segunda-feira, 8 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14713: Notas de leitura (724): “Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho de 2014:

Queridos amigos,
Não é habitual saltar da Guiné para outros teatros de operações. Exceciono quando se justifica o termo de comparação ou para chamar à atenção para literatura relevante que é imperdoável ignorar.
“Olhos de Caçador” é de facto um livro assombroso, inesquecível. O publicista Luís Caetano observou que se trata de um dos melhores romances-testemunho sobre a guerra colonial.
A arquitetura da obra é primorosa, Brito soube cozinhar com todos os ingredientes um livro avassalador, um livro cru e excessivo como um retábulo barroco.
O livro tem um preço muito abordável e não dececionará quem viveu no mato, atacou e foi atacado.

Um abraço do
Mário


Olhos de Caçador: Livro soberbo, o poliedro das brutalidades da guerra (1)

Beja Santos

Chama-se “Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014. Temos aqui a guerra em toda a sua dimensão, um homem reduzido a escombro relata a sua mobilização para Moçambique e descreve sem tibiezas a grande camaradagem e os horrores que viveu no Planalto dos Macondes. Ele chama-se Zé Fraga, foi contrabandista e passador de emigrantes, cresceu a viver de expedientes na Serra da Gardunha, foi preso e mobilizado compulsivamente para Moçambique. O leitor que se prepare, pois, como observou Lídia Jorge, trata-se de um documento fortíssimo, muito bem escrito.

António Brito brinda-nos com uma história muito bem contada, com os ingredientes indispensáveis: a linguagem da caserna, a sensualidade sem bridas, a brutalidade da selva, a agonia e o êxtase plasmados em corpos estropiados ou a satisfação da missão bem cumprida. É um livro burilado em excessos, o leitor não tem pausas e tem que se conformar com as desmesuras nos ódios, nas infâmias, na verbosidade desbragada. Logo assim, no arranque:
“Passou muito tempo desde que matei um homem pela primeira vez. Na minha cabeça embotada pelo vinho e pelo peso dos anos, recordo com uma ponta de vaidade o destemor do meu golpe, o ar de espanto, a incredulidade do filho da puta em que enterrei a navalha varando-lhe as tripas (…) Vivo um tempo sem regresso nem esperança. Todas as noites me arrasto num chão tão difícil como a serra onde combati. É uma calçada demolidora, difícil de subir, assaltada pelo vento que me vergasta com fúria. Caminho inchado de vinho merdoso, tropeço aqui e além nos passos molengões de uma prótese a fingir de perna e de uma perna a rebentar de artrose. A caminho da decadência, dissolvo-me dia e noite sem ter onde cair morto”.

E finalmente temos um mote para o relato que se segue, a peregrinação de Zé Fraga vai começar:
“Mas hoje, antes que a senhora da gadanha afiada decida vir buscar-me, recordarei pela última vez como tudo começou, quando me atiraram para dentro do navio e África me tragou com o seu apetite voraz”.

Os excessos deste livro soberbo medem-se de diferentes maneiras. Os camaradas são conhecidos por alcunhas: Cu de Chumbo, o Peida Grande, o Sacristão, o Caga Lume, o comandante da companhia é o Galo Doido. Só pessoas excecionais, como o alferes Perdigoto e o sargento Bezerra têm direito ao seu próprio nome. Viajam no Niassa, Zé Fraga vai nos porões de carga. Passou os últimos dias de embarque no Bairro Alto na pensão de Julieta Ganhão. Acamaradam, fazem petiscadas, cantam, assim desafiam a monotonia entre enjoos, vómitos, jogos de lerpa, bebedeiras, dolência e exercícios de salvamento. Recorda os seus tempos de contrabando e agora, antes da partida, as idas às meninas. Casualmente, conhece uma loiraça e apalpou-a a sorrelfa, mais tarde saberá que é a mulher de um general. Chegam a Lourenço Marques e logo se mete em andança, a polícia militar leva-o a bordo. Os confrontos com o Galo Doido sobem de tom, e dentro do excesso peculiar de todo este romance ouvimos o comandante de companhia encrespado, a azoar-lhe o juízo:
“Ao longo da minha vida de militar, percorri este mundo pagão, espalhado pelas terras de África. Vi muitos filhos da mãe com os cornos no ar, conheci beberrões, zaragateiros, indisciplinados, ladrões, sabichões, intelectuais da treta. Vi toda essa fauna desgraçada acolhida por este pobre Exército. Passaram por estas mãos calejadas todos os vícios expelidos por esses desgraçados sem ética, sem honra, vergastados pela falta de brio. E sempre, sempre essas bestas foram trazidas à minha presença para o castigo reparador. E sempre esses infelizes mostraram arrependimento, sempre imploraram o perdão ou a redução da sanção. Mas tu não, tu não. Deves ter sido enxertado nalguma cabra bravia, sodomizado por algum touro da lezíria, porque és uma besta, porque não distingues a selva da civilização”.

