segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15081: Notas de leitura (754): “Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau”, por Carlos Lopes, Edições 70, 1982 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Setembro de 2014:

Queridos amigos,
Carlos Lopes ao tempo é um ardoroso e talentoso pesquisador universitário, irá em seguida doutorar-se e receberá elogios encomiásticos.
A experiência juvenil pela política na recém-independente Guiné-Bissau amargou-o e ele irá ser um crítico frontal aos sonhos deturpados por Amílcar Cabral. É por isso que vale a pena ler ou reler este ensaio, a despeito de alguns dislates que me aprecem incompreensíveis para alguém que já sabia que a propaganda política é péssima conselheira da investigação científica. E é um documento de coragem, à distância de 30 anos o que é hoje um conceituadíssimo quadro da ONU portou-se com verticalidade e firmeza, deixou uma das raríssimas críticas que se produziram ao regime.

Um abraço do
Mário


Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau (2), por Carlos Lopes

Beja Santos

“Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau”, por Carlos Lopes, é um estudo universitário que não esconde pertencer à literatura comprometida. Ao tempo, 1980, Carlos Lopes, militante do PAIGC, interrogava-se sobre as transformações que tinham acompanhado a passagem da luta contra o poder colonial até à construção de um Estado moderno. Centrou a sua observação em primeiro lugar na etnicidade e relações de poder, o seu olhar pendeu para a evolução histórica dos Fulas no contexto das muitas sociedades verticais que coexistiam com as sociedades horizontais, isto para apreciar a economia comunitária e o modo de produção tributário; mais adiante, destacou as novas relações sociais surgidas após a luta armada, ao tempo em que a administração colonialista já estabelecera, se bem que rudimentarmente, um modo de produção capitalista. Desta racionalidade das etnias e do poder colonial, transferiu-se para a racionalidade do Estado, estamos a falar do PAIGC vitorioso que chegou a Bissau para ocupar o aparelho de Estado. O investigador procura tipificar os erros praticados para quem chegou da luta armada e tomou conta da administração em Bissau. A orgânica governamental revelou-se ineficaz, os princípios democráticos do PAIGC foram sistematicamente desprezados, chegava a hora dos conflitos de interesses, as lutas de classes, na sua ótica, manifestavam-se abertamente e a tentação colonial tomou conta de muitas decisões do aparelho da governação. O que fora um Partido-Estado-Exército fragmentou-se. Carlos Lopes insiste numa data significativa: 1977 teria sido o ano da viragem, a burocracia afastou a participação democrática. Luís Cabral, em 1979, tenta colocar os seus homens no seio da hierarquia militar.

E sintetiza a radicalização política de acordo com as seguintes manifestações: luta de tendências no seio do Partido; a não resolução do problema nacional; conflito entre o movimento de libertação nacional e a pequena burguesia comercial aliada aos funcionários coloniais; conflitos de interesse económicos. Entrara-se, sem quaisquer ilusões, num terreno de grandes clivagens entre a racionalidade étnica e a racionalidade do Estado. A via autogestionária com prioridade para a agricultura, que fora a estratégia de desenvolvimento prosseguida e acalentada durante os tempos da luta armada foi substituída em 1977 no III Congresso do PAIGC, aí abriram-se as portas ao desenvolvimento industrial e à implantação de projetos delirantes, do tipo faraónico. Deixou de ter significado real ser membro do PAIGC. O desastre veio logo a seguir: “As primeiras unidades industriais foram fracassos flagrantes. A fábrica de sumos e compotas de Bolama não trabalhou nunca mais de dois meses seguidos. A fábrica de colchões não funcionava mais de cinco minutos por dia com medo da penúria das matérias-primas”. Lopes refere a visita de René Dumont ao complexo agroindustrial do Cumeré e diz abertamente que o projeto é um desastre em perspetiva para a economia agrícola e geral do país. Os erros não se limitaram a estes fracassos, esta industrialização descurou o caráter sagrado da terra para os africanos, os camponeses não perceberam a utilidade e alguns devaneios agroindustriais: “O projeto algodoeiro de Bafatá, sob a égide de uma multinacional francesa, deve fazer da Guiné-Bissau um exportar de algodão. Em Gambiel, preparam-se imensos terrenos para a cana-de-açúcar com vista a estabelecer uma fábrica de açúcar cuja capacidade inicialmente de 70 mil toneladas já foi reduzida para 10 mil. A importação de toda a tecnologia e dos quadros técnicos necessários tornariam o açúcar mais caro do que o atualmente importado”.

