segunda-feira, 20 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14902: Notas de leitura (738): “Lugar de Massacre", de José Martins Garcia (2): Regressar à leitura de um dos livros indiscutíveis da guerra da Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Agosto de 2014:

Queridos amigos,
“Lugar de Massacre” é o primeiro título sonante da literatura da guerra da Guiné, após o 25 de Abril.
É uma carpintaria original, uma miscigenação de vários géneros literários, há para ali um controlo profundo de um mestre da língua que ondula entre o português vernáculo, o surrealismo, o humor trauliteiro, a paródia aos falsos valores ancestrais, o desnudar cruel dos horrores da guerra.
Pela sua complexidade, por ser uma página trágica do lugar e do tempo de massacre, continua a ser alvo de investigações universitárias, lá se vão descobrindo novas dimensões deste romance incómodo, subversivo, mordaz.

Um abraço do
Mário


Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (2): Regressar à leitura de um dos livros indiscutíveis da guerra da Guiné

Beja Santos

“Lugar de Massacre”, de José Martins Garcia, é obra cimeira da literatura da guerra. Cáustica, niilista, libelo dolorosíssimo, com recursos à linguagem encriptada, rememoração autobiográfica, impôs-se desde a primeira hora pela sua originalidade, por gritar em voz alta o nome dos lugares e dos tempos de massacre.

Demolidor com os valores passadistas, é nesse contexto que podemos observar os comportamentos burlescos dos condes d’Avince e d’Enxeque, que têm sempre na boca os valores da glória de Portugal e anunciam que estão em missão civilizadora e na prática são duas futilidades a brincar aos valores de antanho. A atmosfera do Quartel-General é de paródia, de orgia romana. Em contraponto, Pierre Avince, sempre a arrastar uma velha mala, espoleta a inquietação cultural entre os condes. Depois de uma festa em que os condes viram a mobília do quarto partida, Pierre Avince convida-os para o almoço do seu aniversário, nova borrasca, acaba tudo em bebedeira monumental, ausência ao serviço, o comandante Pássaro em raiva rubra. A propósito do sucessor do comandante Pássaro, José Martins Garcia destila o seu fel sobre a dimensão tacanha e burocrática do militar:

“Não foi a um ser verdadeiramente humano que o comandante Pássaro cedeu a chefia. Não se tratava também de um longilíneo pássaro triste, nem de uma consciência empenhada no dever, nem de um guerreiro nostálgico de brocados, nem de um recalcitrante enfastiado por disciplinas de caixa e tambor. Não era um eleito por capacidades insondáveis, não era um perito em matemáticas ou em fuga de ideias. Não era nada disso. Quebrara bravamente um pé. Não em combate. Mas em exemplificações para instruendo. Também na pança e nas nádegas se lhe infiltrara o micróbio da demissão. Sedentário, transferindo para tarefas menos ginasticadas, engordara. Ainda angélico nas pupilas azuis, crescera nas nádegas roliças, na cara bolachuda, no tronco, no alto e no baixo, a ponto por vezes de lhe terem chamado chimpanzé. Capitão Oliveira”.

