quinta-feira, 4 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14698: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (11) - Reportagens da Época (1967): Buruntuma

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 17 de Março de 2015:

Prezado Luis Graça:
Envio mais alguns dados, respeitantes aos últimos dias do mês de Junho de 1966, que poderão ser publicados.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

11 - Buruntuma

Dia 24 de Junho de 1966

Ainda cedo saí de Nova Lamego escoltando seis viaturas carregadas de géneros alimentícios.
Deixando para trás uma imensa nuvem de pó as viaturas fizeram-se à estrada.

Ao fim de três quilómetros uma viatura avariou-se e a coluna-auto imobilizou-se na estrada.
Impacientes, os soldados murmuravam:
- Raios partam as viaturas... Linda maneira de entrar na guerra...

Apoiando-os, um furriel insinuava, convencido:
- Sempre a mesma porra... Mandam-nos escoltar umas viaturas que já deviam estar na sucata. Isto é tudo uma porcaria...

Como não havia solução para a avaria mandei distribuir a carga que a viatura transportava pelas restantes, pedi o reboque para levar o camião avariado ao ponto de partida e segui viagem.

Em Piche juntaram-se à coluna duas viaturas militares e quatro civis.

No destacamento da Ponte do Caium esperava-me um pelotão da companhia de Buruntuma, que picou a estrada.

Sem qualquer incidente atingi Buruntuma pouco depois do meio-dia.

Estrada Nova Lamego-Buruntuma

Os cerca de quarenta homens que comandava praticamente nada almoçaram após a chegada.

Em Nova Lamego não nos distribuíram a ração de combate com a desculpa de que haveria uma refeição quente quando chegássemos a Buruntuma...
Em Buruntuma não havia a tal refeição quente porque não esperavam que chegássemos antes do almoço.
Valeu a todos a camaradagem da guarnição local e o desenrascanço imaginativo de cada um.

De tarde o capitão levou-me a casa de um comerciante branco que nos ofereceu Whisky com Água Castelo.
Diz-se que o homem é um ex-degredado que, após o cumprimento da pena, ficou por estas paragens.
O capitão de Buruntuma é um homem de aspecto pachorrento, alto e gordo, compreensivo e bondoso. Parece-me um homem inteligente e sensato.

O aquartelamento e a povoação localizam-se quase sobre a linha da fronteira com a República da Guiné-Conakry.
É a única povoação no raio de alguns quilómetros.

A guerra obrigou as populações ao abandono das tabancas de que, um pouco por todo o lado, ainda restam vestígios.
Uns retiraram-se mais para o interior do território português. Outros fugiram para o Senegal, ou para a República da Guiné-Conakry. É principalmente entre esses que fugiram, que os terroristas recrutam os seus combatentes.

À noite ouviu-se um tiro dentro do aquartelamento. Gerou-se alguma confusão mas, afinal, não se tratou de ataque do inimigo.


Dia 25

De manhã saí com duas secções e alguns “milícias” à procura de lenha para a cozinha do quartel. Carregaram-se, sem grande dificuldade, duas viaturas de madeira seca, utilizada na construção das tabancas abandonadas.
O ambiente que reina entre a tropa é bom.
O calor não deixa de ser um martírio mas o trabalho ao Sol não é muito.

À noite, pelas dez horas, não longe do arame farpado, ouviu-se uma explosão, talvez de granada de morteiro.
A tropa manteve-se serena e não aconteceu mais nada.
No entanto, basta isto para manter todas as pessoas num “stress” permanente, num ambiente de medo e angústia... São os nervos sempre à flor da pele...


Dia 26

Às quatro horas e meia da manhã o capitão acordou-me e deu-me ordem para mandar equipar o meu pelotão com a finalidade de abrir o itinerário até ao Caium.

Piquei a estrada de Buruntuma a Caium, escoltei uma coluna de viaturas de Caium, Buruntuma e de novo até Camajábá.
Pela manhã, quando nos dirigíamos ao Caium, ouviram-se rajadas de armas automáticas lá para os lados da fronteira.
Estes disparos têm um efeito psicológico bastante negativo. Obrigam-nos a uma tensão quase permanente.

Ao entardecer rebentou uma armadilha colocada pelas nossas tropas perto da fronteira.
Um alferes da guarnição local com o respectivo grupo de combate, reforçado por alguns dos soldados do meu grupo, comandados por mim, foi verificar as causas da explosão.
Junto do local das armadilhas, que não sei se era em território português, ou da Guiné-Konacry, encontravam-se duas vacas quase mortas. Com alguns tiros de G3, acabou-se-lhes com a vida.
Imediatamente, do outro lado da fronteira, bastantes armas pesadas começaram a disparar sobre Buruntuma, enquanto que, as armas ligeiras, alvejavam o terreno fronteiriço onde nos encontrávamos.

