sexta-feira, 3 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14432: Notas de leitura (699): “Elefante Dundum – Missão, testemunho e reconhecimento”, por João Luíz Mendes Paulo, edição de autor, 2006 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Junho de 2014:

Queridos amigos,
O Major Mendes Paulo chega a Piche e volta a sonhar com carros de combate, material satisfatório para aquelas picadas sem fim daquele ermo do Leste. Spínola apoia-o, o Ministério da Defesa Nacional entrava o processo, dá-lhe viaturas Chaimite com armas que encravavam, desapontamento maior não podia haver.
E segue-se a ação Mabecos, um desastre, um monumento à incompetência dos seus superiores. Ele decide pôr termo à carreira militar. É punido e louvado, algo que eu também experimentei.
O mais edificante deste livro não é o amor aos carros de combate, é o apreço que ele denota em cada página pelos seus soldados.
Não percam esta leitura.

Um abraço do
Mário


O senhor M5A1: A história prodigiosa do Elefante Dundum (2)

Beja Santos

O Major Mendes Paulo quando chega à Guiné é colocado em Piche, recorda os carros de combate M5A1, que usara com sucesso em Nambuangongo.

Em “Elefante Dundum, Missão, Testemunho e Reconhecimento”, edição de autor, 2006, este oficial de Cavalaria descreve ao pormenor como lhe negaram esse sonho, oferecendo-lhe em alternativas viaturas Chaimite, que se revelaram inadequadas ao terreno. Será na Guiné que irá descobrir que a sua carreira militar chegou ao fim.

Descreve o dispositivo do Batalhão colocado em Piche e com elevado sentido de humor conta como os soldados respondiam de forma sugestiva e humorística à falta de meios. Um pórtico assinalava o “Aeroporto Internacional de Canquelifá”; neste destacamento havia o Largo do Patacão, mas também o beco das necessidades e uma tabuleta colocada numa chapa de bidão:

Noites Festivas de Canquelifá
Programa
Rajadas de Longo Alcance
Corrida para as Valas
Concurso de Palavrões
Salva de Foguetões e Morteiros
Pirotecnia Variada
Com a simpática colaboração do PAIGC

Não demorou a que Mendes Paulo entrasse em litígio com o CAOP 2, ver-se-á adiante o seu desfecho. Confrontado com os graves problemas a que eram sujeitas as colunas auto, obrigadas a laboriosas picagens para a deteção de minas, Mendes Paulo apercebe-se que os M5A1 fariam ali um jeitão. E dá-se a circunstância de Spínola, informado das propostas de Mendes Paulo para trazer carros de combate para a Guiné, convocou de urgência para Bissau. O Comandante-Chefe começou a conversa nos seguintes termos: “Vamos direitos ao assunto. Preciso de blindados para manter abertos os itinerários principais. Empenhamos cada vez mais meios aéreos para garantir a segurança. Dizem que não há mais blindados e que já compraram tudo o que podiam. Conte lá essa história dos M5A1 no norte de Angola”. Mendes Paulo contou.

Vem até Lisboa e dirige-se até ao Ministério da Defesa Nacional. Começaram a chover as objeções: cada revisão de um M5A1 custaria mais de 200 contos e, pior do que tudo, eram material NATO. Mendes Paulo protesta, aquilo é material obsoleto. Há depois uma conversa entre Spínola e o interlocutor de Mendes Paulo. O Ministro da Defesa Nacional manda fornecer quatro viaturas Chaimite e preparar pessoal apropriado.

E começaram a surgir problemas com armamento: as metralhadoras HK-21 encravavam, pediu para se usarem as Browing-30, iguais às do M5A1, responderam que não, que era material NATO. Mendes Paulo sente saudades dos M5A1, com tudo no sítio – metralhadoras, canhão, rádios, intercomunicação, motor auxiliar e até, luxo máximo, giro estabilizador e rotação da torre elétrica hidráulica. Onde as Chaimite davam provas francamente positivas era na capacidade anfíbia, mas não tinham armamento capaz nem rádios eficientes. Na demonstração em João Landim, em fevereiro de 1971, as Chaimite desiludiram, o espetáculo foi um fiasco, salvou-se a demonstração da capacidade anfíbia. Enfim, foram mais cinco blindados para reforçar os parcos meios do Esquadrão de Bafatá.

