz tudo a pé e não tomei o caminho costumeiro. Atravessei Bissau, Bandim, pelos bairros pobres de que ignoro o nome, pelas ruelas de saibro e imundície, pelo meio das misérrimas tabancas dos africanos. É a parte maior da cidade quase desconhecida pelos brancos, onde os portugueses, excepto as patrulhas da Polícia Militar, não têm o hábito de entrar. Eu, alferes, branco, a percorrer de madrugada os caminhos habitados pelos homens de pele negra, filhos de África, meus amigos.

Os meninos à minha volta, a curiosidade das gentes, o olhar fixo dos mais velhos. Ninguém me fez mal, mas adivinhei um mundo a borbulhar no castanho brilhante dos olhos deste povo! Da subserviência, “b’dia m’alferi”, à surpresa, ao desprezo. O que é isto, um alferes branco, um intruso nas nossas tabancas às seis e meia da manhã?!... Os negros acordavam, lavavam-se, davam de mamar aos filhos, cozinhavam, limpavam as casas humildes. A vida renascia.

Caminhei pela paisagem das gentes negras de Bissau. Eles não sabiam, mas eu estava ali para me despedir, para os levar comigo nas arcadas da alma, para sempre.



Depois conheci melhor o poeta Herberto Hélder. Eis uma peça raríssima, saída da sua pena. Herberto era pouco dado a elogios, mas escreveu-me em Setembro de 1990. Eis as suas palavras:

19.Set.90

Prezado António Graça de Abreu

Muito grato pela oferta dos “Poemas de Li Bai” que principiei agora a ler (a introdução) atentissimamente. Gostaria de poder retribuir já a sua gentileza mas só em Novembro sairá a minha poesia toda. Nessa altura terei muito gosto em enviar-lhe um exemplar. Conto que saiba perdoar-me a desigualdade da permuta.

Penhorado pela sua atenção, afectuosamente,

Herberto Helder




Fotos: © Antrónio Graça de Abreu (2015). Todos os direitos reservados.
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5 comentários:

Luís Graça disse...

A prof Maria Esteles Guedes, que tem um fabuloso sítio no portal Triplov, é uma guineense de adoção, colega de liceu de camaradas nossos como António Estácio, é especialista na poesia de Herberto Helder sobre cuja morte escreveo seguinte texto que merece ser lido e reproduzido, aqui, com a devida vénia. Recordo, por outro lado, as palavras do seu filho Daniel Oliveira: Por favor, não lhe façam a maldade, post mortem, de lhe dar um nome de rua ou erguer uma estátua!... LG

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http://www.triplov.com/estela_guedes/2015/herberto-helder.htm

Atenção senhores políticos:
Herberto Helder morreu


Herberto Helder no Triplov

Morreu, como antevisto em "A morte sem mestre", perguntando eu a mim mesma, quando acabei a leitura desse seu último livro: que podes tu escrever a seguir? E no entanto acredito que ele terá deixado um último punhado de poemas para publicar, e que esse punhado de poemas ainda terá algo de novo, algo capaz de nos surpreender.

O percurso de vida traçado nos poemas, ou de livro a livro, cronologicamente falando, vai da vida à morte, sim. Tem um ponto altíssimo em O amor em visita, a celebrar a sua explosiva e arrebatada juventude, e nos últimos, sem perder a capacidade explosiva, mergulha num mundo negro, antecipador da morte, mundo de obra ao negro, a contrastar com a obra ao rubro que foi título do meu segundo livro sobre ele.

Nesta segunda fase, notei como os seus admiradores se espantaram com a aparente falta de qualidade dos livros, porque a Poesia, poesia sobretudo romântica, e herbertiana, essa da juventude e idade maior, nos habituou a uma beleza musical e a uma seleção de vocabulário incompatíveis com o andamento furioso da prosa, rude, mal educada, dos últimos anos. Não podemos conter a poesia em frascos de farmácia, devidamente rotulados. As últimas obras são tão boas como as primeiras, simplesmente são um reverso de medalha, escritas por um autor zangado, dececionado com o rumo que tomaram as coisas públicas. Eis uma temática arredia das obras anteriores que, se agora se apresentou, é por ser tão significativa que os textos passaram a situar-se além do bom gosto, além do bom senso.

