quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15763: Blogoterapia (275): Paisagens que dão tanta beleza à vida, abulia e esquecimento (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 13 de Fevereiro de 2016:


PAISAGENS QUE DÃO TANTA BELEZA À VIDA, ABULIA E ESQUECIMENTO

Para combater o excesso de peso, e a ferrugem dos músculos e articulações, males provocados pela idade e  pelos excessos alimentares, muitas vezes na companhia de amigos e camaradas, faço muitos passeios sozinho, em marcha forçada, no Parque da Cidade que fica perto da minha casa. Habituado desde muito jovem na minha aldeia, às longas caminhadas que me levavam a todos os sítios da sua área agrícola e florestal, ultimamente  comecei a sentir saudades desses espaços mais  amplos e diversificados, com outra lonjura dos caminhos do Parque, que consigo percorrer numa hora.

Pelo prazer das caminhadas, dos espaços amplos e das paisagens que entram pelo olhar e dão tanta beleza à nossa vida, recordo-me também dos anos da Guiné e das caminhadas que fiz por lá, com melhores pernas do que actualmente.

Porto - Vista do Parque da Cidade

Nos primeiros meses em Buba, fiz grandes caminhadas com o pelotão, que já mostrava alguns sinais de cansaço para acompanhar o periquito, que eu era, pois eles já tinham sete meses de mato.
Sem nunca sair para fora da área que estava atribuída à companhia eu achava que devia ter conhecimento do terreno, para maior segurança psicológica, pela utilidade que poderia ter nalguma emergência, por outro lado era também levado pela curiosidade em explorar as paisagens de floresta e bolanha que me rodeavam. Nesses  longos "passeios" tivemos a sorte de nunca nos cruzarmos com o inimigo, e confesso que como amante da vida ao ar livre e da natureza, foi das melhores experiências que tive na Guiné.

Problemas e azares, de que já falei, houve depois, nos últimos meses da comissão, para lá dos ataques mensais ao aquartelamento, que o Nino Vieira parecia fazer para cumprir calendário, que nos assustavam mas  nunca magoavam ninguém. A norte da bolanha dos Passarinhos, que tínhamos que cruzar na estrada de terra batida, que nos ligava a Nhala, para fazer protecção às frequentes colunas de reabastecimento, havia  uma enorme bolanha, que já não recordo se seria a sua continuação ou outra. Nesta grande área de bolanha só estive uma vez, com toda a companhia e terá sido das poucas vezes que o capitão saiu. Gostei muito de conhecer esse enorme descampado pouco arborizado e rodeado de floresta, talvez por alguma nostalgia da parte planáltica da minha aldeia, onde se cultivava o trigo e o centeio.
A nossa imaginação transporta para toda a parte as cópias das gentes e das paisagens onde nascemos e fomos criados e gostamos de as encontrar projectadas noutros ambientes. Fui algumas vezes na direcção de Fulacunda, que sendo bastante distante de Buba, parecia-me que havia entre as duas tabancas, muita terra de ninguém que poderia ser controlada pelo PAIGC. Fulacunda que talvez por ter um nome sonante e quase mágico e pela vizinhança confinante com Buba ainda que um pouco distante, sempre foi para mim um mistério a  despertar a minha curiosidade.

O José Teixeira, que fez tropa em Buba, antes de mim, e é um grande andarilho, que já voltou algumas vezes à Guiné, falou-me duma povoação nessa direcção, não muito longe de Buba, controlada pelo inimigo, segundo testemunho que recolheu junto de habitantes dela. Nunca soube ou não me apercebi da existência dessa tabanca. Saindo de Buba, próximo da pista de aviação, havia um troço de estrada abandonado, onde já crescia algum mato, que segundo parece não levava a parte nenhuma, que eu nunca percorri em toda a sua extensão até por ser um caminho muito exposto. Terá sido uma tentativa frustrada de abrir uma estrada, no tempo de companhias anteriores, na direcção de Aldeia Formosa.
Na direcção de Empada, a sudoeste, só me recordo de ter ido duas vezes com dois pelotões, numa espécie de patrulhamento sem outro objectivo definido, que não fosse observar se haveria vestígios da passagem ou actividade do inimigo, que por vezes nos atacava dessa zona, ainda perto do quartel, do outro lado do Rio Grande Buba.

