domingo, 10 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14593: Manuscrito(s) (Luís Graça) (56): O rio, grande, da tua infância

O rio, grande, da tua infância

por Luís Graça


Da serra, azul, de Montejunto
Às dunas da Praia da Areia Branca
Corria o rio,
Grande,
Da tua infância.

Era grande só de nome,
Era grande à tua escala,
Quando eras menino,
E nele brincavas,
Apanhando enguias,
Com o teu pai…
Lembras-te ?
Usavam um velho chapéu de chuva,
Preto,
Como se fosse um camaroeiro.


Só era verdadeiramente grande
Quando violento,
Galgando casas e campos,
O rio, grande, da tua infância.
Até Deus ficava isolado
Na igreja do convento,
Deus,
Os presos da cadeia comarcã
E a mestre escola.
Nos dias de inundações e enxurradas,
Fazia-se gazeta à escola e à missa.


Lembras-te
Como era larga a foz
E grandes as férias de verão,
Uma eternidade,
Duravam enquanto durasse o pião.
E havia uma ponte de madeira,
Com as Berlengas ao largo
E o cabo Carvoeiro, ao fundo,
E mais longe ainda,
Onde o sol se punha,
O mar, medonho, dos teus avoengos,
Desaparecidos
Entre as brumas da memória
Das Índias e dos Brasis
E o cacimbo matinal
Das bolanhas das Guinés.

Talvez houvesse, também,
Senhoras de chapéu alto,
Passeando em barcos a remos.
Já não te lembras dos barqueiros,
Passados todos estes anos.
Mas devia haver barqueiros,
No rio, grande,  da tua infância,
Como no rio Sena
E nos quadros do Renoir.

Dizem que os vivos
Voltam sempre ao local do crime
Onde nasceram.
Mas um dia o tsunami do esquecimento
Irá varrer
A tua praia,
As tuas dunas,
O teu rio,
O adro do recreio da tua escola,
A tua rede neuronal,
O teu álbum de fotografias,
Amarelecidas, do Geba e do Corubal,
E os lugares da infância
Onde tu poderias ter sido feliz.
Mas quem sabe se foste feliz
Ou se poderias tê-lo sido ?
Felizmente que não há
Escalas de medição da felicidade,
Válidas e fiáveis.

Dizia-se que o rio, grande, da tua infância
Era navegável
No tempo dos fenícios, romanos e mouros,
Mas não era rio,
Era braço de mar, indomável,
Braço armado
Do terrível poder
De ditar as leis da vida e da morte,
De fecundar a terra
E de semear os cemitérios.

Nasceste a ouvir o mar,
O barulho do mar
E dos moinhos de vento
Que te deixaram os árabes.
Não sei o que está inscrito
No teu ADN,
Mas se Deus te marcou
É porque algum defeito te achou.

Batizaram-te cristão,
Na pia da igreja, gótica, do castelo,
Que foi românica,
E como antes tinha sido mesquita mourisca
Ou capela visigótica,
E, muito antes ainda, templo romano
Ou anta, dólmen, menir.

Perdeste-te, por amores e guerras,
No caminho sul de Santiago
E chamaram grande
Ao rio da tua infância.
Em noites de pavor palúdico.
Imaginavas-te numa piroga louca,
À deriva,
Pelo Rio Grande de Buba.





Loruinhã, Praia da Areia Branca > Setembro de 2014 > O Rio Grande, a chegar  à foz...
Foto: LG (2014)

Nascia, pensavas tu,  em Montejunto
O rio, grande, da tua infância,
E era azul a serra,
Vista do mar.
Mas tu nunca soubeste,
Em menino,
O que ficava por detrás do horizonte.
Por detrás de uma serra
Ficava outra serra,
Explicava-te a senhora professora de geografia,
Da 4ª classe
E do exame de admissão ao liceu.
Era curto o horizonte
Dos meninos da tua rua,
A rua do castelo
Que terminava no cemitério;
De um lado o mar,
Que era muito maior
Que o pobre rio, grande, da tua infância;
E do outro a silhueta, azul,
Da serra.
Que afinal não era tão alta
Como tu a vias
Da torre de menagem dos teus castelos
De brincar às guerras de mouros e cristãos,
Ou quando ias pescar enguias
No rio, grande, da tua infância.

