domingo, 26 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14528: Libertando-me (Tony Borié) (14): O aeroporto era já ali

Décimo quarto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.




Faltava pouco para as quatro horas da tarde, atravessávamos a “Woodrow Wilson Bridge”, que é a ponte, na parte leste da cidade de Washington, onde existe a fronteira entre os estados de Maryland e Virgínia, é uma estrada rápida, o tráfico é intenso, mas deslizava suave e controlado, muitos letreiros de estrada avisando e dando informações do que por lá havia, constantemente apareciam nos diversos painéis de computador, aquelas palavras mágicas, dizendo “denuncie qualquer veículo suspeito ou pessoa que conduza agressivamente”. Nós, que desde New Jersey, levámos com um trânsito lento, alguns acidentes, paragens constantes para controle e pagamento de portagens, tudo o que nos surgisse pela frente já não seria qualquer novidade, mas aquela longa fila de viaturas militares, em sentido ao norte, eles lá iam, passado umas milhas, novas filas, eram aqueles jeeps baixos, camiões cisterna, camiões gigantes com carros de combate em cima, com frentes agressivas, alguns com atrelados, com pinturas amarelas, verdes, castanhas, cinzentas ou pretas, onde predominava o amarelo torrado, (como “torradas” ficam, as zonas por onde essas viaturas passam, quando em combate), camufladas, confundindo-se com o ambiente, com a estrada, com o trânsito, com o céu e com o horizonte.

Vendo todo este cenário, os malditos pensamentos da guerra que tínhamos vivido lá na Guiné, começámos também, sem notarmos, a ficar agressivos, a proferir palavras agressivas, a dizer mal de tudo, até da nossa própria alma, a lembrar-nos que somos “veteranos de uma maldita guerra de guerrilha”, que em determinado momento da nossa vida, “passámos um cheque em branco à ordem do Governo de Portugal, por um montante de... até..., incluindo a nossa própria vida”, o que infelizmente, muitas pessoas hoje não entendem esse facto, até que a nossa companheira e esposa nos chamou à realidade, dizendo, “olha, vamos na estrada, controla-te, temos uma longa distância pela frente”.

Tudo isto se passou por volta dos princípios dos anos noventa do século passado e, o cenário e as palavras agressivas que proferíamos na altura, sem o sabermos, eram o início do que foi a maior mobilização de recursos humanos e materiais desde o final da Segunda Guerra Mundial, era o início do que mais tarde viriam a chamar de, “Operation Desert Storm” e que, por isto ou por aquilo, viria a modificar o sistema de vida das pessoas em todo o mundo e que, também por isto ou por aquilo, juntou uma imensa quantidade dos mais modernos equipamentos militares na zona do Golfo Pérsico, desencadeando de seguida uma campanha relâmpago que esmagou a oposição que por lá havia, com extrema e surpreendente facilidade.


O nosso destino era o estado da Florida, conduzíamos na altura uma viatura de carga e de aluguer, onde levávamos alguns materiais, haveres, recordações, “tarecos”, uma vida de “coisas”, com destino à construção da nova residência que estávamos a iniciar, no estado da Florida. Depois de entregarmos a referida viatura na agência, já num táxi, a caminho do aeroporto, para regresso a New Jersey, o condutor, talvez apercebendo-se do nosso sotaque, confundiu-nos com o “resto do mundo”, com “os outros”, pensando talvez que andávamos por ali somente de visita, começou a falar mal da reputação da mãe do nosso presidente, da futura guerra, para que nos “vamos envolver”, mais isto e mais aquilo, com muitas palavras agressivas e obscenas, dizendo também mal de tudo, até da própria alma. A nosso favor foi que o aeroporto era já ali.

Tony Borie, Abril de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14489: Libertando-me (Tony Borié) (13): Era mesmo ele, o Vítor Carvalho

3 comentários:

Hélder Valério disse...

Pois é, Tony

De vez em quando, quando as circunstâncias ficam 'mais carregadas' lá vêm as lembranças e o 'mau feitio' pode vir ao cimo.

No teu relato/lembrança acabas por colocar um paralelo entre as tuas reacções no teu carro e as do motorista de táxi. Não deixa de ser curioso que seja possível ter esses pensamentos críticos sobre as decisões dos governantes, seja lá onde forem.

Abraço
Hélder S.

Antº Rosinha disse...

Tony, apreciei muito aquelas «reportagens» daquelas tuas viagens que penso que já terminaste, por esse imenso e importantíssimo país.

Agora que relatas um pouquinho de uma mobilização de material de guerra que presenciaste, e que te deixa indignado e nervoso, talvez ainda não te tenhas apercebido que resides no país que mais guerras fez no mundo, na nossa curta existência de 65/75 anos de vida.

Sendo que algumas das guerras americanas foram intervenções indirectas, apenas com material de guerra e diplomacia.

Que foi o caso no que toca de perto a Portugal, 28 anos de guerra em Angola.

Mas Tony, li um livro recentemente de um americano e enquanto lia o livro, lembrava-me de ti e da tua «reportagem» nesse grande país.

É que é um jornalista para as nossas idades, e que faz uma viagem em África por vários países e que usa mais ou menos o teu processo de escrita e descrições, só não fotografa.

A maior diferença é que usa boleias e transportes colectivos.

Só que enquanto as tuas viagens são um hino ao «bem estar», esse americano faz um hino ao «mau estar».

Recomendo-te, que em inglês deve ser melhor, pois a tradução para português, pareceu-me péssima.

Ele não passa pela Guiné, pois começa em Cape Town (Cabo da Boa Esperança) e sobe até Luanda e vai de comboio a Malange.

Autor:Paul Theroux
Título:The Last Train to Zona Verde-My Ultimate African Safari.

Não deve ser difícil encontrar o livro.

Claro que eu fiquei com um ponto de vista que nunca será igual ao teu.
Um abraço.

Mas dá para muitas comparações em oposição a tudo quanto nos tens enviado daí.

Cumprimentos

Tony Borie disse...

Olá companheiros.
Obrigado pelos vossos simpáticos comentários, são sinceros e construtivos.
Ao Hélder, que normalmente é a voz dos nossos companheiros, e que gostei imenso de o ver, assim como a quase todos, nas fotos do aniversário do nosso blogue.
Ao António Rosinha, conhecedor, além de outros fenómenos, dos mistérios da África, oculta à maior parte das pessoas, onde analisa construindo, descrevendo palavras que levem a um caminho ou a uma solução de paz, mesmo dentro da guerra, que infelizmente continua por esse mundo fora, onde os que têm mais, sacrificam os que têm menos, mas assim é, e assim será, talvez por mais umas tantas gerações.
Obrigado pela informação do autor do livro, vou descobri-lo, assim que for à cidade de Santo Agostinho, onde existe uma grande livraria.
Um abraço para ambos, extensivo aos nossos restantes companheiros.
Tony Borie.