domingo, 27 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15166: Libertando-me (Tony Borié) (36): ...tal e qual uma árvore centenária

Trigésimo sexto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 22 de Setembro de 2015.


Nós, os veteranos, devemos ter a atitude, às vezes silenciosa, qual árvore centenária!

Numa nova urbanização constroem-se novas casas, aerodinâmicas, bonitas aos nossos olhos, plantam pequenas e simples árvores em alguns locais e. passadas umas dezenas de anos, as casas estão na mesma, com aspecto mais velho, ou em alguns casos abandonadas, mas em compensação as árvores estão grandes, fortes, silenciosas e, quase que tomaram conta do ambiente, da natureza, são elas o principal elemento, muitas vezes contra às ideias dos vindouros, são elas que ditam as directrizes do novo aperfeiçoamento da urbanização, tudo se começa a fazer de novo em seu redor, as ruas terão, talvez, que tomar outro sentido de trânsito, porque estão a ser um entrave para o crescimento e vida dessas mesmas árvores.

Como em outras partes do nosso planeta, mas damos o exemplo daqui, porque é onde vivemos, a área do Parque Nacional de Matanzas, onde se encontra o Forte de Matanzas, que foi projectado como uma torre de observação fortificada, construído por volta do ano de 1750 por condenados, escravos e soldados trazidos da ilha de Cuba, que foram usados como mão de obra para erguer esta estrutura, que está situada na atual Rattlesnake Island, que quer dizer mais ou menos Ilha das Cobras e, numa posição de comando sobre a entrada do canal de água salgada, na praia de Matanzas, que adquiriu este nome após as execuções, ou “matanzas”, (massacre espanhol) na costa do Atlântico norte, a Jean Ribault e o seu grupo de colonos de “Huguenotes franceses”, que se tinham estabelecido em Forte Caroline, próximo do que é hoje a cidade de Jacksonville, aqui no estado da Flórida e, de que já aqui falámos, onde os colonos, homens, mulheres e crianças foram levados em pequenos grupos por trás das dunas de areia, onde cada colono foi atravessado com a espada e deixado para ali, até morrer. Os espanhóis consideravam os “huguenotes franceses” de ser infiéis, porque não eram católicos, mas politicamente, este massacre tinha a intenção de alertar os outros europeus que o Novo Mundo pertenciam à coroa Espanhola.

Quando andamos por aqui, percorrendo esta área, as árvores, com centenas de anos, começaram a “encostar-se”, aos muros do antigo forte, nasceram e cresceram por todo o lado, como querendo dizer, “chega-te para lá, não queremos mais guerra, eu sou a vida, a natureza pura no verdadeiro sentido”!. Elas, as árvores, têm uma força poderosa, as suas raízes crescem a todos os segundos, sem a presença do ser humano, que as quer controlar, elas tomaram conta do parque, são o início, são elas que nos anunciam a vida, que a conservam e, se por qualquer motivo elas começarem a morrer, pouco tempo de vida nos vai restar a nós, os humanos.


Lá vem a guerra outra vez, a “mangueira do Setúbal”, no aquartelamento de Mansoa, a tal árvore de que já aqui falámos por diversas vezes, já lá não deve de estar, foi morta, talvez não, mas o espaço deve de ser pequeno para ela, se ainda for viva, pois demarcava o limite de arame farpado, era mesmo na fronteira, o seu tronco era o nosso café da esquina, o nosso local de convívio, as gaiolas de macacos e periquitos, eram a nossa “Disneyland”, à noite, mais propriamente ao anoitecer, íamos para lá, falar, fumar cigarros feitos à mão, a cerveja, muitas vezes roubada no “bar dos sargentos”, entre as mãos, os macacos e periquitos já nos conheciam, compreendiam a voz do dono, as palavras “cala-te, cabrão”, “já te vou dar de comer, filho da pu..”, eram frequentes, tudo se falava, era quase como o lavadouro da nossa aldeia, também o “stress da guerra” que sempre estava presente, se ia desvanecendo e, se houvesse “vias de facto”, ou seja “turbolência doméstica”, era absorvido pela amizade de “irmãos de guerra”, que se encontravam em convívio, em pleno cenário de guerra.

