segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15425: Notas de leitura (781): A "Guiné do Cabo Verde" (1578-1684), por José da Silva Horta, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Fevereiro de 2015:

Queridos amigos,
Posso avaliar a investigação que subjaz a este tese de doutoramento sobre relatos e documentos de importância inexcedível no tocante aos séculos XVI e XVII e naquela área geográfica tão nebulosa como era a Guiné do Cabo Verde que tantas outras designações teve, depois assentou-se em Senegâmbia, usada até ao século XIX, a Guiné portuguesa foi a terminologia usada depois da Convenção Luso-Francesa de 1886.
O historiador analisou estes discursos, sopesou o que era original ou transcrito de outrem. O que fascinava o leitor, fosse o rei ou um responsável religioso, era o colorido luso-africano que ia permitindo conhecer as gentes, quase sempre ao nível do litoral, só esporadicamente as incursões iam território adentro.
O trabalho de José da Silva Horta é palpitante, abre novas portas as fascínio africano.

Um abraço do
Mário


A “Guiné do Cabo Verde”, vista por contemporâneos dos séculos XVI e XVII 

Beja Santos 

A "Guiné do Cabo Verde" (1578-1684), por José da Silva Horta, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, é uma importante tese de doutoramento onde se analisam textos portugueses que interpretavam o espaço luso-africano da África Atlântica entre o rio Senegal e a chamada Serra Leoa. O termo Guiné do Cabo Verde tinha outras designações, caso da grande Senegâmbia, e não foi o fruto do acaso a designação que Honório Pereira Barreto deu à sua memória escrita no fim da primeira metade do século XIX, falando da Senegâmbia portuguesa. O historiador José da Silva Horta procedeu a um levantamento de documentos de enorme relevância onde cabem, entre outros, António Velho Tinoco, André Álvares de Almada, padre Baltazar Barreira, padre Fernão Guerreiro, padre Manuel Álvares, André Donelha, Frei André de Faro e Francisco Lemos Coelho. O olhar do investigador é ver o texto e o indivíduo, o produto e o discurso de relatos de uma importância insofismável para informação da Corte, das obras de missionação, dos pontos de contactos e de negócios, entre outros.

Esta literatura e estas interpretações de nautas, missionários, exploradores, não podia cuidar do rigor, a aplicação do termo Guiné era de uma enorme elasticidade, o ponto do Cabo Verde era uma referência e daí, como observa o autor falar-se da Guiné do Cabo Verde, rios da Guiné do Cabo Verde, rios do Cabo Verde. É André Álvares de Almada quem fala da Guiné do Cabo Verde e o termo ganhou uso. O rei fala nos seus títulos como “Senhor da Guiné”, ao tempo pensa-se que está muito perto da Etiópia, o padre Manuel Álvares falará mesmo da Guiné como da Etiópia Menor, a influência de Ptolomeu era ainda muito grande. Estes autores tinham a sua própria perceção do espaço africano, estabeleceram as suas coordenadas geográficas e até a sua visão antropológica, regra-geral associada a um olhar de toda a costa e das viagens que se faziam do arquipélago até esse litoral. Estes séculos XVI e XVII irão presenciar outros parceiros comerciais, os franceses, os ingleses e os holandeses, que farão recuar os espaços onde havia controlo português. Temos depois os luso-africanos, os lançados e tangomaus, os reinóis, os comerciantes judeus. E o autor estabelece um quadro sobre as origens familiares no mundo cabo-verdiano-guineense: portugueses vindos de Portugal vivendo legalmente ou lançados; portugueses nascidos em Cabo Verde, luso-africanos nascidos em Cabo Verde, africanos nascidos em Cabo Verde; luso-africanos nascidos em África; africanos nascidos na Guiné em que muitos deles se identificavam a si mesmo como portugueses. E o autor observa que este mundo luso-africano está bem representado nesta discursiva da Guiné do Cabo Verde, caso de Duarte Pacheco Pereira, Valentim Fernandes, João de Barros, André Álvares de Almada e André Donelha.

