sexta-feira, 26 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14798: Notas de leitura (731): “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Junho de 2015:

Queridos amigos,
Continua a haver uma grande expetativa sobre documentos inéditos que ajudem a iluminar certos protagonismos e a condução da luta armada, bem como a vida do que se convencionou chamar a I República, conduzida por Luís Cabral. A publicação recente destas "memórias" não deixaram de constituir um acontecimento, mas sente-se uma grande deceção, era esperável que ao longo do seu exílio em Portugal Luís Cabral deixasse uma obra mais acabada. Iremos agora ver os episódios à volta da independência, em 1974, reler os seus discursos e por fim tomar nota de uma inacreditável entrevista conduzida pela organizadora desta obra, Ângela Benoliel Coutinho.

Um abraço do
Mário


O regresso das memórias de Luís Cabral (2)

Beja Santos

É inquestionável a importância do que escreve Luís Cabral em “Memórias e Discursos”, edição da Fundação Amílcar Cabral, 2014. O antigo presidente do Conselho de Estado da Guiné-Bissau deixou textos inéditos ora publicados que nos devem merecer a melhor atenção. Vamos ao essencial. Regista as suas lembranças na infância, na Ilha de Santiago. Em curtos, e por vezes em sincopados apontamentos, derrama notas sobre o início da luta armada, é impressivo em pormenores como a viagem acidentada de Gilles Caron, um fotógrafo e cineasta que vinha fazer um filme-documentário sobre a luta do PAIGC e do qual nunca houve mais notícias, embora Luís Cabral anote que ele fez fotografias maravilhosas. Vê-se que eram notas que um dia iriam ser trabalhadas.

São memórias que exigem leitura atenta porque o que ficou são por vezes águas-fortes, um incisivo mas agudo olhar, uma impressão íntima. Como aquele Joãozinho que tinha vindo da Guiné-Bissau para o assassinar, em Ziguinchor, e que se entregou, faltara-lhe coragem para o homicídio. Tal como fez em “Crónica da libertação” exalta Amílcar Cabral e o seu génio político, como foi ascendendo no tablado internacional, atraindo ao território da guerrilha intelectuais, artistas, jornalistas, até que, em 1972 chega uma missão especial do Comité de Descolonização da ONU, em resultado da qual se abriram as portas que levaram ao reconhecimento internacional da República da Guiné-Bissau. Assim se caminha para a interpretação que ele faz dos motivos do assassinato de Cabral. A Direção estava centrada noutras preocupações e não se apercebeu que, como ele classifica, a traição estava a ser preparada por cadastrados e agentes do colonialismo, naquele ano de 1972, o importante naquele tempo era a preparação das eleições e contrariar a presença das forças portuguesas que se tinham instalado em novos quartéis em pontos estratégicos, nas áreas de produção de arroz, como Mato Farroba e Chugué, o que obrigou militantes da segurança a serem enviados para a Frente Sul. Em Conacri, pululavam pessoas como Inocêncio Kani que vendiam bens do Partido, e comenta:
“Embora estas ações fraudulentas não tivessem ainda chegado ao conhecimento da Direção, sentia-se que o ambiente não era o mesmo. Acentuava-se cada vez mais o fosso entre, de um lado, os dirigentes, responsáveis e militantes íntegros, conscientes dos seus deveres, e que se sentiam ligados aos rigores da luta, e do outro, os que queriam aproveitar-se dos bens destinados a cobrir as necessidades da luta, para gozo pessoal”.
Quem lê esta descrição poderá subentender que o se irá passar à volta do assassínio do líder do PAIGC era uma questão moral, entre íntegros e predadores.

Luís Cabral

Um pouco à semelhança do que escreveu em “Crónica da libertação”, narra o seu sofrimento quando se inteira da extensão e da envergadura da conspiração, fala de um grupo de antigos responsáveis, alguns deles com altas funções no passado, desprestigiados, que se associaram com agentes enviados de Bissau e que tinham como objetivo final aliar-se ao “programa de paz” do governo colonial. Segue-se a reação, o PAIGC agiganta-se, recebe os mísseis Strella. Entretanto, os criminosos encontravam-se em poder das autoridades guineenses, que conduziram os interrogatórios:  “Sempre esperámos que nos fossem dadas cópias desses interrogatórios, o que infelizmente não aconteceu. Também pensámos que nos seria possível fazer o nosso próprio interrogatório aos criminosos em Conacri, num ambiente de segurança e tranquilidade, não seria possível conseguir na fronteira. Nada disso foi possível, e as autoridades decidiram que os criminosos seriam postos em vários pontos da fronteira”.