Hoje sabes
Que tudo é à escala
Do que é infinitamente pequeno e humano.
E só Alá, dizem, é grande.





Lourinhã > c. 1940 > Ponte sobre o Rio Grande, na avenida e António José de Almeida... Foto de Francisco Fernandes. Cortesia da página no Facebook Lourinhã noutros tempos, mantida pela ADL - Associação para o Desenvolvimento da Lourinhã. 
_____________

Nota do editor:

Último poste da série > 25 de abril  2015 > Guiné 63/74 - P14521: Manuscrito(s) (Luís Graça) (55): I'm sorry

9 comentários:

Torcato Mendonca disse...


GOSTO,

Mas o rio grande da minha terra nascia na serra do caldeirão ou mú e deccia lento como tudo naquelas terras entre montes redondos como seis de mulher jovem

de quando em vez em invernos de muita chuva espraiava-se chateado pelas várzeas e enchia apressado o caminho outrora lentamente percorrido

os barcos vinham buscar trigo e não só á ponda da ilha e navegavam até á capital do esfarelado imperio

a gaiatagem aprendia a nadar naquele rio da minha terra em gritos felizes tinha marés e esgotos com detritos a serem afastados pelas mãos e frescuras de verões vindas das margens
vi depois rios maiores, muito maiores com larguras a perder de vista e que vinham de outros países...
certo é que nas margens haviam sempre petizes felizesCosto mais do rio da minha terra em longas saudades de velho qi~ue enrrola a manta da vida...

Ah loucura ... ab,T.

Luís Graça disse...

Uma belíssima evocação poética do rio grande da tua terra, Torcato... Todos temos um rio, grande, da nossa infância!

Magnífico!

Anónimo disse...

Torcato Mira.

Anónimo disse...


Amigo Luís:
Acabei agora de tomar banho depois da marcha forçada de uma hora e meia no Parque da Cidade.
Abri o computador no blogue e lavei a alma do lixo e das rugas que vai acumulando com a idade, ao ler o teu poema. Sinto o corpo relaxar em paz e o espírito em sintonia grato pelo alimento que que o teu poema lhe trouxe.
No teu poema está muito da nossa história, como num poema épico, está a nossa geografia e a da Guiné estás tu e estão todos os teus camaradas
É um grande poema, épico, descritivo e lírico. Gostei muito.
O meu peito encheu-se de ar como quando contemplo as paisagens vastas dos montes da nossa Patria, a beleza do vale do rio Douro ou a beleza dos por-do-sois na Guíné refletidos nas águas do Grande Buba.
Muito obrigado Luís, não me podias enviar melhor aperitivo, antes do almoço.

Grande abraço

Francisco Baptista

Luís Graça disse...

Aperitivo!.. Francisco, é melhor elogio que me podiuas dar, ao meu singelo poema...

A poesia é para se beber e comer... Por que, como se dizia na ponte Caium, "bem só de pão vive o homem"... Neste caso, os combatentes da Guiné...

Francisco, o meu aperitivo hoje de manhã foi fazer uma boa caminhada ao longo do rio Tejo (que é agora o rio da minha aldeia, parafraseando o Alberto Caeiro / Fernando Pessoa...) e visitar a "Sagres", que ainda é o nosso orgulho de povo de marinheiros...

Aproveitei também para (re)visitar e fotografar os painés do grande pintor e artista que foi o Almada Negreiros, na Gare Marítima de Alcântara... Os paineis datam de 1947, ano em que eu nasci...

Fiz uma reportagem fotográfica da Sagras e Gare Marítima, que depois irei partilhar com a Tabanca Grande...

Magnífico domingo, em Lisboa, com 30 graus,,,

E ontem à noite enchi a alma com a música dos Galandum Galundaina... Que gente de talento, carater e nobreza!... Deram um magnífico concerto no Rossio, às 22h, no final do X Festival da Máscara Ibérica... E os transmontanos de Lisboa responderam à chamada...

