segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15203: Notas de leitura (763): “Memória e Império, Comemorações em Portugal (1880-1960)”, por Maria Isabel João, Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2002 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Novembro de 2014:

Queridos amigos,
A leitura é atrativa, por vezes obsidiante, a lógica monárquica, a lógica republicana e a lógica ditatorial enformaram inúmeras celebrações, definiram momentos históricos, como o 10 de Junho, traduziram-se em comemorações de centenários, sessões públicas, monumentos e lembranças, exposições, cortejos, moedas, medalhas e selos, a panóplia foi farta e esta tese de doutoramento tudo detalha e sempre com muito interesse.
Repescamos o que demais significativo aconteceu à Guiné que entrou no carrossel dessas memórias a propósito do V Centenário do seu hipotético descobrimento.

Um abraço do
Mário


A Guiné nas comemorações imperiais

Beja Santos

“Memória e Império, Comemorações em Portugal (1880-1960)”, por Maria Isabel João, Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2002, é um repositório esclarecedor dos múltiplos eventos de vária espécie que se realizaram em Portugal no momento crítico relacionado com os imperativos da ocupação do território, as suas celebrações a pretexto de grandes vultos associados aos descobrimentos, exposições, centenários, cortejos, conferências, estatuária, colóquios, medalhística, filatelia, entre outras iniciativas. Foi à volta deste tema que Maria Isabel João preparou a sua tese de doutoramento e dada à estampa neste livro. A narrativa é densíssima, abarca o tricentenário de Camões, o duplo centenário da conquista de Ceuta e da morte de Afonso de Albuquerque, o centenário da morte de Fernão de Magalhães, a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, isto entre a monarquia já em decomposição e a I República, ciente do perigos e ameaças que impendiam sobre o império africano, o desmembramento de Angola e Moçambique para satisfazer os interesses alemães. O Estado-Novo lançou-se rapidamente na empreitada do dever de memória.

O centenário do Cabo Bojador, em 1934, passou quase despercebido, todas as atenções estavam concentradas na Exposição Colonial, no Porto, onde a Guiné fez furor, mais não seja pela fofoca, as senhoras respeitáveis andavam coléricas com aquelas Bijagós de mamas ao léu. Três anos depois, a Exposição Histórica da Ocupação exaltava as campanhas africanas do final do século XIX. Seguiu-se o duplo centenário de 1940, o regime deu tudo por tudo por uma festa de arromba. Mas não ficaram por aqui os eventos da década de 1940, basta pensar no centenário do descobrimento da Guiné (1947), o da Reconquista de Angola, por Salvador Correia de Sá, e o nascimento de António Eanes (1948). Dos anos de 1950 para 1960 houve comemoração dos centenários de dois grandes mitos da memória da expansão e do império: o nascimento de Mouzinho de Albuquerque (1955) e a morte do Infante Dom Henrique. Temos pois oito décadas entre o tricentenário de Camões e o quinto da morte de Dom Henrique, três regimes políticos distintos. Nenhum destes regimes esqueceu o culto dos grandes homens, a chamada de atenção para os sinais de progresso nas parcelas imperiais, associar nomes como Camões à epopeia dos Descobrimentos. Nesses anos de 1880 comemoraram-se o centenário do Marquês de Pombal e até o aniversário da morte de D. Afonso Henriques. É lista quase infindável, na agonia do regime monárquico houve celebrações do heroísmo militar das guerras peninsulares. Resta dizer que estas glorificações inseriam-se perfeitamente no surto do imperialismo europeu do século XIX, a opinião pública sentia-se bem, passara a ter curiosidade com as colónias, os heróis da ocupação e da pacificação davam jeito para um país que vivia desencantado, esbraseava-se a visão mítica do passado e assim se punha uma esponja no quadro decadente do presente.

