segunda-feira, 20 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14492: Notas de leitura (705): Abdulai Silá, o grande prosador guineense (1): "A Última Tragédia" (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Junho de 2014:

Queridos amigos,
Uma surpresa de um escritor empolgante, empático, um grande confecionador do português e do crioulo guineense.
Temos aqui uma patroa branca iluminada por Deus, uma criada negra nascida no Biombo sob o sinal do azar e uma paixão que irá desaguar numa tragédia, à mistura teremos o emolduramento do colonialismo nos anos 1950.
É uma injustiça e um atentado cultural que este escritor não esteja editado em Portugal. Leiam-no e vão ver que me dão razão.

Um abraço do
Mário


Abdulai Silá, o grande prosador guineense (1)

Beja Santos

Abdulai Silá nasceu em 1958, em Catió. Estudou em Dresden, então República Democrática Alemã onde se licenciou em Engenharia Eletrotécnica. Além de engenheiro é também economista e investigador social. Foi cofundador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas – INEP, da primeira editora privada da Guiné-Bissau, a Ki Si Mon e da revista cultural Tcholona. Eterna Paixão é o primeiro romance guineense (1994) ao qual se seguiu a publicação de A Última Tragédia (1995) e Mistida (1997). Esta trilogia foi publicada em 2002 pelo Centro Cultural Português Praia-Mindelo. Importa esclarecer que não há nenhuma edição em Portugal deste autor, ele é editado em Bissau pela Ku Si Mon Editora Lda.

Em sucessivas entrevistas, Abdulai Silá fala das suas recordações, dos seus sonhos, da força da escrita, da mágoa que representam os sucessivos retrocessos da Guiné-Bissau. Falando da guerra de libertação diz o seguinte:
“Não é fácil para mim falar da guerra de libertação. As minhas lembranças são horríveis! Perdi o meu melhor amigo de sempre, o meu irmão Idrissa, que numa manhã de fevereiro de 1972 foi gravemente ferido. Tinha na altura oito anos de idade, ficou paraplégico, viveu mais seis anos. No mesmo dia, uma outra irmã minha, que tinha dez anos, perdeu uma perna. Ela era a melhor futebolista de Catió… podes imaginar como foi a vida dela depois? O meu pai morreu pouco tempo depois em consequência do choque que teve ao ver metade da família a sangrar. A minha mãe foi quem aguentou mais, mas perdeu a alegria da vida. Tomou conta do meu irmão paraplégico”.

No inverno rigoroso de 1984, em Dresden, Silá ficou mais de duas semanas retido no quarto, foi nessa altura que escreveu A última Tragédia. Escreveu depois Eterna Paixão, o primeiro livro que publicou. Mistida tem uma temática mais próxima do desencanto guineense, como ele observou a Fernanda Cavacas:
“As pessoas que estão hoje em situação de desenrasca tinham há pouco tempo outras preocupações, tinham outros sonhos. Os valores tradicionais africanos de solidariedade foram destruídos. Foram destruídos por pessoas concretas e essas pessoas, infelizmente, conseguiram destruir a tal ponto que puseram em questão os próprios valores seculares. E hoje transformam a vida nisso, numa coisa banal em que não há mais sonhos, em que a esperança foi enterrada… acho que nós ainda temos de encontrar uma explicação para tudo isto e, sobretudo, uma explicação para as gerações vindouras. O que é que a geração vindoura dirá em relação a nós? Quando nós destruirmos mesmo o nosso país com essa desgovernação, essa corrupção que acaba por dar cabo de nós mesmos, o que é que a geração vindoura dirá?”.

A Última Tragédia passa-se na Guiné colonial dos anos 1950. Tem um arranque luminoso:
- “Sinhora, quer criado? Ela repetira esta frase já não sabia quantas vezes naquele dia. Uma pergunta imbuída de esperança, que colocara em muitas casas e em diversas pessoas. Até parecia que a origem das pessoas que a atendiam era determinada pela altura do sol: No início, quando o sol se encontrava lá em baixo, ainda mansinho, ela fora atendida quase sempre por jovens brancos, provavelmente filhos das senhoras brancas a quem ela de facto queria dirigir a falar; depois o sol subira, tornando-se bravo, agitando as pessoas e as coisas, e então, durante todo aquele período, só fora atendida por gente que certamente não habitava naquelas casas, uns empregados domésticos que apesar de serem, na quase totalidade dos casos, da sua raça, nem por isso se dignavam ouvi-la, deixá-la explicar direito as suas pretensões; enfim, o sol se acalmara de novo, o suor deixara de correr por todo o corpo e eis que finalmente ela localiza uma interlocutora condigna, uma senhora branca que habitava uma casa grande, que até parecia estar à sua espera”.
Depois de muitas peripécias, Ndani, é admitida como criada por Maria Deolinda Leitão, mulher de funcionário colonial. Dona Linda, esta, quer que a menina tenha “nome de gente”, trata-a por Maria Daniela. Ndani veio do Biombo amaldiçoada por bruxos, veio cheia de fome, procura adaptar-se à psicologia do branco. Dona Linda descobre que é uma agente da civilização, é preciso levar a criada à igreja. Cedo o proselitismo desta iluminada choca com a rotina das outras senhoras brancas, mais do que fazer rezas e procissões é preciso fazer escolas, assim se impedirá, controlando a escola, qualquer subversão que surja.