Zé Fraga é metido na prisão, os camaradas dão-lhe apoio. E assim chegam a Porto Amélia, “o Niassa expelia soldados do ventre bojudo como cagalhões em tripa cheia”. Zé Fraga entra em contacto com marginais, gente que lhe propõe negócios, coisas como a troca de bidões de gasóleo por bidões de água. E são informados do seu destino, Magolé, passam por Chai, vão-se deslocando de aquartelamento em aquartelamento, as equipas de sapadores avançam para localizar as minas enterradas na picada. É uma belíssima descrição:
“Passam por nós com ar abatido, o rosto inquieto coberto de sombras. Com suavidade, perfuram o piso de areia onde assentarão as rodas dos camiões que seguem atrás. São médicos da estrada que auscultam a barriga do doente. Pressionam a areia em busca de tumores ocultos para os extirpar, para repor a saúde no chão infecto. Cada passo é feito com moderação, quase com timidez, enterrando a pica na terra como uma seringa comprida, à espera de ouvir o som cavo do bico de ferro a bater na caixa da mina. Para os sapadores o perigo não vem da mina anticarro. Se os pés passarem por cima, são precisos duzentos e cinquenta quilos para quebrar a cavilha e a fazer rebentar. O corpo do sapador não tem esse peso. Só as viaturas que o seguem. O perigo para o sapador vem da minha antipessoal, pronta a explodir ao mais ligeiro toque da bota, ao mais pequeno fervilhar de areia”.

E surge a primeira vítima, nessa progressão infernal, a caminho de Magolé:  
“Tombado no chão, imóvel, coberto de terra e sangue, o camuflado esfarrapado até à cintura, está o corpo do primeiro soldado que se abrigou do sol. Uma das pernas, arrancada pelo joelho, pende grotescamente numa massa disforme de onde sobressai a alvura dos tendões. O socorrista fadiga-se com o garrote (…) O ferido parou de gemer. Entrou em choque. O corpo treme como se fosse Inverno. Um fio de baba corre-lhe da boca suja de terra. A outra perna, apesar de inteira, está numa lástima, dilacerada, cheia de golpes, cravejada de grãos de areia. Parecem borbulhas escuras”.

O primeiro jantar em Magolé é praxado por uma flagelação dos frelimos:
“Mas antes que alguém leve a colher à boca, a noite enlouquece com os estrondos dos primeiros rebentamentos. A fila do jantar desfez-se. Os homens correm céleres em busca de segurança. Saltam para dentro dos abrigos, atiram-se para debaixo das viaturas, mergulham nas valas da trincheira, rastejam pelo chão protegendo-se atrás das árvores. Alapam-se à terra, cosem-se com o pó. Ninguém quer ser apanhado por o furacão de estilhaços que esburaca quem se encontrar de pé. O que mais impressiona é o silêncio que se abate em volta. Duas centenas de homens, e nem um pio. Ninguém fala, ninguém protesta, ninguém grita, ninguém dá ordens ou pede seja o que for. Cada um encontra o seu canto para viver, para implorar proteção, para se borrar de medo, para sufocar de pânico, para se deixar matar. Gemidos, gritos de socorro, apelos pelo enfermeiro ouvem-se nos intervalos de explosões. Ninguém os vai socorrer. Ninguém ousa pôr-se de pé no escuro e ser varado por o ferro dos estilhaços”.

Zé Fraga está em fúria, bem arrependido de se ter sentido fascinado por África:
Nunca devia ter posto os pés no Niassa. Devia ter segui os emigrantes que ajudei a fugir para a Europa. Regressei, e a bófia deitou-me a mão, chutando-me para dentro deste cagalhão malcheiroso. Não perguntaram se queria vir, não ouviram a minha opinião. Não sabem que um leão da savana não se deixa domar nem faz a vontade ao domador?”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14712: Notas de leitura (723): "Cabra Cega": tem valor acrescentado, é uma narração da guerra feita por quem lá andou... Aivecas fomos todos nós (Jorge Ribeiro)

3 comentários:

Anónimo disse...

OLhos de caçador é muito bom, mas não é uma novidade. Estava editado na sextante desde 2007, onde teve várias edições.

Luís Graça disse...

Ilustre e desconhecido leitor:

Não custa nada assinar... Se és um combatente, dás a cara ou pelo menos o nome... Presumo que tenha sido um lapso.

Neste blogue não há (ou não deve haver) comentários "anónimos"... Fica aqui o convite para corrigires o lapso... Luís Graça

antonio graça de abreu disse...

O comandante de companhia encrespado, a azoar-lhe o juízo:
“Ao longo da minha vida de militar, percorri este mundo pagão, espalhado pelas terras de África. Vi muitos filhos da mãe com os cornos no ar, conheci beberrões, zaragateiros, indisciplinados, ladrões, sabichões, intelectuais da treta. Vi toda essa fauna desgraçada acolhida por este pobre Exército. Passaram por estas mãos calejadas todos os vícios expelidos por esses desgraçados sem ética, sem honra, vergastados pela falta de brio. E sempre, sempre essas bestas foram trazidas à minha presença para o castigo reparador. E sempre esses infelizes mostraram arrependimento, sempre imploraram o perdão ou a redução da sanção. Mas tu não, tu não. Deves ter sido enxertado nalguma cabra bravia, sodomizado por algum touro da lezíria, porque és uma besta, porque não distingues a selva da civilização”.

Nenhum comandante de companhia falava assim para um qualquer seu subordinado, mas enfim, é literatura. Cada um ajeita-se como entende, cada um come do que gosta.

Abraço,

António Graça de Abreu