quinta-feira, 30 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14545: Bibliografia de uma guerra (71): E agora? O que é que vou fazer?, do livro "Guerra na Bolanha", de Francisco Henriques da Silva, Âncora Editora, Lisboa, Março de 2015

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 18 de Abril de 2015:

Meus caros Luís Graça, Carlos Vinhal e todos os camaradas e amigos desta tertúlia,
Na sequência da minha anterior correspondência é com o maior prazer que vos envio mais um excerto da minha obra “Guerra na Bolanha - de estudante, a militar e diplomata” (Âncora Editora, Lisboa, Março de 2015).
Desta feita, reporto-me a um tema pouco abordado - o regresso de África e a correspondente reinserção na sociedade portuguesa de então, a que dediquei toda a 3.ª parte do livro e de que aqui fica apenas, digamos um pequeno “aperitivo”.
Trata-se, obviamente, de uma perspectiva muito pessoal. O que aqui refiro consta das páginas 228 a 230 da obra.
A foto fui-a buscar à Net e é apenas ilustrativa de um embarque ou desembarque de tropas no cais de Alcântara.
Permito-me relembrar que o lançamento oficial foi efectuado em 17 de Março em Oeiras, mas está prevista uma sessão de apresentação em Lisboa, na Sociedade Histórica da Independência de Portugal em 5 de Maio, pelas 18 horas, para a qual está todos convidados e de que oportunamente enviarei para estas mesmas páginas um lembrete.

Saudações amigas
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alferes miliciano de infantaria da C.Caç. 2402 e ex-embaixador em Bissau 1997-1999)


E agora? O que é que vou fazer?

Finalmente livre da monotonia verde azeitona das fardas militares, olhei para o espelho e vi-me, tal como era: vinte e poucos anos, sem curso, sem emprego, sem namorada e, principalmente, sem saber como organizar a minha vida no imediato. Tinha de encontrar saídas e dar resposta à magna questão: que fazer? Tinha de encontrar solução para todos estes problemas, uns pequenos, outros grandes, mas que se inscreviam na pergunta soberana que pairava sempre no ar e que prevalecia sobre tudo o mais: que fazer?

Tinham-me roubado a minha juventude, preciosos anos de vida quando estava na sua plenitude, o curso que queria terminar, uma carreira profissional que queria encetar. Sentia um vazio muito grande, mas não desesperei, não havia lugar para choro, nem ranger de dentes. Não podia verter lágrimas sobre o azeite derramado, nem à boa maneira lusitana culpabilizar a situação, as circunstâncias, o Outro ou os outros ou seja, lá quem for e o que for. Sim, porque, nos parâmetros da mentalidade tuga, no mau sentido da palavra, a culpa nunca era nossa. Tinha, pois, de reagir. Tinha de avançar. Tinha de ser eu a dar a resposta certa.

E assim o fiz, talvez com hesitações, desvios, opções duvidosas, caminhos ínvios, reflexões sem rumo definido, mas bem no íntimo sentia que podia seguir em frente e que tudo dependia de mim. Tinha de fazer. Tinha de assumir uma atitude pró-activa.

Em primeiro lugar, estava firmemente disposto a completar a universidade. Com a célebre “reforma Veiga Simão,” assim chamada em nome do Ministro da Educação da época (que em várias reencarnações acabou por servir diversos regimes políticos), o meu curso havia sido reestruturado e tinha ficado com cadeiras dispersas por todos os anos e nenhum completo ou próximo disso. Podia, agora, se quisesse, chegar a bacharel, ou seja, fazendo cadeiras por atacado, como aluno-militar. O bacharelato, na altura, constituía uma novidade, uma hipótese simpática que abria as portas a uma carreira no ensino, sobretudo para quem frequentasse cursos das faculdades de Letras e de Ciências. Era uma questão de tempo, de vontade e de algum sacrifício. Mas o meu grande objectivo final consistia em ingressar na carreira diplomática, um sonho que acalentava desde miúdo. Todavia, tratava-se de um alvo de difícil alcance e demoraria anos a lá chegar. Antes do mais, teria de completar o curso e de me sujeitar a um concurso de entrada no MNE, que não era propriamente “canja”, diziam. Mas retomando o fio à meada, que diabo, já estava nos vinte e tais, não podia viver das magras economias feitas, cujas limitações eram conhecidas, nem das sopas paternas ou, melhor, maternas. Tinha de fazer alguma coisa e, como atrás, referia aproveitar o estatuto de aluno-militar que me permitia dar saltos de canguru na faculdade.