O Herberto deixou-nos muitos poemas, por isso não nos deixou. Tenho pena que já não haja muita matéria inédita dele para publicar. Só nesse ponto a sua partida é uma perda. Também é uma perda o seu silêncio, é verdade. O silêncio pode conter carga crítica maior do que um grito arremessado à cara de alguém. Noutros pontos de vista, não, o Herberto Helder é um poeta muito grande, que vai ficar connosco para sempre.

Esperemos que este governo que agora temos se lembre de que Herberto Helder merece algum preito de homenagem. Atenção, senhores políticos: haja algum respeito por um dos grandes poetas do nosso tempo e dos maiores da língua portuguesa! De certeza que ele não aceitaria pompas e circunstância, mas há formas diplomáticas de o Estado lhe tirar o chapéu.


Maria Estela Guedes . Odivelas . 23 de março de 2015

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Não é verdade que costumo dizer que, se quisermos, tudo o que escrevermos ou dissermos pode ter a ver com a Guiné?

Muitas vezes há camaradas nossos que se enfastiam quando aqui aparecem 'posts' ou artigos que, dizem eles, "não tem nada a ver com o 'core business' do Blogue". Já tenho visto isso, sim senhor...

Ora bem, morre um Poeta, e não é que está aqui a 'prova provada' em como até esse acontecimento é possível 'ligar à Guiné'? Leiam o que o Graça de Abreu escreveu no seu Diário! Não deixa de ser curioso e intrigante que ele, em termos de 'quase despedida' num tom que já deixa perpassar aquela saudade que nos tocou, mesmo quando dizíamos "Guiné, nunca mais", vá encontrar nos poemas de Herberto Hélder a força para vencer as suas últimas barreiras.

Como costumo escrever, o Graça de Abreu é um bom poeta e é pena que às vezes se deixe navegar por outras águas.

Abraço.
Hélder S.

Luís Graça disse...

Seis poemas de Herberto Helder (1930-2015) selecioandos pelo jornal "Público" (25 de março de 2015)...

Uma iniciativa louvável: a melhor homenagem que podemos fazer a um poeta é divulgar a sua poesia... E o Herberto Helder é muito pouco ou nada conhecido da grande maioria dos falantes da língua portuguesa... Tal como Fernando Pessoa, quando morreu... há 75 anos atrás... Aqui vão os seis poemas... Cortesia do Público... LG


24/03/2015 - 19:07

O coordenador editorial da Assírio & Alvim, Vasco David, e os críticos do PÚBLICO António Guerreiro e Hugo Pinto Santos escolheram seis poemas de Herberto Helder. A edição utilizada foi, em todos os casos, a compilação Poemas Completos (Porto Editora, 2014).


http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/poemas-escolhidos-1690203



AOS AMIGOS

Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
— Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

de Lugar (Escolha de Vasco David)



alguém salgado porventura
te
toca
entre as omoplatas,
alguém algures sopra quente nos ouvidos,
e te apressa, enquanto corres
algumas braças acima
do chão fluido, leva-te a luz e subleva,
tão aturdidos dedos e sopros,
até ao recôndito,
alguma vez te tocaram nas têmporas e nos testículos, alto,
baixo,
com mais mão de sangue e abrasadura,
e te cruzaram nesse furor,
e criaram, com bafo
ardido, ásperos sais nos dedos, e te levaram,
a luz corrente lavrando o mundo,
cerrado e duro e doloroso, acaso
sabias
a que domínios e plenitudes idiomáticas
de íngremes ritmos, que buraco negro,
na labareda radioactiva,
bic cristal preta onde atrás raia às vezes
um pouco de urânio escrito


de A Faca não Corta o Fogo (Escolha de Vasco David)


BICICLETA


Lá vai a bicicleta do poeta em direcção
ao símbolo, por um dia de verão
exemplar. De pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos pedais. Uma grande memória, os sinais
dos dias sobrenaturais e a história
secreta da bicicleta. O símbolo é simples.
Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais —
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. Dá à pata
como os outros animais.

