sexta-feira, 17 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14891: Notas de leitura (737): “Lugar de Massacre", de José Martins Garcia (1): Regressar à leitura de um dos livros indiscutíveis da guerra da Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Julho de 2014:

Queridos amigos,
Vamos aos factos quanto à datação e faseamento da literatura da guerra. Nos anos 1960, pontificou a confiança no soldado português e o sentido de missão – é assim que podemos entender os escritos de Manuel Barão da Cunha e as primeiras obras de Armor Pires Mota. À entrada dos anos 1970, Álvaro Guerra deixa-nos parágrafos empolgantes e em 1973 publica “O capitão Nemo e eu”, um livro soberbo onde a Guiné é dona e senhora. E a seguir ao 25 de Abril, com estoiros de pirotecnia José Martins Garcia legou-nos o importantíssimo “Lugar de Massacre”, romance incontornável, um dos motivos de orgulho que devemos ter nesta literatura onde prima a originalidade e o arrebatamento.
Façam o possível por encontrar “Lugar de Massacre”.

Um abraço do
Mário


Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (1): Regressar à leitura de um dos livros indiscutíveis da guerra da Guiné

Beja Santos

Não é a primeira vez que aqui se fala neste belíssimo romance de José Martins Garcia, um dos primeiros a ser publicado no termo da guerra. Em nota, o autor informa-nos: “Este romance foi redigido entre o mês de Dezembro de 1973 e o dia 8 de Setembro de 1974. Qualquer coincidência com a realidade colonial dos anos 1966-1968, no que respeita à Guiné, não é produto do acaso”.

“Lugar de Massacre” tem merecido sucessivas edições e é alvo de continuada investigação universitária. Não é difícil perceber porquê. É um livro burlesco, codificado, com laivos de surrealismo, pintalgado de uma sexualidade excessiva, é uma obra em que o uso do palavrão aparece como um recurso natural e em que a linguagem é deliberadamente rebuscada de um português antigo, há para ali escrita alquímica e laboratorial. Incorpora uma metáfora da condição humana como escreveu Maria Edite Gordalina da Fonseca numa tese de mestrado que a Veja editou em 2003, em que compara “Lugar de massacre” com “Aparição”, de Vergílio Ferreira. Ela fala num romance-problema, romance que põe um problema e que dá ao leitor várias hipóteses de interpretação. A personagem Pierre Avince é uma das traves-mestres da arquitetura do romance. Pierre é oriundo de um meio social humilde, faz parte de uma espécie de aristocracia intelectual e cultural, é profundamente culto, é a imagem do império à deriva, transporta por todos os lugares de peregrinação os restos de uma mala. Escreve em rememoração, será frequente o leitor confrontar-se com a expressão “alguns anos depois”. A relação com as mulheres é cinzenta, indolor. O livro está carregado de símbolos, Pierre é oficial de transmissões e todo o equipamento que procura montar nunca funciona, é um inteiro fracasso. Pierre Avince é José Martins Garcia ao espelho.

A Guiné, toda ela, é o território onde está confinado o massacre de uma geração. O mato é lugar de massacre, tem aspetos bons quando suscita o isolamento e a clausura. Em termos niilistas, todas aquelas histórias com oficiais são de pôr os cabelos em pé, se acaso as tomássemos a sério, os oficiais em permanentes práticas homossexuais, Pierre vê panascas em todos os sítios, o oficialato é encarado com o mais completo desprezo, ao longo destas viagens só encontramos uma figura positiva, o capitão Camilo, o resto são pessoas desprezíveis.

Bissau é o ponto de partida e o ponto de chegada do romance, Pierre viaja por Catió, Bafatá, Ponta do Inglês, S. Domingos, Ingoré, Sedengal e Suzana. O recurso imagético é diversificado. Por exemplo, Catió tem bolanhas com odor podre; na Ponta do Inglês à para ali uma completa anarquia, um gato misterioso nome de morteiro 81, uma macaca a fazer arremessos de circo, o soldado Zé Burro que adorava fornicar ovelhas, e sofre porque estas não existem na Guiné, nesta Ponta do Inglês há um poilão onde apareceu Cristo. Os espaços interiores ligados a Bissau têm um tratamento insignificante, seja o Quartel-General seja a camarata da neuropsiquiatria do Hospital Militar de Bissau. Bissau é um cenário pintado em tons caricaturais, ali pontificam pessoas tratadas como aberrações ou serviços enigmáticos: “Sua Alteza”, “Chefe dos Comestíveis”, “Secção das Movimentações Perdidas”, “Serviços da Mortandade às Pingas”… Há por ali muita maldade, corrupção e decadência, é espaço dos bacanais típicos de Sodoma e Gomorra.