Em segundo lugar, queria encontrar um emprego, em tempo inteiro ou em “part time”, para me poder sustentar, para as minhas fantasias e, enfim, para poder juntar os tostões com que se compram os melões. Esta era uma segunda prioridade, mas que se situava quase ao nível da primeira, pois não podia andar à boa vida.

Em terceiro lugar, depois dos namoros, pseudo-namoros, ou meros “flirts” tinha de arranjar, de algum modo, uma companhia feminina certa e não andar de candeia acesa à procura da bela adormecida no bosque ou feito lobo predador a emboscar a menina do capuchinho vermelho e todas as demais, na perspectiva de que tudo o que vem à rede é peixe, como alegadamente fazia ou, pelo menos, alardeava a maioria dos jovens machos lusitanos. A sexualidade tinha de ter os seus escapes, mas eu procurava sobretudo a estabilidade - apesar dos devaneios, sentia que era monógamo por natureza.

Em quarto lugar, tinha de descansar, viajar, passear, recarregar baterias, reavivar velhas amizades, satisfazer alguns sonhos do passado até aqui incumpridos. Em suma, viver e sentir que estava vivo, bem vivo e com vontade de pontapear. Havia uma certa urgência nisto, na medida em que, apesar de jovem, o tempo ia passando e, como rezava uma velha canção da época, não voltava para trás, apesar de querermos à viva força mudar-lhe o rumo.

Finalmente, via-me coagido a esquecer o passado próximo, as memórias que o tempo afinal não apaga e ultrapassar, se é que os tinha, alguns traumas de guerra. Porém as imagens não me abandonavam, via claramente e numa base diária, as tabancas, a mata, as bolanhas, as fardas, os corpos semi-nús dos soldados, as armas; ouvia distintamente os rebentamentos dos morteiros e dos “rockets”, o matraquear das costureirinhas, o guinchar dos macacos, o grasnar de certas aves tropicais, as falas de fulas, mandingas e balantas; sentia os cheiros fétidos de algumas bolanhas, o odor das plantas estranhas que a humidade fazia sobressair, a comida do “rancho” – ou do que pomposamente se chamava messe - pouco variada e insípida, o cheiro do capim e do mato queimado na estação seca; na boca, sentia o uísque que se bebia ao fim do dia, ou a cerveja morna; o gosto da manga verde roída devagar atrás do poilão, a enjoativa ração de combate e por aí fora. Enfim, imagens, sons, aromas e paladares que não me abandonavam, mas, planando por cima de tudo, aquela impressão durável, mas indefinível, quando se pressentia que íamos entrar em combate dentro de instantes: o nó na garganta, o gosto esquisito na boca, os suores quentes e frios, as borboletas no estômago. Como esquecer, então, se ainda hoje me lembro como se fosse ontem?

Cais da Rocha Conde de Óbidos - Lisboa
Foto: © Fernando Chapouto (2006). Todos os direitos reservados.
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Nota do editor

Vd. poste anterior de 28 de Abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14536: Bibliografia de uma guerra (70): A Mina, do livro "Guerra na Bolanha", de Francisco Henriques da Silva, Âncora Editora, Lisboa, Março de 2015

1 comentário:

Chapouto disse...

Quero agradecer ao companheiro ex combatente pela foto que a mim pertence da minha despedida para o ultramar que para mim simboliza muito esse fatídico 18AGOS65, não é de mais ver que para os ex combatentes também tem de comum
Um forte abraço
Fernando Chapouto