Paisagem da Guiné - Pôr-do-sol no Pelundo

Depois de Buba, rumei para Mansabá, recomendado, por erro de casting, como bom combatente, como me chegou a dar a entender o Capitão Abreu, Comandante do COP, e para aborrecimento do capitão miliciano da companhia, que chegou uns dias depois de mim, Economista na vida civil e que tinha tanto jeito como eu para a vida militar.  Bom homem esse capitão, pois se ele fosse rigoroso na aplicação do RDM, eu provavelmente teria cumprido mais alguns meses de Guiné.
Mal recordo a actividade operacional. Lembro-me de fazermos uma operação, no sentido contrário à mata do Morés, não recordo qual o objectivo. Sei que andei muito tempo a pé por uma mata bastante densa e não me recordo porque motivo cheguei a andar de helicóptero, talvez para ver a paisagem.
Foi nessa ou noutra operação, que de manhã cedo a companhia estava toda formada na parada à minha espera, e o capitão danado pela minha demora, e eu a chegar  impassível e abstracto a olhar para ele.
Já escrevi algures no blogue que por muita pena minha nunca pude entrar na mata do Morés, por proibição conjunta do PAIGC e das autoridades militares, já que nessas operações somente eram utilizadas tropas especiais. Mas eu gostaria tanto de conhecer essa grande extensão de floresta, de preferência sem tiros nem bombas.

Pelo prazer que sempre tive em conhecer os campos e florestas da Guiné, se revelam as minhas origens camponesas. Se pudesse tinha dado a volta a toda a Guiné a pé.

Por causas várias que talvez não consiga analisar objectivamente, ou porque isso não me agrade agora, reconheço que nos meses passados em Mansabà, já estava um pouco "apanhado pelo clima" e o meu comportamento reflectiu bastante isso, confirmado recentemente pela minha irmã, mais próxima da minha idade, que há dias me falou do meu regresso a casa.

As nossas irmãs, essas jovens que desde cedo desenvolviam em relação a nós, uma mistura de sentimentos fraternais e maternais e alguma admiração e curiosidade pelas  nossas diferenças físicas e psicológicas.
As nossas irmãs, que nesses anos de aflição das famílias, acrescentavam tanto carinho e afectividade à que nos era dedicada pelos pais e que, segundo ela, eu tratei com tanta indiferença quando regressei. Nunca demos muito realce ao amor e sofrimento dessas jovens como se elas fossem obrigadas a isso por dever familiar. Tantos anos passaram e só agora esta irmã me fez esta "queixa", que surgiu somente, por acaso, no decorrer de uma conversa sobre o passado comum.

Outros factos que não sabia e outros que esqueci, por exemplo que a minha mãe chorava muito porque eu não dava notícias, e ela culpava as filhas por me escreverem pouco quando isso até não seria verdade. Note-se que a nossa mãe tinha a quarta classe mas bastante ocupada nas múltiplas tarefas que tinha que fazer no lar, cozinhar, costurar, chulear, tecer e outras, entre as quais ir na burra à horta, uma grande paixão para além dos filhos, encher as alforjes com as diferentes qualidades de hortaliça, atribuía a responsabilidade da escrita dos aerogramas às filhas.

Talvez esse estado de espírito, de que falei, em que se misturava abulia e esquecimento tenha varrido da minha memória muito do que se passou e vivi em Mansabá. Algumas recordações conservo e já aqui falei delas, sobretudo a cordialidade e camaradagem que senti da parte de todos.

Durante muitos anos, como muitos camaradas, voltei as costas à Guiné, quis esquecê-la e riscar da minha vida os dois anos que por lá passei. Há três anos, com a descoberta do blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné" e com a premência causada pelos dias intermináveis dos primeiros meses da reforma e o avançar da idade, comecei a sentir mais a necessidade de fazer um balanço da minha vida pelo que tentei explicar e integrar esses dois anos na corrente e sucessão dos outros de forma a reconciliar-me com a memória dos tempos de brasa da juventude.

Um abraço.
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15737: Blogoterapia (274): Portas estreitas da vida onde nem sempre se consegue passar (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto, CART 3493, Mansambo, Fá Mandinga, Bissau, 1972/74)

3 comentários:

Anónimo disse...