Um jovem bijagó da Ilha de Caravela, imagem publicada na revista “O Mundo Português”, 1936

E põe-se a questão de quem era esta Guiné, quem dela tinha sentido pertença. José da Silva Horta recorda que os interesses do mundo cabo-verdiano-guineense nem sempre convergiam com os da Coroa, havia omissões nos relatos que tinham sentida conveniência. Alguns dos textos mais importantes saíram do punho de cabo-verdianos, não são muito difíceis de detetar preconceitos sociais dos brancos vindos de fora a diferenciarem-se dos filhos da terra. Outra dimensão deste trabalho tem a ver com os práticos dos rios da Guiné, exploradores e missionários que conheciam o terreno, é uma dimensão que não se pode descurar quando lemos a perceção da geografia e das gentes. Os Jesuítas aparecem em primeiro lugar, é impossível estudar com rigor este período sem conhecer a documentação da missão Jesuíta de Cabo Verde (1604-1646). Os Franciscanos também deixaram relatos importantes. Claro está que o período da monarquia dual (período filipino) foi adverso para a presença portuguesa, mais não fosse pela crescente agressividade dos rivais dos Áustrias, queriam sangrá-los em zonas de importante trato comercial. As conclusões do autor implicam-nos na compreensão do que é complexo na diversidade dos espaços, das identidades que se fazem representar nos textos. Há relatos que se apropriam de textos e discursos anteriores, reformulando-os de acordo com o destinatário. O autor recorda que se escreveu massivamente em português e por portugueses sobre a Guiné mesmo quando muitas vezes o que se escreve sustenta-se em documentação anterior. E havia também a leitura das cartas africanas, mediadoras dos olhares, das expressões corográficas e da própria topografia. E com que impacto global? O autor dá o seu ponto de vista:
“Num período, longo e textualmente fecundo na rescrita da Guiné, em que surgem tratados de grande fôlego, como os de Almada, de Donelha, de Lemos Coelho e, antes dos dois últimos, uma obra e máxima relevância como a Descrição da Etiópia Menor e província da Serra Leoa, do padre Manuel Álvares, o impacto de todo este saber etnográfico é, no conto geral, mínimo na Europa. Os seus autores parecem ter sido desconhecidos, os seus textos, salvo num único caso documentado, não entram para o conhecimento comum que se construía da África e da cosmografia em geral. Menos ainda, circulam relativamente pouco fora do mundo cabo-verdiano guineense e dos seus canais de comunicação com os centros do poder político e eclesiástico da Metrópole e de Roma”.

Mancanhas bailarinos, imagem publicada na revista “O Mundo Português”, 1936 

Se André Álvares de Almada foi conhecido foi porque a sua divulgação era conveniente aos Jesuítas. André Álvares de Almada teve um sucesso estrondoso: por estar profundamente enraizada num mundo luso-africano, era um texto que provinha da experiência do real, da visão descritiva sistemática e marcadamente etnográfica, tudo novo relativamente à Guiné, nada havia de comparável nos livros de viagem ou de geografia europeus. E o investigador recorda que ainda há muitos pontos a esclarecer, há leituras mais aprofundadas a fazer. Por exemplo: “Uma leitura que esclareça a natureza do envolvimento dos poderes africanos, parte interessada nesses projetos”. E, mais adiante, em jeito de conclusão: “Sobre a perceção dos espaços africanos e das suas sociedades é necessário cada vez mais estabelecer pontes entre as representações africanas e europeias e avaliar as consequências delas nas práticas políticas, económicas e religiosas”. E cita saborosamente André Álvares de Almada: “… e com isto dou fim a este tratado porque se não pode dizer tudo”.
A História é isso mesmo: o continuar constante, o remexer até à exaustão, o deixar assentar as margens da controvérsia, o partir de novo à descoberta.
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15416: Notas de leitura (780): “Sopros de vida”, por José Lemos Vale, Fonte da Palavra, 2011 (Mário Beja Santos)

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