O sol é branco, as flores legítimas, o amor
confuso. A vida é para sempre tenebrosa.
Entre as rimas e o suor, aparece e des
aparece uma rosa. No dia de verão,
violenta, a fantasia esquece. Entre
o nascimento e a morte, o movimento da rosa floresce
sabiamente. E a bicicleta ultrapassa
o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa
no instante da graça.

De pulmões às costas, a vida é para sempre
tenebrosa. A pata do poeta
mal ousa agora pedalar. No meio do ar
distrai-se a flor perdida. A vida é curta.
Puta de vida subdesenvolvida.
O bico do poeta corre os pontos cardeais.
O sol é branco, o campo plano, a morte
certa. Não há sombra de sinais.
E o poeta dá à pata como os outros animais.

Se a noite cai agora sobre a rosa passada,
e o dia de verão se recolhe
ao seu nada, e a única direcção é a própria noite
achada? De pulmões às costas, a vida
é tenebrosa. Morte é transfiguração,
pela imagem de uma rosa. E o poeta pernalta
de rosa interior dá à pata nos pedais
da confusão do amor.
Pela noite secreta dos caminhos iguais,
o poeta dá à pata como os outros animais.

Se o sul é para trás e o norte é para o lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior.

de Cinco Canções Lunares (Escolha de Hugo Pinto Santos)

(Continua)

Luís Graça disse...

Seis poemas de Herberto Helder

(Continuação)

que eu aprenda tudo desde a morte,
mas não me chamem por um nome nem pelo uso das coisas,
colher, roupa, caneta,
roupa intensa com a respiração dentro dela,
e a tua mão sangra na minha,
brilha inteira se um pouco da minha mão sangra e brilha,
no toque entre os olhos,
na boca,
na rescrita de cada coisa já escrita nas entrelinhas das coisas,
fiat cantus! e faça-se o canto esdrúxulo que regula a terra,
o canto comum-de-dois,
o inexaurível,
o quanto se trabalha para que a noite apareça,
e à noite se vê a luz que desaparece na mesa,
chama-me pelo teu nome, troca-me,
toca-me
na boca sem idioma,
já te não chamaste nunca,
já estás pronta,
já és toda

de A Faca não Corta o Fogo (Escolha de Hugo Pinto Santos)




li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão e eu me perdesse nela,
a paixão grega

de A Faca não Corta o Fogo (Escolha de António Guerreiro)

http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/poemas-escolhidos-1690203

(Continua)


Luís Graça disse...


Seis poemas de Herberto Helder

(seleção do Público, 25/3/2015)

(Continuação)


cheirava mal, a morto, até me purificarem pelo fogo,
e alguém pegou nas cinzas e deitou-as na retrete e puxou o autoclismo,
requiescat in pace,
e eu não descanso em paz nas retretes terrestres,
a água puxaram-na talvez para inspirar o epitáfio,
como quem diz:
aqui vai mais um poeta antigo, já defunto, é certo, mas em vernáculo
e tudo,
que Deus, ou o equívoco dos peixes, ou a ressaca,
o receba como ambrosia sutilíssima nas profundas dos esgotos,
merda perpétua,
e fique enfim liberto do peso e agrura do seu nome:
vita nuova para este rouxinol dos desvãos do mundo,
passarão a quem aos poucos foi falhando o sopro
até a noite desfazer o canto,
errático canto e errado no coração da garganta,
canto que o traspassava pela metade das músicas
— e ao toque no autoclismo ascendia a golfada de merda enquanto as turvas águas últimas
se misturavam com as águas primeiras

de Servidões (Escolha de António Guerreiro)

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