Maria Isabel João trata de forma exímia esta leitura, entre continuidades e roturas, faz-nos perceber como Salazar necessitava de uma comemoração depois do interregno da Ditadura e da consagração do Estado Novo pela Constituição de 1933 (recorde-se que em 1930, com Salazar na pasta das Colónias, foi publicado o Ato Colonial, era ali que se falava no Império Colonial e na função histórica de possuir, civilizar e colonizar domínios ultramarinos. As comemorações do descobrimento da Guiné foram uma iniciativa do comandante Sarmento Rodrigues, Avelino Teixeira da Mota foi o seu braço-direito. A tradição atribuía a Nuno Tristão a proeza de ter sido o primeiro a atingir as terras da antiga colónia portuguesa, questão que continua controversa e sem resposta. Aliás esta polémica historiográfica animou as comemorações do centenário. De Janeiro a Fevereiro de 1947, Rui de Sá Carneiro, Subsecretário das Colónias percorre a Guiné, apoiou as comemorações que se deviam centrar sobre a história passada e recente: Descobrimentos e o progresso dado pela estratégia de Sarmento Rodrigues. Este marcou indelevelmente o território e as gentes, entre 1945 e 1949. Sarmento Rodrigues será Ministro das Colónias de 1950 a 1955. A autora detalha a importância dos comissões organizadoras dos centenários e as suas atividades, era uma mobilização que envolvia as instituições do Estado e as científicas, professores, Forças Armadas, imprensa, museus, municípios, tudo e todos estavam em movimento.

O Duplo Centenário, a grande celebração de Portugal imperial fez do terreiro de Belém um espaço magnificente, as colónias, incluindo a Guiné, marcaram presença no jardim colonial. Sarmento Rodrigues colheu ensinamentos do Duplo Centenário, observando: “primeiro que tudo deve atender-se à descoberta, ocupação e pacificação; depois dar-se-á o devido relevo ao esforço das gerações contemporâneas; finalmente não serão esquecidos os projetos de futuro”. Sarmento Rodrigues estipulou que fossem consagradas as maiores figuras da história da colónia guineense e apareceram estátuas que a seguir à independência transitaram para a fortaleza de Cacheu e que ali estão, inexplicavelmente, à espera que as autoridades se recordem que nenhum país pode viver sem história, sem imagens do passado, superados que estão os conflitos profundos ditados pela luta armada. No âmbito das comemorações da Guiné reuniu-se em Bissau a II Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, isto enquanto decorria na Sociedade de Geografia de Lisboa o Congresso Comemorativo do V Centenário do Descobrimento da Guiné. A autora recorda-nos as publicações que emanaram de todos estes eventos, no caso da Guiné o grande legado foi o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa e as monografias que ainda hoje são marcos referenciais.

Em 1898, houve romaria cívica para comemorar o descobrimento do caminho marítimo para a Índia, coisa grandiosa, a sociedade portuguesa nunca tinha visto tal. Era uma forma de afirmar a confiança no futuro do país e a crença liberal no valor da educação. Os cidadãos das colónias estiveram representados no cortejo por um grupo de africanos de Cabo Verde, da Guiné e de Inhambane que atraíram a atenção do público com os seus singulares trajes, ornatos e instrumentos, cantos e danças exóticos. No âmbito das comemorações do descobrimento da Guiné realizou-se em Bissau uma exposição que incidiu ma história colonial, na geografia e etnografia da Guiné. O Palácio do Governo, em construção na altura, foi adaptado para Pavilhão de Honra. Uma nota curiosa: coube ao pintor Fred Kradolfer ter executado no Duplo Centenário a viagem de volta da Guiné pelo mar alto, ou seja, a vitória sobre o oceano Atlântico. Voltando um pouco atrás, aos monumentos e estatuária, recorde-se que a Estátua de Nuno Tristão é da lavra de António Duarte, Diogo Gomes, moço da câmara do Infante Dom Henrique, foi projeto do arquiteto Fernando Peres que também foi responsável pela coluna com inscrições que continua junto a Porto Gole, tem resistido a destruições e mutilações, incluindo a estátua do presidente Ulisses Grant, que estava em Bolama e que terá sido reduzida a metal lucrativo. Recorde-se ainda na Guiné a estátua do Infante Dom Henrique que ficou na Avenida Marginal da capital da colónia, em 1960. Muito mais haveria a dizer sobre iconografia, produziram selos, uma bela coleção que um dia destes aqui se reproduzirá. Trata-se de uma série de sete selos desenhados por Alberto de Sousa, vão ver que gostam.

Coluna existente em Porto Gole, fotografia do blogue 

Monumento comemorativo do centenário do Infante Dom Henrique, Avenida Marginal, Bissau
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15189: Notas de leitura (762): “Morto em Combate”, de António Silveira, publicado na Caminho Policial, Editorial Caminho, 1990 (Mário Beja Santos)

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