Em paralelo, o régulo de Quinhamel acorda para o sonho de construir uma casa como tem o funcionário colonial local e depois encontrar uma jovem esposa com regras de civilização. Ndani será eleita. O régulo pede ao professor local que venha à sua casa, quer passar a papel o seu testamento, não é para deixar dinheiro a ninguém, é para que se saiba o que o régulo Bsum Manky pensa da presença do branco, um plano de como tirar os brancos a mandar nesta terra. “Não é matar ninguém. Não é matar nem expulsar ninguém. É só pôr os brancos no seu lugar. Essa coisa de uma pessoa ir mandar na terra de outras pessoas não me agrada, não estou de acordo. Então eu posso sair daqui e ir mandar no chão dos Bidjogós, sem mais nem menos? As pessoas podem ir para onde quiserem ir, podem viver em paz onde quiserem viver, mas agora ir para mandar nas pessoas que encontram lá, para cobrar impostos, castigar, isso não pode ser”. Mas este régulo morre sem ter concluído o seu testamento. Ndani apaixona-se pelo professor, paixão correspondida. Partem para Catió, aqui o filho de um funcionário colonial procura fazer uma tropelia ao professor, este aplica um corretivo ao administrador que irá aparecer morto em casa. A reação da administração é encontrar um bode expiatório, monta-se uma cabala contra o professor, e mesmo com o médico a dizer em tribunal que o professor não assassinara ninguém, o professor será deportado para São Tomé. Como nas grandes obras românticas, Ndani irá todos os anos até ao cais do Pidjiquiti esperar pelo seu amante. Mas a atmosfera vingativa de África acaba por vencer, e Abdulai Silá termina o seu livro numa combinação espetacular entre o português e o crioulo guineense: “Subitamente, sentiu um vento diferente a soprar. Estava carregado de muita humidade. Num instante tinha toda a roupa molhada e a água começou a dançar à frente, num ritmo absurdo que nem um kankuran tchaskiado. O ambiente à sua volta tornou-se turvo. Virou a cabeça para um lado e para o outro, mas descobriu que o cenário era sempre o mesmo. A água exibia a sua estranha dança e não deixava ver outra coisa. Abriu a boca e choupou uma boa quantidade. Começou então a ouvir uma melodia desconhecida, uma mistura de sons agudos que chegavam de todos os lados, fazendo vibrar as mãos e os pés sem parar. O ambiente tornava-se cada vez mais turvo, a água à sua volta dançando a um ritmo frenético. Tinha que olhar para aquele local de costume onde estava o seu homem à espera. Tinha que falar com ele, sem falta.
Tinha que dizer-lhe que estava morrendo de saudades…”.

Uma tragédia antiga, grega ou africana, a fatalidade de ver o amor roubado por ódios de poderes dominantes. Um livro impressionante que abre a carreira literária de Abdulai Silá.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14483: Notas de leitura (704): A contestação contra a guerra colonial: A radiografia das universidades em 1971 feita por uma organização ultranacionalista (Mário Beja Santos)

3 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Não costumo gostar nem simpatizar com as recensões do Mário Beja Santos. Mas reconheço-lhes a importância.
Por certo, será defeito meu, ou mau gosto, ou pedra no sapato por ter sido copiado e plagiado em título de livro pelo MBS, os "Diários da Guiné", dois para ele, um (o primeiro), para mim. Basta ir a qualquer boa livraria, à net, a qualquer base de dados e ver a confusão que três livros com o mesmo título provocam.Alguém cavalgando alguém não é bonito, mas há quem goste.
Agora cumpre-me saudar o Mário Beja Santos e agradecer-lhe esta excelente recensão. Obrigado Mário Beja Santos.

E registo palavras do Abdulai Silá, o autor:

“As pessoas que estão hoje em situação de desenrasca tinham há pouco tempo outras preocupações, tinham outros sonhos. Os valores tradicionais africanos de solidariedade foram destruídos. Foram destruídos por pessoas concretas e essas pessoas, infelizmente, conseguiram destruir a tal ponto que puseram em questão os próprios valores seculares. E hoje transformam a vida nisso, numa coisa banal em que não há mais sonhos, em que a esperança foi enterrada… acho que nós ainda temos de encontrar uma explicação para tudo isto e, sobretudo, uma explicação para as gerações vindouras. O que é que a geração vindoura dirá em relação a nós? Quando nós destruirmos mesmo o nosso país com essa desgovernação, essa corrupção que acaba por dar cabo de nós mesmos, o que é que a geração vindoura dirá?”.

Centenas de mortos no Mediterrâneo, na fuga para a Europa, africanos, tanta gente humilde e boa, à mistura com éne novos esclavistas, hoje também africanos,diariamente tentando fugir à miséria, à fome, à morte, a caminho de uma
Europa que os colonizou (?) no passado. Todos hoje procuram uma vida melhor.
Porquê líbias, malis, nigérias,senegais, guinés, somálias na sangria e morte dos seus filhos?

Abraço,

António Graça de Abreu

JD disse...

Também costumo estar de pé atrás relativamente às aparições do António Graça de Abreu, com frequentes manifestações de vaidade ou provocação, mas, também, com traduções ou autorias de inegável mérito.
No último período do comentário manifesta indisfarçável indignação, a propósito do extracto reproduzido, que reporta os valores destruídos por pessoas concretas, os grandes responsáveis pelo andar do mundo, e os sequazes locais que dão corpo às hipocrisias exportadas, que desde os anos 50 provocaram tanta destruição estrutural, tanta perda de identidade, enfim, a perda da confiança dos povos que vivem em paz.
Para ambos um abraço fraterno
JD

Antº Rosinha disse...

É muito interessante lermos o que os pretos escrevem sobre brancos e pretos, principalmente se fôr escrito em português, ou mesmo em crioulo.

Agradecido Beja Santos por mais esta.

Mas este, será im livro que adquiro, se me aparecer na frente.