A atmosfera de bacanal irá manter-se, há para ali amores inconversáveis entre oficiais e praças, o capitão Oliveira e o conde d’Avince andam ciumentos, disputam o mesmo efebo. Pierre Avince anda por Catió, não se mistura com estes ardores de paixão. Numa vinda a Bissau temo-lo novamente a protagonizar uma bebedeira monumental. As orgias sucedem-se. Pierre d’Avince parte para Bafatá e daqui para a Ponta do Inglês, o que aqui se passa é descrito com a irreverência e no tom delirante do costume. Mas é neste contexto que o escritor nos deixa uma página belíssima:
 “Frente ao rio barrento, com o mato pelas costas e ruídos inquietos pelas noites iguais, desenrolavam-se os dias de degredo, com a estritamente indispensável vigilância e a excessos de memória nas palavras cada vez mais ásperas. A saída única era à beira-rio, se a Marinha tivesse tempo ou propósito de ali mandar uma lancha. Mas constava ninguém apreciar essas paragens, que bem interiores ao mapa da Guiné-Bissau, constituíam na realidade o último enclave do ocupante, tomando por referência o largo afluente de nome Corubal. Daí para sul - dizia-se -, embarcação que ousasse adiantar-se saía rendilhada de bala inimiga, como já se provara. E em terra, nas picadas que tinham ligado a Ponta ao Xime e ao Xitole, o matagal apagara o trilho humano, dando por zero a parte colonizadora da civilização.
Havia três meses que aquele Destacamento de quarenta humanos ali encontrara abrigos e arame-farpado e ali se exercitava na espera, numa inquietação sem finalidade senão a de sonhar a evasão. Para além da vedação, percorriam, bem armados, uns cinquenta metros, para alcançarem água vagamente potável, tendo o cuidado de se abastecerem pela manhã, visto já terem notado, na lama fresca, pegadas de pé descalço. Ou fantasmas ali se dessedentavam, ou outra gente, invisível e talvez atenta, ali se abastecia. E o Anatólio, o furriel de poucas falas, não se entendia a si próprio quando afirmava querer e não querer conhecer esses fantasmas, quem sabe se homens menos loucos que os enclausurados brancos da Ponta do Inglês.
Reinava o sol sobre os perdidos defensores da cerca e então algum sorriso lhes sublinhava as falas. Mas vinha a noite e os receios aos montes acidulavam os gestos com que baralhavam as sebentas cartas e as davam a rostos apreensivos de tanto jogarem sem só uma certeza. E quando o vento sarcástico da história lhes fundiam mais uma lâmpada amarelenta, falavam de socorro e reabastecimento, culpando da solidão e da escassez de tudo o encarregado das transmissões”.

Com um domínio absoluto sobre o absurdo, assim termina o capítulo:
“No dia seguinte, Pierre e os seus dois auxiliares entraram, com o estúpido material que lhes coubera em sorte, numa lancha da Marinha, ali por acaso. Beberam água fresca e adormeceram. O Destacamento da Ponta do Inglês foi atacado poucas horas depois. Entre mortos e feridos muita gente escapou”.

Pierre d’Avince segue para São Domingos, no jogo das cartas ficará eternamente endividado, melhor dito fica a dever o vencimento de um ano. Pierre já não é produto do delírio literário, conversa com familiares mortos, são sonhos em que fala do tráfico de escravos, da polícia de choque que entrou no estádio universitário, o que nos remete para a crise académica de 1962. Prosseguem as conversas com os antepassados mortos, a sombra do passado também é dada pelo alferes Teive, no Sedengal, não longe de São Domingos, e temos mais uma comicidade com a velha aristocracia:
“O alferes Teive era ferozmente monárquico. Em 1578, no desgraçado dia da batalha de Alcácer Quibir, Dom Diogo de Teive, cheio de areia histórica, largara o ‘Ter! Ter!’ – brado com o qual, segundo os historiadores providencialistas, Deus pusera termo à loucura sebastiânica. O alferes Teive cuja paixão na vida civil fora a Heráldica, achava-se na posse de valiosos documentos que demonstrariam, uma vez revistos e conjugados, ser falsa a atribuição do tal desastrado brado ao heróico Dom Diogo de Teive. Dizendo isto, o alferes sacudiu o mindinho ornado de velhíssimo brasão”.
É por estas paragens que Pierre encontra as personagens mais simpáticas da obra, o capitão Camilo e um agente técnico mulato. Questionado por Pierre, responde que ninguém lhe faz mal, ele trabalha para o desenvolvimento da Guiné, diz ter andando na escola com Amílcar Cabral. Pierre diz-lhe de forma cortante que ele trabalha para o ocupante e o outro retorquiu:
“Não. Trabalho para a Guiné. O país fica, os governos mudam”.
O caminho para o delírio prossegue, Pierre vai ver com os seus olhos tabancas destruídas, seguramente que o PAIGC não está inocente, em chão felupe vê miséria indescritível, vê doença, vê superstição:
“De fora, vinha a lamúria dos felupes, encaminhando os mortos para o paraíso felupe. O deus felupe em nada se distinguia do deus da baga-baga, esse deus que ordena às formigas a construção de catedrais. Sombreado pelo compasso do tambor, o cântico fúnebre toda a santa-noite uivava encomendando a peste ao deus felupe”.