Fidélis Cabral d’Almada, responsável da justiça do PAIGC, ainda organizou o interrogatório de quem foi entregue no Leste. Luís Cabral escreve que Aristides Barbosa confessou que estavam ainda na prisão da PIDE em Bissau quando foram mobilizados para esta criminosa missão. Estamos a falar do mesmo Fidélis Cabral d’Almada que pediu perdão no IV Congresso do PAIGC pela natureza bárbara dos interrogatórios praticados, era impossível não confessar tudo com tantas e tais atrocidades. E regista, sem apelo nem agravo, uma acusação maior:
“Osvaldo Vieira, membro do Conselho de Guerra, não teve a possibilidade de apresentar uma defesa aceitável contra acusações que pesavam sobre ele. As dúvidas prevaleceram. O Congresso decidiu, por isso, dar mais tempo à Segurança para aprofundar o inquérito, ficando Osvaldo com residência fixa em Koundara. O principal ponto de acusação contra este dirigente baseava-se num bilhete que lhe dirigiu um dos criminosos, no momento em que eram conduzidos para a frente Leste, dizendo-lhe textualmente ‘tudo está arrumado, seguimos para a fronteira e ficamos lá à tua espera’. O Osvaldo estava nesse momento em Koundara, a carta foi confiada por um dos criminosos, João Tomás Cabral, ao comandante do quartel guineense nessa localidade, que a fez chegar às mãos do responsável da nossa Segurança, Otto Schacht”.

Enumera as decisões do II Congresso, depois refere a chegada de Rafael Barbosa a Morés, queria seguir para Conacri, ficou detido, impunha-se apurar as ligações que o antigo presidente do Comité Central do PAIGC estabelecera com os assassinos de Amílcar Cabral. Relata a primeira reunião da Assembleia Nacional Popular e a proclamação do Estado independente, em 24 de Setembro de 1973. É em Madina do Boé, nesse dia que Luís Cabral, na qualidade de presidente Estado profere um discurso em que a propósito dos direitos dos cidadãos livres do novo Estado soberano escreveu o seguinte:
“Nenhuma pessoa honesta na nossa terra deve ter medo de dizer o que pensa, e pode dizê-lo a todos os responsáveis dos órgãos do nosso Estado, seja qual for o nível dessa responsabilidade. Não podem existir razões que justifiquem a criação de grupos de descontentes no seio da nossa sociedade, salvo quando se trate de elementos maus, de criminosos e agentes do inimigo, do nosso povo e da África, para a neutralização dos quais o nosso Estado tem de ser capaz de tomar todas as medidas que se impõem para a segurança do nosso povo e da sua revolução. Para mais eficazmente isolar esses maus elementos que tentarão sempre destruir as nossas vitórias com o cancro da corrupção e da traição, devemos mobilizar todos os meios e todas as forças patrióticas e honestas da nossa terra. Vivemos uma dura experiência com o cobarde assassinato de Amílcar Cabral. Esta dura experiência está bem presente no espírito de todos os combatentes da nossa luta e deve servir de exemplo para a organização da vigilância necessária à defesa e segurança do nosso Estado”.

Importa aqui dizer que as figuras proeminentes da segurança, Otto Schacht e Buscardini, foram liquidados no golpe de 14 de Novembro de 1980.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14782: Notas de leitura (730): “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Declaração de Independência em 24 de Setembro de 1973, em Madina do Boé... Ainda temos pessoas no blogue que acreditam neste embuste.

Abraço,

António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

Infelizmente António Graça Abreu, o problema não foi de ter sido na mata do Boé ou Luanda ou cidade da Praia, que as independências se deram, mas antes numa estranha ONU, e numa derrotada Europa de braços caídos.

Este "coitado" de Luís Cabral, que conheci ainda a sua governação e a sua pessoa, durante um ano até ao golpe que o derrubou, talvez como nós os militares portugueses e combatentes africanos nossos aliados, tenhamos juntos, instintivamente salvo um país, que sem aquela luta colonial/ultramarina, estivesse hoje feito e dividido em dois farrapos , um de Conacry outro de Dakar.

Ás vezes ponho-me a imaginar, Américo Tomaz a entregar a Guiné nas mãos de Amílcar Cabral.

Como vi os nomes que os guineenses chamaram ao Luís seu irmão no 14 de Novembro de 1980, e como vi a relutância, levantarem uma estátua a Amilcar fora dos muros da velha-Bissau, penso que os guineenses matavam na hora tanto Amílcar como Américo Tomaz com H.

Ainda bem que os povos, desde mandingas, balantas, mucubais e macondes, não nos podem responsabilizar pela escolha dos seus presidentes sem sua aprovação.

Pois se eles nem nos deram a sua opinião para tal escolha!

De vez em quando lembro BS para uma tentativa em encontrar os discursos mensais dos ministros portugues em NY na Assembleia das Nações Unidas, daqueles anos.

Havia no tempo de Luís Cabral em Bissau, uma literatura soviética em português, da Caminho, centenas de títulos, que nas mãos de Beja Santos, fazia deste blog uma antologia completa do fim do(s) império(s) africanos..

Pode ser que algum guineense um dia apareça com algum.

Cumprimentos

Como gostei de ouvir soviéticos falar em português com sotaque alentejano em Bissau.