Cautelosamente conseguimos retirar do local, mais para o interior, sem, contudo, conseguir entrar no nosso aquartelamento que, durante cerca de uma hora, ficou sob o fogo cerrado das armas do inimigo.
Abrigados por um ligeiro declive do terreno, e pela protecção do arvoredo, sentíamos nos ares o silvar das granadas que, às dezenas, choviam sobre Buruntuma.
Aqui e além as explosões provocavam incêndios, principalmente nas casas dos nativos, cujo telhado era feito de capim.

Quase em simultâneo as armas de Buruntuma também abriram fogo. As bazookas e o canhão sem recuo vomitavam granadas ininterruptamente. Os morteiros cuspiam, para o outro lado da fronteira, os seus tenebrosos projécteis. Através das seteiras dos abrigos as metralhadoras consumiam centenas de munições. As armas ligeiras, os canos já aquecidos, disparavam, um pouco ao acaso, contra um inimigo que não tinham capacidade de atingir.
De um e outro lado era ensurdecedor o ruído da fuzilaria e o detonar das granadas.

Anoiteceu.

De ambos os lados começou a abrandar a intensidade do combate.
Lentamente, o silêncio foi caindo sobre a povoação martirizada. Era o fim de uma pequena batalha.

Cautelosamente, os soldados que estávamos fora do aquartelamento, longe da protecção dos abrigos subterrâneos, fomo-nos aproximando do arame farpado e entrámos no quartel.

Dirigi-me ao posto de socorros. Lá dentro, aguardando tratamento, já havia muitos feridos. Outros, brancos e negros, foram depois chegando.
O médico, que na vida civil era cirurgião, trabalhava afanosamente, ajudado pelos enfermeiros, extraindo estilhaços, colocando ligaduras, injectando soro... Só muito tarde deu por findo o seu trabalho.

Contabilizados os prejuízos verificou-se que havia três mortos entre a população e bastantes feridos tanto entre os soldados como entre os civis.
Para além disso o nosso sistema de transmissões estava inutilizado, as instalações danificadas e alguns indígenas tinham perdido as suas casas.

Trabalhava em Buruntuma um agente da PIDE que, através do sistema de transmissões particular, de que dispunha, alertou Bissau para o sucedido e pediu que fossem evacuados para o Hospital Militar os feridos mais graves.

Eram já altas horas da noite quando nós, os oficiais, nos fomos deitar.
No abrigo onde dormíamos comentavam-se os acontecimentos com alguma insensibilidade.

Já deitado, o capitão murmurava:
- Os filhos da puta não nos deixam em paz...

A guerra para ele era algo a que já estava habituado e pouco o impressionava. Quando em conversa se referia a acções de combate transmitia até a ideia de gostar das sensações da guerra.
Eu sentia-me de certo modo aterrorizado com a baptismo de fogo que, sem o desejar fui obrigado a receber.
Foi um baptismo sério e prolongado... E cheio de calor!...


Dia 27

A noite passou-se rapidamente.
Pela manhã, o que já era hábito na localidade, a tropa levantou-se cedo.
De tronco nu, os oficiais abandonaram o abrigo, subiram para o jeep, deram um volta pela tabanca para verificar os estragos causados pelo ataque, contemplaram as cinzas de algumas moranças dos nativos, as ruínas da capelinha da virgem onde os soldados costumavam rezar, as viaturas danificadas, as paredes das casas esburacadas pelos estilhaços das granadas, e dirigiram-se para o edifício da messe.

Enquanto tomavam o pequeno almoço, descontraído, o capitão comentava:
- O pior foi terem-nos causado bastantes feridos e haver mortos entre a população. Os prejuízos materiais podem remediar-se. São transitórios, superáveis. O sangue é que não tem preço. Mas chegará o dia em que eles (os terroristas) receberão o pagamento com os respectivos juros.

Os alferes apoiavam-no e expunham também os seus pontos de vista.
Espíritos calmos e frios, habituados, pela força das circunstâncias, à dureza da guerra, aqueles homens enfrentavam-na com a maior das naturalidades.
Foi no meio deles que a guerra me surpreendeu. Em nenhuma outra parte da Guiné eu teria, por certo, oportunidade de a sentir tão sinistra e tão dura.

*

A manhã ia alta.
O Sol surgia misterioso, quase triste, rompendo, a custo, num céu plúmbeo, carregado de vapores e neblina.

