domingo, 21 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14776: Libertando-me (Tony Borié) (22): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (3)

Vigésimo segundo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.



Glória, Lola, a Ruça (3)

Hoje fomos à praia, estava um dia de céu limpo, encostámos as sandálias, caminhámos por algum tempo, parámos em frente ao mar, que na altura fazia pequenas ondas, levantámos os olhos e fixámos o horizonte, começámos a sonhar com a Península Ibérica, com Portugal, a Glória, a quem também chamavam “Lola” e, às vezes “Ruça”, tocou-nos no ombro, acordou-nos, continuando com a sua história, cá vai.

Se o senhor Silvestre, pai do Jorge, assim o pensou, também o fez, a Glória, a quem também chamavam “Lola” e, às vezes “Ruça”, casou com o seu amor Jorge, houve festa na casa do senhor Silvestre, pois era a pessoa com mais haveres, os seus contactos resultaram, arranjaram passaporte para o Jorge e para a Glória, que passados uns dias  se meteram num avião, rumo ao México.

Já no México, o Jorge e a Glória, (a partir de agora só se chama Glória, pois já ninguém a conhece por “Lola” ou “Ruça”, excepto o seu marido Jorge), ao saírem do aeroporto, o calor, o trânsito, um pouco de receio das pessoas, com alguma dificuldade em compreenderem o idioma, depois de algumas asneiras, conseguiram entrar em contacto com a pessoa que fazia a ligação aos “passadores”, que falavam uma linguagem que na gíria classificam de “portunhol”, que era uma espécie de português abrasileirado e espanhol, misturado. Tudo arranjado, a hora e o dia e, a ordem era:
- Vamos sair ao anoitecer, numa camioneta de carga, pequena, pois só vamos oito pessoas. A camioneta vai fechada, levam estes baldes para fazerem as vossas necessidades, este lanche, uma garrafa de água para cada um, mas não comam nem bebam, só se não aguentarem, pois se comerem ou beberem têm que o largar por baixo, isso vai dificultar ainda mais a vossa vida. Possivelmente, teremos que andar toda a noite e amanhã todo o dia, só amanhã pela noite estaremos na fronteira perto da cidade de Tucson, no estado do Arizona. Levem roupas leves, de preferência calças, sapatos para caminhar muitos quilómetros, uma saca com alguma roupa simples, pois essa saca também servirá de almofada, assim como os vossos documentos de identificação, dos vossos países. Com vocês vão dois homens armados, se forem parados pela polícia, se abrirem a camioneta, ninguém abre a boca, pois estes homens irão disparar a matar. Chegados à fronteira, eles serão os mensageiros, que vos darão ordem de sair no momento exacto e, qual a direcção que devem tomar. Passam a fronteira, alguém estará do outro lado para vos continuar a guiar, depois, cada um continuará a viagem por sua conta e risco. Têm aqui um pequeno mapa da área. Boa sorte, para todos. Ah, não se esqueçam de levar dólares, nós mesmos os trocamos, um pouco abaixo do câmbio.


Estas ordens, foram dadas pela manhã, não perguntaram se compreendiam ou não toda esta conversação. A Glória, aos poucos foi tomando conta de tudo, ouviu com atenção, compreendeu algumas coisas, outras não. O grupo era formado pelo Jorge e a Glória; dois rapazes, um pouco escuros de pele, que tinham vindo das Honduras; um casal ainda novo, que tinha vindo de São Salvador, viajando, pendurados na “besta”, que é assim como designam o comboio, que vindo do sul, atravessa parte do território do México e, dois jovens brasileiros, também novos, mesmo muito novos, não deviam ter mais do que catorze ou quinze anos, que diziam que não perceberem nada.

Os jovens brasileiros começaram logo por perguntar à Glória:
- Não percebi nada. Levar um saco? E então esta mala que a minha mãe me arrumou?

A Glória pensou logo nos irmãos:
- Querem ver que também tenho que tomar conta destes!

Desfizeram-se de alguns haveres, compraram uma simples saca, onde meterem tudo o que entendiam que deviam levar, sapatilhas para ambos e umas calças leves, iguais para os dois, tudo roupas folgadas, a Glória parecia um rapaz novo. Os jovens brasileiros, fizeram tudo o que viram a Glória fazer.

As pessoas que atendiam na loja, onde compraram tudo isto, já experientes nestas andanças, ficaram com alguns dos seus haveres, explicaram tudo o que haviam de fazer, deram-lhe algumas recomendações importantes, tais como:
- Principalmente a senhora, tem que ser forte no carácter, para com os outros em algumas situações. Não deixe que ninguém lhe toque, sem sua autorização. Deve mesmo, levar uma pequena faca, bem afiada, escondida nessa saca, não tenha receio de a usar em caso de não se sentir confortável, em alguma situação em que a sua dignidade, possa vir a correr risco. Vai passar por situações perigosas, principalmente para mulheres.

A Glória ouviu tudo isto com atenção, comprou uma faca para si e outra para o Jorge, os jovens brasileiros fizeram o mesmo, pelo menos parecia que tinham dois aliados.

Na hora combinada saíram, durante todo o percurso, tirando a sede e o calor, resistiram ao resto. Tiveram uma ou duas paragens, talvez para encher o tanque de gasolina, numa dessas paragens, alguém, depois de dar uns toques em código, levantou um bocadinho a porta traseira, perguntando se iam todos vivos, introduzindo umas garrafas de água.

Tony Borie, Junho de 2015

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14744: Libertando-me (Tony Borié) (21): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (2)

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Muito bem....
Vamos aguardar pelo epílogo dessa viagem "a salto", para comentar a propósito.
Conhecia algumas histórias sobre a "ida para França", a passagem 'a salto' dos Pirinéus e antes também da fronteira luso-espanhola, mas nessa fronteira entre o México e os "States" só dos filmes...

Abraço
Hélder S.