O grupo só fala e canta em mirandês (que, muita gente não sabe, é língua oficial da República Português, a par do português...).

! E todos eles (os 4 elementos do grupo) são homens dos 7 instrumentos... Grandes vozes, grandes instrumentistas!...

Francisco, deves continuar a ter orgulho nas tuas raízes transmontanas!...

Aqui vai a página deles, no Facebook;

https://www.facebook.com/GalandumGalundaina

Luís Graça disse...


Para quem gosta de poesia, e de Fernando Pessoa, em particular, tem agora, na Casa Fernando Pessoa, um "banco de poesia"...

Aqui vai um poema do ASlberto Caeiro, a propósito do rio Grande das nossas infâncias:

http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=2241

________________

X

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

In O Guardador de Rebanhos


In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001
Alberto Caeiro
[XX - O TEJO É MAIS BELO QUE O RIO QUE CORRE PELA MINHA ALDEIA]
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Anónimo disse...



Amigo Luís:

Desculpa mas eu por vezes não me sei exprimir muito bem. Quando disse que o teu poema foi para mim um aperitivo referia-me apenas á sensação fisica e degustativa "a poesia é para beber e comer" que ele me proporcionou. Para o meu espírito, meu grande amigo, o teu poema foi para mim o prato forte.
Sobre os Galadum Galandaina comungo a mesma opinião que tu, são quatro grandes músicos e cantadores bem enraizados no planalto mirandês que quando actuam fazem vibrar nos seus instrumentos e canções os sons e a alma dos antigos povos celtas e ibéricos.
A sua música emociona-me e transporta-me para origens antigas e leva-me a agradecer e venerar todos esses nosso avós que nos deixaram um legado tão rico que é nossa obrigação perservar.
Já os ouvi em Sendim, no Festival Interceltico, à noite, a expandir as vozes e os sons pelo Planalto Mirandês, como que a abençoar essas terras planas de trigo e de centeio.
Já os ouvi também no Porto, na Casa da Música, a ser muito aplaudidos por muitos plebeus e burgueses que sabem apreciar aquilo que de melhor a alma portuguesa produz.
Muito obrigado também pelo lindo poema do Alberto Caeiro e do Fernando Pessoa que lhe deu alma e voz.
Um grande abraço
Francisco Baptista

Jorge Narciso disse...

Estou em casa a olhar para a Serra (visto daqui verde) de Montejunto e... se der uns passos vejo o "fio" de agua no fim do meu terreno que, quem sabe, corre e ajuda a "inchar" esse Grande rio da tua infancia.
Belo poema Luis, que me fez também recordar o "meu" rio, no caso um belissimo braço do Tejo que se continua a espraiar pelo Seixal, Amora e Arrentela adentro.

Hélder Valério disse...

Sim senhor!

Estas 'viagens' que o Luís de quando em vez desencanta, percorrendo vários 'caminhos', vários percursos da lembrança, da memória, da Vida, enfim, fazem-nos sempre encontrar alguns paralelismos nas nossas próprias vivências.

Nascido, por necessidade, na Aldeia dos meus familiares, cedo fui para Vila Franca de Xira, à borda d'água do Tejo. Fui par alá e ainda retenho imagens de quando não havia a ponte de Vila Franca, chamada "Marechal Carmona". Porque vivi até aos 4 anos numa casa com janela para o Cais, lembro-me da azáfama dos barcos que faziam o transporte de pessoas, veículos e mercadorias entre as duas margens, entre o "Cabo" e o "Cais".
Lembro-me de muitas das actividades à beira-rio. Lembro-me das cheias... com água alagando a lezíria a perder de vista.

A água andou sempre por perto.
Como ribatejano, para além do Tejo, também ia 'ver o mar'... à Nazaré, à Areia Branca, Consolação, etc.
Agora tenho Sado, bem bonito.
Para não desmerecer dos meus amigos também andei no Geba, na "Bor", e foi inesquecível.

Abraço
Hélder S.