Mudou o comportamento dos dirigentes do PAIGC. Aquela Bissau que Amílcar Cabral tanto temia, deslumbrou os recém-chegados. Com a independência, e negando seguimento ao modelo autogestionário, foram destruídas as redes comerciais das redes libertadas, entrara-se, segundo o slogan, na nova fase de reconstrução nacional. Acontece que os departamentos de Estado passaram a ser dirigidos por pessoas notoriamente incompetentes. Sem quadros politicamente preparados, o futuro revolucionário da Guiné-Bissau estava comprometido. Os quadros do Estado convergiram para Bissau, abandonaram as estruturas de base do PAIGC, desinteressaram-se da vocação popular. A crítica de Carlos Lopes é demolidora, e convém insistir que toda ela terá sido escrita muito antes do golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980. A burocracia fracassou. E ele escreve: “O impacto da capital junto das novas camadas sociais provocou uma quase autonomia socioeconómica de Bissau em relação ao resto do país. A questão da terra e a transformação das mentalidades que lhe estão ligadas é também um problema até aqui não resolvido”. A atividade militante definhou por toda a parte. Para o autor é luta de classes que está em jogo na Guiné-Bissau, o PAIGC ou é engolido ou assegurará a vitória das classes na luta nunca vacilaram e asseguraram a saída revolucionária, adverte.

A última parte do ensaio de Carlos Lopes analisa a unidade nacional e a construção estatal. Cabral fizera superar os agrupamentos étnicos a favor da consciência nacional, soubera mobilizar todas as camadas da população, os camponeses tinham sido conduzidos pela pequena burguesia até à vitória da independência. Cabral propunha um “novo ser social”, o pilar da construção do Estado. Esse novo ser social iria apoiar a via socialista, a emancipação económica, a consciência revolucionária marcada pela classe mais forte, os assalariados, os camponeses e a pequena burguesia. Daí Carlos Lopes voltar a referir que à pequena burguesia assistem dois caminhos possíveis: trair a revolução ou suicidar-se como classe.

Para Carlos Lopes, se se adotar a consciência revolucionária é necessário que o Estado desempenhe um papel determinante no processo de desenvolvimento e anuncia as missões que o Estado deve estar incumbido, referindo os grandes eixos dessa mobilização: transportes e comunicações; abastecimento de bens de consumo e bens de produção da primeira necessidade; fornecimento de água no meio rural; créditos agrícolas destinados à compra de equipamentos coletivos de trabalho; saúde e educação.

Para isso, existia Carlos Lopes a contradição etnia-Estado teria que ser suplantada.

Dir-se-á que este ensaio só tem importância para o investigador, para quem procede ao levantamento dos trabalhos de sociologia política que apareceram na Guiné-Bissau, logo nos primeiros anos após a independência. Diria que não só, há nesta investigação um comprometimento direto, alguém que andou pelos corredores do poder e que assistiu ao desabar de sonhos e tentou reagir, denunciando corajosamente os erros e propondo novas atitudes. Foi muito raro ouvirem-se vozes como a de Carlos Lopes. É essa dimensão pessoal de coragem e autenticidade que me aprece digna de relevo, também.
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Nota do editor

Poste anterior de 4 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15073: Notas de leitura (753): “Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau”, por Carlos Lopes, Edições 70, 1982 (1) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Antº Rosinha disse...

Obrigado ao BS pela trabalheira.

Devemos como portugueses divulgar o mais possível autores dos PALOP, pois continua a haver muito poucos autores africanos em português.

E dizer que no tempo do "colon" havia tantos africanos de várias cores a escrever, falar e cantar e discursar em português, ao ponto de ensinarem a falar português, desde russos, romenos e búlgaros, juguslavos e até canariños. Parece que desistiram de ensinar português.

Só devemos pedir aos autores africanos para não mentirem aos portugueses.

Ainda alguns insistem que fomos os colonialistas a matar Amílcar Cabral, porque aí, os guineenses ficam zangados com essas mentiras.

Cumprimentos

Manuel Luís Lomba disse...

A metamorfose vitoriosa das derrotas sofridas nos campos de batalha da "república independente do Como", em Guidaje, em Gadamael e até em Guileje (ressalvo a captura da sua intendência e o sucesso da sua propaganda), redundou em paradoxo: foi de derrota em derrota que o PAIGC alcançou a vitória final!
Em 1964, o PAIGC afirmava haver corrido a tiro o ocupante português e implementava lojas do povo (estereótipo de "grandes superfícies"), escolas e hospitais, etc. em dois terços da Guiné. Em Setembro de 1973, uma região fronteiriça e desertificada de gente, serviu-lhe de palco para proclamar a independência da Guiné-Bissau, os negócios de Estado sediados em Conacri, afrmava a mesma área libertada e queixava-se à ONU que Portugal lhe ocupava a ilha de Bissau, à revelia de qualquer legalidade...
Em 10 de Setembro de 1974, o MFA, uma metástase do PAIGC, alcandorado a representante do Exército Português fundado por Afonso Henriques, entregou-lhe Bissau e o poder total sobre os bissau-guineenses.
E aconteceu outro e perdurável paradoxo: A Guiné é Bissau e o resto é paisagem...
Abraço e boas vindimas.
Manuel Luís Lomba
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