Meu bom amigo e camarada da tabanca de Matosinhos!
gostava de ter a tua capacidade para desenvolver o "verbo" para dotar a minha escrita com a suavidade e poesia que consegues na tua forma de escrever.
Como não consigo tal dote vou tentar explicar o mistério de Sare Tuto, como sei e sou capaz.
Em 2005 andava eu à cata de ostras e penetrei pela primeira vez na tal picada que existia em 1968,ao cimo da pista à esquerda, mas não era usada pelas nossas tropas, pelo menos durante os meses que andei por lá e assim descobri Sare Tuto. Naquele tempo, saíamos de Buba e seguíamos em frente para a Bolanha dos Passarinhos, onde consegui que a morte passasse por mim e me deixasse em paz, ou virávamos à direita para o cruzamento de Sinchã Cherno/Bolola de triste memória para mim.
Desta vez, depois de andar cerca de 5 km pela picada, em mata cerrada, dou com uma tabanca cheia de vida e exclamo: Esta tabanca não existia aqui em 1968. Ouço uma sonora gargalha de alguém, preto, que se dirige a mim num português correctíssimo e sem sotaque:
- Existia sim e era uma base do PAIGC!
Quem falava assim e me acolheu de braços abertos. Era um antigo pára-quedista que andou por Tancos e teve um mês de férias ao abrigo do prémio "governador".Apresentou-me de seguida alguns homens como ex-guerrilheiros que confirmaram serem dali e terem pertencido ao PAIGC. Foi este o primeiro contacto que tive com guerrilheiros do PAIGC.Vim a saber que talvez muitas das ostras que saboreaste, foram apanhadas por este gente e vendidas aos milícias que tas iam levar à Messe.
Esta tabanca fica na margem direito do braço do Rio de Buba que se segue para nascente.Ali mesmo ao lado de Buba, e já existia, pois vem no mapa da Província da Guiné.
O meu interlocutor, actualmente um pisteiro de caça. Contou-me um pouca da sua história, como já escrevi num português com alguma erudição e sobretudo sem sotaque: No fim da guerra fugiu levando com ele a G3trudes e munições qb. Entranhou-se na mata de Buba e sobreviveu, alimentando-se da caça. Como era demais para ele, ia durante a noite deixar os excedentes de caça junto da população da tabanca de Sare Tuto, que naturalmente lhe chamava "um figo e o "tolerava", sem saber quem era nem de onde vinha. Apenas tinham em comum a língua fula e ela a paixão por uma bajuda local. Quando foi preso a população uniu-se e defendeu-o. Mesmo assim esteve cerca de ano e meio preso. Viu muitos dos camaradas de prisão saírem na carrinha militar e depois... via regressarem apenas as suas roupas.Ele foi ficando, pese embora, vítima de muita violência e ameaças de fuzilamento, mas havia sempre uma estrelinha...de Sare Tuto que à última da hora riscava o seu nome.
Quando conseguiu a liberdade, regressou a Sare Tuto, constituiu família e por ali ficou definitivamente assumindo o posto de chefe de tabanca. claro que a sua preocupação é manter a língua portuguesa bem viva e tratou de criar uma escolinha que vai dando os seus frutos.
Quando fores à Guiné-Bissau, podes ir lá saborear ostras da Guiné. apenas tens de levar umas bejecas.
Abraço fraterno do
Zé Teixeira

JD disse...

Caríssimo Francisco,
Fiquei muito satisfeito com a tua narrativa de temas e sensibilidades tão variados.
Gostei da maneira como descreves a tua condição de veterano na ocasião em que mudaste de Companhia, e também da forma divertida como referiste uma certa reguilice de que terás dado provas. Quem não era reguila naquela idade, para mais com o teu ascendente local?
També gostei a tua memória sobre os campos durante as excursões terrestres. Também me lembro com saudade das mafníficas árvores; do capim que crescia até nos cobrir de maus olhados; dos tambores que nas aldeias indiciavam que se cozinhava. São essas imagens magníficas que me razem recordar África com saudade, e noutras paragens do continente são as imensas paisagens, onde rebanhos diversos pastoreiam tranquila mas atentamente em relação aos predadores. Os bichos só têm uma preocupação, a da sobrevivência. O homem originalmente também, mas inventaram esta estranha forma de vida, que nos faz concorrer uns com os outros por um "chamiço", que por vezes provoca aqueles males do coração que nos deixam alquebrados.
Finalmente, gostei do ajuste de contas perante a tua irmã, coisa que só me aconteceu em relação ao meu pai. Éramos jovens, não pensàvamos, e todos deviam venerar-nos pelo sacrificio que nos parecia exclusivo.
Sobre o conselho do Teixeira para regressares à Guiné, acho-o muito interessante, pois já tivre experiências parecidas... e com a expectativa das ostras... ai, ai!!
Abraços fraternos
JD

Anónimo disse...

Mais uma digressão pelas matas da Guiné e pelo planalto do nordeste transmontano. Gostei de te acompanhar nessa revisitação.

Um abração.

carvalho de Mampatá