A instabilidade emocional de Pierre vai em crescendo, adensa-se à medida que se avoluma o dramatismo das situações que o rodeiam. Pierre vive consumido em álcool, do entorpecimento chega aos sinais da loucura, fala com familiares, inexplicavelmente passa a discorrer sobre o tempo e o espaço, as duas categorias fundamentais do entendimento, transformado em argonauta, incapaz de dar algum sentido à existência, anda de lugar em lugar, em jeito de interlúdios para se ganhar novo fôlego e para se perceber o seu desgaste temos a imagem da mala: velha mala, mala desconjuntada, incrível mala desconjuntada e suja, mala de Judeu Errante, farrapos de mala, parece que anda na Guiné a espiar uma culpa e ao mesmo tempo ganha a aguda consciência do absurdo da sua condição.

Obra enigmática ou cabalística, como se entenda. Bissau é uma cidade bíblica, tipo Sodoma e Gomorra, como se pode falar do cativeiro da Babilónia, das redondilhas de Camões, da Mensagem de Fernando Pessoa, tudo vem a propósito ou despropósito da guerra como situação limite, no vazio do tempo, do permanente a desejar da morte. Mas Pierre é um ser que nunca desiste – aí reside a questão central da metáfora da condição humana, mesmo alcoolizado, atormentado pelas imagens da peste que ele vê em Suzana, em pleno chão Felupe.

Mas “Lugar de Massacre” está longe de se confinar a Pierre Avince. O romance, aliás, começa com a chegada à Guiné do jovem conde d’Avince, uma clara imagem do passado, é uma das figuras anacrónicas do império tratadas com vitríolo por José Martins Garcia: “Descendente de uma família guerreira, cem anos inativa por imposição da paz e da prosperidade, coubera-lhe em sorte retemperar os gumes de antanho”. O seu passado é caricaturado para provocar gargalhada, vejamos a mãe do conde d’Avince: “A condessa era virtuosa. Por virtuosa, desposara o homem da sua vida, pálido, louro, tímido, casto, de brasão antigo, de fortuna incerta – mas todo ele aprumo. Uma lua após o himeneu, Dona Violante continuava virgem e dava graças as céu pela correção do esposo. Dom Teodósio, angelical, desflorou-a numa noite chuvosa, depois de algumas consultas, caras, a um especialista. Quando a condessa se convenceu do interessante estado, Dom Teodósio entregou-se com assiduidade às reuniões que, no fundo, constituíam a sua razão de ser. Dom Teodósio presidia à Liga para a Salvação do Passado, organismo completamente brasonado, cujas sessões se desenrolavam até de madrugada agrupando fidalguias, projetos e lamentações”. Este jovem conde que vai para a Guiné é literalmente um inútil, mas sente a sua missão de ir defender o solo sagrado. Foi colocado na Secção das Movimentações Perdidas. Procura amizades, conhece o Silva. Horrorizado, o conde ouve falar o Silva coisas que lhe parecem sinistras, do espiritismo ao vampirismo.

É nisto que entra no romance Pierre Avince, já bem alcoolizado, apresentar-se-á a Sua Alteza perdido de bêbado. Vai viver no quarto do conde e discursa coisas assim: “Um dos piores defeitos da nossa colonização é o anacronismo. Transpõem-se para os colonizados valores caídos em desuso. Quando derem a estes gajos uma fábrica de armamento, é porque já foi inventada, para os deuses, uma forma superior de destruição, o armamento fluido, o rei da morte. Quando os civilizados deixam de ligar à moral de entrepernas, a moral de entrepernas é exportada para outras latitudes. Isto é o mundo que a Europa criou”. O conde reage, mostra a sua indignação. Felizmente que chegou o conde d’Enxeque, veio também trabalhar para os Serviços de Conjugação.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14873: Notas de leitura (736): “Guerra d’África, 1961-1974, Estava a guerra perdida?”, por Humberto Nuno de Oliveira e João José Brandão Ferreira, Fronteira do Caos, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

JD disse...

Boa Mário!
É realmente um assombro pelos desassombros. Um livro intenso, pleno de estórias e metáforas, rico de imaginação e crítica, muito bem escrito, que pode retirar algum significado em algumas passagens por nos escangalhar a rir.
Que ninguém perca a oportunidade.
Com num abraço
JD

Bispo1419 disse...

Meu caro Carlos Vinhal:
Não vou agora repetir os meus comentários, já feitos neste blogue aquando de anteriores postagens do Beja Santos e do Zé Dinis sobre "O Lugar de Massacre". Venho só fazer uma correcção à 4ª linha do texto deste "post". Onde está "1996-1998" deve estar "1966-1968", conforme 1ª edição do livro que é de Junho/1975, Edições Afrodite/fernando ribeiro de mello.

Um grande abraço
Manuel Joaquim