Ao longe, nos ares, sentiu-se um ruído, a princípio quase imperceptível, que foi aumentando de intensidade, até que no céu tristonho de Buruntuma se avistou a “Dornier 27”, a pequena aeronave que vinha proceder à evacuação dos feridos do ataque do entardecer anterior, para o hospital militar de Bissau.
Um pelotão de atiradores deslocara-se já do aquartelamento para a zona da pista de aterragem, que ficava muito perto do arame farpado, para que tudo decorresse com a segurança necessária.

Quando das imediações se transmitiu a ordem para aterrar, o pequeno avião começou a perder a altitude e iniciou a manobra de aterragem.
De repente, a avioneta começou a ser alvejada com rajadas de armas automáticas instaladas do outro lado da fronteira.
Avisado pelas transmissões das tropas terrestres o piloto tomou de novo altitude e manteve-se afastado da localidade.

Entretanto começou uma nova batalha. De ambos os lados os morteiros e as bazookas funcionaram de novo, os canos das espingardas voltaram a vomitar centenas de projécteis, e os tiros do canhão fizeram de novo tremer o céu e a terra.
As explosões sucederam-se por mais de uma hora martirizando, do nosso lado, a população e a tropa de Buruntuma, e do lado deles, República da Guiné-Konácry, a população civil e a tropa estacionada em Kadica, antigo posto fronteiriço.

E o funcionar das armas trouxe de novo a morte e mais sofrimento às povoações martirizadas.

De repente, quando a batalha parecia não ter fim, surgiram no céu dois bombardeiros da FAP, em auxilio das forças terrestres.
Eram os FIAT, aviões a jacto, que pela primeira vez fizeram a sua aparição no teatro de guerra da Guiné.
Os aviões salvadores sobrevoaram, a pequena altitude, a área do combate, e foi o suficiente para que o inimigo calasse as suas armas.

Entretanto, chegavam mais quatro aviões T6, que se mantiveram nos céus de Buruntuma até que os helicópteros e a “Dornier 27 levassem os feridos para o Hospital Militar.
Mais tarde soube que os aviões FIAT que sobrevoaram, naquela manhã, a tropa de Buruntuma, andavam ainda desarmados.
Bastou apenas o efeito psicológico dos seus voos rasantes para que o inimigo se retirasse.

As consequências do ataque foram graves. Tivemos um militar que morreu com os ferimentos causados pelos estilhaços de uma granada, dois alferes feridos, um dos quais com bastante gravidade, e bastantes feridos ligeiros.
Entre a população civil voltou a haver mortos e feridos.

*

Fixei, com dor, aquele corpo quase nu, mutilado e coberto de pó.
E senti pena, medo, tristeza, horror...Quantas coisas mais...
Ajudei a retirar do abrigo, que não abrigou nada, o corpo do soldado morto, e o sangue, ainda quente, tingiu-me as mãos...
E pensei na morte... A morte que todos pressentimos e adivinhamos à nossa volta, mas que não entendemos.
Li algures, ou alguém me disse ou ensinou, que a alma é igual à diferença entre o cadáver e o homem vivo. E que diferença avassaladora e enorme!...

Olhando a corpo inerte e ensanguentado do jovem soldado, assim de forma tão súbita e cruel arrancado ao fulgor da juventude e à vida ainda por viver, pensei:
- O corpo é o nada!... A sombra!... A miragem!... A ilusão!...
A alma é tudo!... Confunde-se com a vida!...
E dizem-nos tantas mentiras sobre a morte!...
Ensinam-nos que é isto... Que é aquilo...
E, afinal, o que será?
Ninguém sabe!...
É uma experiência individual, a última, da qual, que se saiba, ninguém regressa para dizer como é.
Acontece à nossa volta sob as formas mais bizarras
É o passar sereno e imperceptível... E é, também, convulsão e violência...
É suave como o lento apagar de uma ténue luz, e é rápida e fogosa quando chega montada no veloz projéctil cuspido por uma espingarda, ou no estilhaço quente de uma qualquer granada de morteiro...
Mas, é sempre ela... O fim... Ou, talvez, o princípio de uma realidade nova...
De uma realidade que todos desejam que nunca chegue... Que permaneça longe... Muito longe... Para além do tempo.
Mas, que me leva a estar aqui a martirizar-me com estes pensamentos, se não é com este tipo de ideias, ou de ilusões, que a vida se constrói? O mais importante é, efectivamente, pensar em viver... É pensar no hoje... No amanhã...No futuro que é preciso construir...