Não imaginamos o nosso planeta sem árvores, seria como, talvez um jardim sem flores e, pensando por momentos, nós, os humanos, só por cá passamos, isto estava cá e cá vai continuar, vamos, nos anos que nos restam, fazer como as árvores centenárias, rosto levantado, olhar as outras pessoas nos olhos, transmitir-lhe a nossa mensagem silenciosa, esperar a água da chuva, o sol, tempestades ou até o fogo, tal como fizemos em pleno cenário de guerra, onde tentávamos sobreviver, às vezes em silêncio, mas um silêncio controlado, às vezes fugindo, ou fazendo não compreender, certas atitudes, dos agora vindouros, que quando chegarem à nossa bonita idade, oxalá lá cheguem, vão por certo compreender, porque sobrevivemos, muitos de nós sem escola superior, discriminados, sem protestos de discriminação, “sem eira nem beira”, sem protestos requerendo casa e subsídio de alimentação, nunca esperando ajudas estranhas, única e simplesmente vivendo do nosso esforço corporal.

Pelo menos nós vamos ter algum “poder de encaixe”, como nos dizia o senhor Manuel Manco, que tinha sido combatente, era um sobrevivente de guerra, pois fez parte do Corpo Expedicionário Português que esteve presente na Frente de Flandres, onde muitos militares portugueses foram mártires. Tinha sido casado, a esposa morreu com a doença do “tifo” e uma filha que foi “casada de encomenda” para o Brasil, o povo dizia “casada de encomenda” que era quando um português, “muito rico”, lá no Brasil, que andasse muito ocupado na “roça”, na “xácra”, no “açougue”, na “padaria”, no “botequim”, na “birosca” ou no “boteco”, mandava uma carta, normalmente ao senhor Regedor ou a Vossa Reverência o senhor Abade da freguesia, a pedir esposa que soubesse cozinhar, lavar e engomar, que fosse donzela, estivesse vacinada e que fosse boa parideira, essa filha, foi para o Brasil e nunca deu sinal de si, ele, o senhor Manuel Manco, morreu sem uma perna, mas orgulhoso, sozinho, numa pobreza profunda, num casebre nas matas da base da montanha do Caramulo, que levou para debaixo da terra umas tantas medalhas ao peito, num casaco que lhe colocaram, talvez só a parte da frente, numa simples caixa, feita de tábuas “casqueiras”, forrada a pano de flanela preta, (feita pelo Senhor Hugo, que também era carpinteiro, além de forneiro na Fábrica da Telha que existia junto à Estação dos Caminhos de Ferro, em Águeda e, fazia gratuitamente os “caixões dos pobres”), mas que ia sobrevivendo, vivendo cada minuto da sua vida, como se fosse o ser humano mais importante do mundo, sempre com o rosto erguido, olhando nos olhos, tanto a nós como à mãe Joana, quando lhe levávamos alguma roupa, ou íamos ver como se encontrava, os seus olhos diziam-nos quase o mesmo que a tais árvores centenárias, que neste momento se estão a “encostar” ao Forte de Matanzas, pois ele, o senhor Manuel Manco, era um veterano, tinha andado na guerra.

Tony Borie, Setembro de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15131: Libertando-me (Tony Borié) (35): ...voltaremos a encontrar-nos talvez no além!

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caro Tony

Não te cansas, e ainda bem, de 'fazer a ponte' entre o que os teus olhos hoje vêm, a realidade que te está em redor e o teu/nosso passado de 'aventuras africanas'.

Gostei da analogia das árvores.
Gostei da forma simples como fizeste 'passar a mensagem' do episódio de 'matanzas' o qual, mais uma vez, ilustra que as questões religiosas são quase sempre um pretexto para justificar as atitudes mais primárias do ser humano, que servem de cobertura a outros interesses.
Gostei da 'ligação' que fizeste com a vossa vivência no mato da Guiné.

Continua, que é sempre bom.
Abraço
Hélder S.