O azedume com o CAOP 2 era notório e patente. E é nisto que surge a ação Mabecos. Tratava-se de uma ação de artilharia, o BCAV 2922 devia fornecer a devida escolta às peças. Estudaram-se os itinerários e o apoio aéreo. Os planos pareciam em boa conformidade, o CAOP 2 adia a ação. Para Mendes Paulo, tinha-se perdido a surpresa, o inimigo ia perceber qual era a missão, acabava o segredo, estariam à espera da força que ia sair de Piche. Ordens e contraordens. Para agravar a situação, rebentou uma granada numa caserna, morreram três homens. Caía a tarde quando começou a ação Mabecos.

Não demorou a terem pela frente os guerrilheiros do PAIGC, é um bigrupo fortemente armado. Rebentam granadas por toda a parte. Os artilheiros guineenses de Canquelifá abrem fogo com o 14, em tiro direto. Vai por ali tropa novata. O IN acaba por retirar. O soldado Duarte Dias Fortunato será feito prisioneiro pelo PAIGC, será libertado depois dos acordos de 1974, mas salvou da morte certa o seu comandante, o Alferes José Augusto Rodrigues. O IN vinha com vontade de destruir toda aquela artilharia, e depois daquele vendaval de fogo, retiraram com mortos e feridos e um elemento valioso, um soldado português capturado. As tropas reagrupam-se. O autor descreve a situação:
“Desloquei-me às apalpadelas até ao improvisado posto de socorros, na caixa de um dos Unimog. Felicito o 1.º cabo Louro.
- Como está o alferes Rodrigues? É grave?
- Cego deve ficar, tem várias feridas de estilhaços, estão lá dentro…
- Ele sabe?
- Desconfia.
- E o estado dos outros?
- O Faria é o pior, continua a perder muito sangue. Os outros safam-se.
Fiquei ali, era a primeira vez que falava com o Alferes Rodrigues depois da emboscada. Lembrava-se do Fortunato a disparar a G3 de rajada, os guerrilheiros a avançarem aos gritos. Acordou com o Louro a arrastá-lo para a bolanha e a dar-lhe morfina. Tentei animá-lo, já passou, ia ficar bom, era mais o susto.
- E o outros?
É espantoso: ligadura na cara, braço ao peito, a primeira preocupação era com os seus homens”.

E vem o mais condoído, comovente parágrafo desta bela obra, o momento em que se toma a decisão irrevogável de fechar o livro da carreira militar:

“Era a noite mais longa de todas as noites. Os três mortos em Piche, a emboscada, o sofrimento do alferes Rodrigues e dos outros feridos. Depois, a raiva de ter previsto o que aconteceu. Como podemos ter crédito perante o nosso pessoal quando todos os que tinham dois dedos de testa viram os erros cometidos?

A missão é imperativa. Aprendi, ensinei, cumpri. Expliquei muitas vezes que nos pode parecer estranha uma determinada missão e, no entanto, quem a ordenava teria mais dados e saberia o que estava a fazer. Até aqui nunca tinha posto este princípio em causa.

Noite fora, senti uma vida inteira a passar em ritmo lento. Das primeiras memórias, correndo pela horta da aldeia do Gavião, despreocupado e feliz, quando caçar um grilo na sua toca era o alvo apetecido de cada dia; até Cascais, com cinco filhos e uma mulher que amava – tudo aparecia filmado à minha frente. A correria virou marcha, com a tropa sempre em primeiro lugar. Casámos em julho, em março seguinte já estávamos em Goa, num distante quartel de Valpoy. E depois Moçambique, Angola e agora a Guiné, com a Beira e a academia nos intervalos.