A guerra anda à solta, há minas e sinistrados, Pierre, combalido, regressa a Bissau e baixa aos serviços da neuropsiquiatria. Assiste à chegada dos helicópteros, grita pela Pátria no seu desperdício, vendo tanto sofrimento que acode àquele hospital militar, está seguramente louco, este doutor em letras, cirurgião dos fados soterrados em letra morta. Endoidece no lugar de massacre. Para que conste.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14891: Notas de leitura (737): “Lugar de Massacre", de José Martins Garcia (1): Regressar à leitura de um dos livros indiscutíveis da guerra da Guiné (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Luís Graça disse...

Temos no nosso blogue um descritor "José Martins Garcia"... O escritor nasceu em 1941, no Pico, e fez a guerra colonial, no TO da Guiné, em 1966... Morreu prematuramente em 2002, aos 61 anos...LG

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ROMANCISTA, CONTISTA, DRAMATURGO, JORNALISTA, PROFESSOR E ENSAÍSTA
Morreu José Martins Garcia, o biógrafo de Nemésio
CARLOS CÂMARA LEME 05/11/2002 - 10:16


O grande biógrafo de Vitorino Nemésio, ensaísta, escritor e dramaturgo açoriano, José Martins Garcia morreu ontem, na ilha de S. Miguel, a caminho do hospital de Ponta Delgada. Contava 61 anos e tinha deixado há cerca de um ano a actividade de docente na Universidade dos Açores (UA), onde foi vice-reitor.

Natural do Pico, da pequena aldeia de Criação Velha, onde fez os seus estudos primários, atravessou o canal para ingressar no Liceu da Horta, Faial. Em 1969, licenciou-se em Filologia Românica, na Faculdade de Letras de Lisboa, tornando-se mais tarde assistente do grande linguísta Lindley Cintra.

A Revolução de Abril apanhou-o no jornal "República", onde assinou sobretudo crónicas. Militante do PS bateu com a porta em Outubro de 1976, ano em que foi demitido pela administração do "Jornal Novo", onde desempenhara as funções de director-adjunto. Martins Garcia deixou a sua marca por muitos títulos da imprensa como "A Capital", "A Luta!", "Diário de Notícias", "O Diabo" e na revista "Vida Mundial". Leitor de Português em Paris, ensinou na Brown University, Providence, EUA, entre 1979 e 1984, instituição onde hoje lecciona outro nemesiano de gema, Onésimo Teotónio de Almeida.

(...) À obra de José Martins Garcia ficará para sempre associado o nome de Vitorino Nemésio, o poeta/romancista e conhecido do grande público pelas suas notáveis charlas na RTP, Se Bem me Lembro... na década de 70. Juntamente com David Mourão-Ferreira (sobre quem escreveu dois livros), António Manuel Machado Pires, Fátima Freitas Morna e Maria Margarida Maia Gouveia, Martins Garcia dedicou muito das suas reflexões à obra de Nemésio - podendo dizer-se mesmo que ele é o biógrafo do autor de "Mau Tempo no Canal", com o livro "Vitorino Nemésio: A Obra e o Homem" (Arcádia, 1978). O livro foi republicado com o título "Vitorino Nemésio: à Luz do Verbo" (Vega, 1988), com o qual ganhou o Prémio Eça de Queirós, instituído pela Câmara Municipal de Lisboa. Pelo caminho, deixou em 1981 o livro de ensaios "Temas Nemesianos".

O encontro com Nemésio deu-se, pela primeira vez, num exame. Em 1960, na Faculdade de Letras de Lisboa, como Martins Garcia recordou ao PÚBLICO, em Fevereiro de 1998, numa entrevista por ocasião do Congresso Internacional de Estudos Nemesianos, em S. Miguel.

(...) Ora, acontece que Martins Garcia como que trilhou os passos de Nemésio. A obra é, ela também, multifacetada. No romance registem-se seis, dos quais "Lugar de Massacre", de 1975, é uma das primeiras incursões sobre um tema ainda hoje tabu nas letras (e não só?!) portuguesas - a Guerra Colonial. Como contista, assinou sete livros dos quais "Katafaraum é uma Nação" (1974) e, sobretudo, "Katafaraum Ressurecto" (1992), é uma pedrada no charco nalguma intelectualidade açoriana que, numa visão míope, só vê nas ilhas um lugar idílico de vulcões e paisagens. (...)

Excertos do jornal "Público", com a devida vénia...

http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/morreu-jose-martins-garcia-o-biografo-de-nemesio-194199