Dia 28 e seguintes

O major das transmissões, do Quartel-General, veio instalar um novo sistema de rádio.
Mandaram para cá, também, um pelotão de Cavalaria, com as auto-metralhadoras blindadas.
A tropa e os nativos iniciaram a construção de novos abrigos, e a melhoria dos já existentes.
Quem sabe...Talvez estejam para vir dias ainda piores...
Temos que estar preparados para o que der e vier... Buruntuma fica mesmo junto da linha de fronteira e os gajos não têm grandes dificuldades em se aproximar do aquartelamento para nos atacar.
Eles têm a protecção de um santuário.
Nós encontramo-nos em terreno descoberto.

*

Buruntuma esqueceu depressa aqueles dias terríveis e regressou a uma vida pacata e normal, feita do labutar diário dos seus homens, das orações balbuciadas em comum, na pequena mesquita, várias vazes ao dia, e da esperança em Alaah, o Deus que maioritariamente este povo adora.
As populações enterraram os seus mortos, com mágoa e preces, e embora vivendo no receio de um novo ataque, ao verificarem que chegavam mais reforços militares continuaram a confiar na protecção do homem branco.

De além fronteira, quando os ânimos se acalmaram, começaram a chegar algumas informações trazidas pelos nativos que se deslocavam ao nosso território.
Os ataques que sofremos tinham sido concretizados pelas tropas regulares da República da Guiné-Conakry, aquarteladas em Kadica. Mas, o preço que pagaram foi bastante pesado. Grande parte das suas instalações ficaram arrasadas pelo fogo dos nossos morteiros, e a guarnição, devido às pesadas baixas sofridas teve de ser imediatamente substituída.

Por outro lado, vendo quanto era frágil a protecção que o Governo de Conakry lhes garantia, as populações começaram a abandonar a zona fronteiriça, o que para as nossas tropas não deixou de ser negativo.
Com efeito, não havendo tabancas habitadas e movimento de pessoas, deixa de haver fluxo de informações sobre o movimento das forças da guerrilha e sobre a sua localização, o que dificulta a programação das nossas actividades.

A partir do ataque, como nas casernas e messes a protecção contra armas de tiro curvo (morteiros) era quase nula, todos os soldados passaram a dormir em abrigos subterrâneos.
À entrada dos abrigos, que mais não eram do que pequenos antros, improvisaram-se pequenas plataformas cobertas com panos de tenda, e todas as noites permanecíamos ali jogando as cartas e bebendo Whisky. Só mesmo quando os mosquitos se mostravam insuportáveis, ou os últimos cubos de gelo acabavam por derreter-se, ao mesmo tempo que o Whisky desaparecia da garrafa, cheios de sono, íamos dormir.

De noite, quando acordava, sentia os ratos, sem grandes cuidados, mexerem-se por entre os toros da madeira de que era feito o tecto do abrigo.
Pelas seteiras daquela espelunca, durante a noite, entrava uma aragem muito branda, ligeiramente fresca, que enchia de prazer o meu corpo seminu, estendido sobre a cama, que em simultâneo ia ficando coberto pelo pó que os ratos, ao deambular pelo tecto do abrigo, iam soltando do madeirame.

As noites passavam-se depressa e o despertar era sempre muito cedo.
Na messe, ao pequeno almoço, havia sempre café com leite condensado, chá gelado e pão com manteiga.
Ao meio da manhã era sempre costume fazer-se algum petisco.

De quando em quando, de jeep, fazíamos visitas à tabanca.
Era sempre o capitão a conduzir a viatura.
Ele andava sempre em tronco nu, muito à vontade, exibindo sem qualquer complexo os quilos de banha que se lhe escapavam dos calções, superiormente apertados por um cinto de lona.
Ele parava a viatura à porta das palhotas, recebia cumprimentos da população que o estimava, abraçava-se às bajudas que se lhe vinham sentar sobre os joelhos e, sempre a sorrir, o jeep superlotado de criançada, regressávamos ao quartel..

E foi assim que Buruntuma esqueceu os últimos dias de Maio de 1966, o terror e a morte, o sangue e as lágrimas, o desespero e o ódio, regressando a uma existência pacífica, despreocupada e feliz, da qual todos os homens sentem a fome.
Após uns dias de pesadelo, sombrios e sinistros, a gente boa e simples desta terra teve de novo a existência calma que merece.

As preces a Allah, o Deus que este povo adora, e a quem se reza muitas vezes ao dia, puderam de novo, serenamente, sair dos lábios destes muçulmanos bons e generosos, convictamente devotos.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14394: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (10): Operação Cernelha

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