Que estás tu aqui a fazer, no meio da noite, numa bolanha perdida, com nove canhões, bouum, bouum, bouum, a cada minuto? Monco caído, moral em baixo, orgulho ferido, quiseste armar em bom e comandar a escolta dos nossos coronéis, convencido de que ias dar uma lição ao PAIGC…
Primeira ilação: os supostos comandantes nunca iriam comandar, fosse na ficada, de avião ou no quartel. Segunda ilação: nunca devia ter contado com o apoio aéreo. Terceira: teria de confiar apenas na nossa tropa e experiência – e aqui a maior revolta, por ter iniciado a ação a uma hora contrária a todas as normas, quer de ordem operacional, quer de segurança”.

E Mendes Paulo chega à vida civil. O livro está profusamente ilustrado, é um registo pessoal que todas as suas comissões e do seu desvelo incontido aos carros de combate.

E não esqueçamos o Elefante Dundum a propósito do carro elefante que apanhou de surpresa a UPA/FNLA. Livro empolgante, sem margem de dúvida.
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Nota do editor

Poste anterior de 30 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14418: Notas de leitura (698): “Elefante Dundum – Missão, testemunho e reconhecimento”, por João Luíz Mendes Paulo, edição de autor, 2006 (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

No comentário à primeira parte das observações a este Livro já me referi às consequências que a tal "Operação Mabecos" produziu na carreira de Mendes Paulo.

E agora, com os excertos que o Beja Santos respiga, ainda podemos ver melhor o que a 'longa noite no mato', no meio do sofrimento e das consequências da irresponsabilidade, produziu no pensamento e decisão de Mendes Paulo.
Como disse, aquando da chegada ao Quartel de Piche, depois da "operação", de forma quase teatral, Mendes Paulo à porta do seu quarto, onde se trancou, recusando-se a sair e a comer até que alguém 'superior' (especificamente Spínola) fosse lá falar com ele, arrancou os galões e deitou-os no caixote que estava à porta, no exterior.

Tudo o que ele refere, como matéria de reflexão, é correcto.
Na minha opinião, e já a manifestei no tal meu artigo/post sobre o "Carnaval nunca mais", para uma operação do tipo da que se propunham fazer, alguém se distraiu a não fazer uma 'fita de tempos', ou então foi mal planeada e/ou executada.
As peças de artilharia que iam dar corpo à acção deviam concentrar-se em Piche e sair dali para o Corubal donde fariam então o seu 'festival'. Tendo em conta as distâncias onde estavam na origem (Pirada, Sare Uale (ou Sare Bacar? já não me lembro) e as diferentes dificuldades nas suas deslocações deveriam ter partido de modo a chegarem em simultâneo, ou quase, para depois seguirem logo.
Não foi assim que aconteceu.
Em vez de chegarem, 'foram chegando'. Uns agora, numa manhã, outros à tarde e outros (já sem certezas) no outro dia. Claro que os informadores do IN puderam e tiveram tempo para isso, perceber que algo diferente do habitual se iria passar.
Depois, e também já foi referido, houve a tal granada que rebentou na caserna e que originou os tais três mortos. Pois sim, mas é preciso que se saiba que não caiu por cair. Foi porque houve ordens e contra-ordens de equipa, desequipa, avança, aguarda, e estas coisas originam relaxamento (sabe-se que não deve acontecer mas a cadeia de comando tem a obrigação de saber que os homens têm que estar sempre motivados e o 'faz, desfaz' é contrário a esse desiderato). E os feridos? Nessa caserna, para além dos três mortos houve mais alguns feridos, com mais ou menos gravidade e, fora isso, a moral do pessoal ficou bastante afectada.

E o que se disse de os "superiores" terem recusado fazer reconhecimento aéreo? Verdade? Simples rumor?
A verdade é que, tal como Mendes Paulo relata, a emboscada foi montada e funcionou. E também é preciso que se diga que ainda podia ter sido pior se a coluna tem caído toda na zona de morte, o que felizmente não sucedeu. E nesse confronto, para além do 'apanhado à mão' e do ferido Alferes Rodrigues ainda houve mais uns quantos.
Aquando do regresso das tropas a Piche esgotaram-se as reservas de 'tranquilizadores' tanto foi a afectação que atingiu o pessoal.

Realmente Mendes Paulo tem razão em todas as ilações que considerou!

Hélder S.