sexta-feira, 4 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15821: Notas de leitura (813): “A revolução portuguesa e a sua influência na transição espanhola”, tese de doutoramento de Josep Sánchez Cervelló, Assírio e Alvim, 1993; e Revista Africana, publicada pela Universidade Portucalense, número de Março de 1992 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Maio de 2015:

Queridos amigos,
Arnaldo Schulz não teve biógrafo. É gritante o caudal de informação da sua presença na Guiné em contraste com Spínola. A documentação correspondente a 1964-1968 não aparece numa obra, tem referências avulsas, por vezes chocando umas com as outras. No entanto, é um período crucial, por definição. Neste tempo se adensou a guerra, proliferaram aquartelamentos, as tropas especiais tiveram desempenho revelante, desde o Cantanhez a Sambuiá; tomaram-se decisões de manter a quadrícula extensa, em Sangonhá, em Gandembel, o que se veio a revelar impraticável. Mas não há uma leitura que permita um pano de fundo, uma leitura que dê linearidade histórica. A quem me está a ler e possua elementos que comprovem que estou errado, eu peço ajuda, indicações bibliográficas esclarecedoras.

Um abraço do
Mário


Os claro-escuros da governação de Arnaldo Schulz

Beja Santos

Depois de manusear um número apreciável de papéis atinentes à guerra da Guiné, em forma de livros, monografias, artigos, relatórios, documentos esparsos, etc, confirmei que há bastante documentação sobre os alvores do nacionalismo guineense, relatos dispersos mas consistentes sobre os primórdios da guerra, até à Operação Tridente os testemunhos encaixam, há linearidade histórica. Depois, tudo aparece aos farrapos, a despeito de testemunhos de indiscutível valor como a história da CART 1525, um registo de indiscutível interesse para aquele tempo e para uma região mais que sensível, à volta do Morés, recomendo a leitura do documento que está no link (http://www.cart1525.com/gouveia/resposta.pdf).

Vejamos agora a documentação esparsa. Em “A revolução portuguesa e a sua influência na transição espanhola”, tese de doutoramento de Josep Sánchez Cervelló, Assírio e Alvim, 1993, o autor aborda este período de uma forma concisa e pouco elucidativa:
“A guerra propriamente dita iniciou-se em 23 de Janeiro de 1963 com o ataque do PAIGC ao quartel de Tite, o que delimitou a primeira zona de combate, estabelecendo-a entre o rio Geba e a fronteira com a República da Guiné. Sete meses mais tarde, abriram uma segunda frente entre o rio Geba e Cacheu. No ano seguinte, os combates alastraram a outras duas zonas: uma em Gabu e outra a Sul do Boé; e em 1965, abriram outra em frente em Cacheu, na fronteira com o Senegal. A partir daí a guerra generalizou-se em todo o território”. Em rigor, não aconteceu assim, como é do conhecimento de todos. Mais adiante, Cervelló alude à resposta das Forças Armadas portuguesas:
“As dificuldades portuguesas nos primeiros 17 meses do conflito ficam suficientemente demonstradas pelo facto de ter sido necessário substituir quatro vezes o máximo representante militar, até à chegada do General Schulz, em Maio de 1964. Os problemas militares em breve convenceram certos setores reformistas do regime de que seria mais cómodo abandonar a Guiné, devido ao elevado custo moral e humano exigido e pela falta de recursos do território. Em contrapartida, os mais ortodoxos entenderam que se abandonassem a Guiné não haveria justificação para continuarem nos outros territórios. Perante a degradação da situação militar, o governo de Lisboa mandou para Bissau Schulz. Quando ali chegou o exército tinha muitas dificuldades porque 'durante muitíssimos anos, o objetivo de uma guerra tinha sido sempre o de conquistar uma área do terreno, destruir o inimigo, ou tirar-lhe a força de combater. Mas na guerra subversiva não há nenhum destes objetivos. O que há a fazer é ganhar simpatias, mas a instituição militar desse tempo ainda era a outra, a dos objetivos, em lugar da de conquistar vontades. De forma que a nossa atuação não se ajustava ao que pretendíamos’. A estratégia que pôs em prática consistiu em ‘manter e controlar áreas determinadas, pelo que era necessário que umas forças conquistassem um terreno e ali ficassem para ocupá-lo e outras forças, na mesma área, se dedicassem a procurar o inimigo’.
Schulz tentou controlar o Sul e o Centro Oeste da colónia, perdidos desde o início da guerra, com ações de envergadura, que foram um fracasso. A situação militar foi-se degradando progressivamente, sendo a situação dramática nos primeiros meses de 1968”.
Mesmo admitindo que estas informações correspondam à verdade dos factos, não é inteligível a ação do Governador e muito pouco a do Comandante-Chefe.

Passando agora para a Revista Africana, publicada pela Universidade Portucalense, número de Março de 1992, vejamos o que escreve o investigador Lomba Martins no seu artigo “Guiné-Bissau, da década de 1960 à atualidade”, no tocante ao período da governação de Schulz.

Diz-nos que as milícias começaram a ser organizadas em Dezembro de 1964. Que os portugueses tiveram sempre controlo sobre a Ilha de Bissau, Mansoa e Teixeira Pinto, sobre Bolama e o arquipélago dos Bijagós, sobre o Gabu e Bafatá, chãos dos Papéis, Manjacos, Bijagós, Mandingas e Fulas. Em nenhuma circunstância fica claro qual o grau de desenvolvimento económico e social imprimido pela governação de Schulz, o que se passou na agricultura e pescas, na geologia e minas, nas prospeções petrolíferas, apesar de termos estatísticas no arroz, amendoim, coconote. Muitos destes estudos provocam confusão no leitor. Não é crível que ao tempo de Spínola o governo tenha elaborado 36 programas preconizando a construção de novas estradas e pontes, o melhoramento de portos, a ampliação das redes telefónicas e ainda a construção de uma ligação ferroviária Buba-Madina do Boé-Beli para a concretização do projeto das bauxites.

O leitor interessado encontrará na história da CART 1525 referências alargadas a uma reportagem propagandística do escritor e jornalista Amândio César intitulada Guiné 1965, estaríamos no melhor dos mundos possíveis, desmascarava-se a propaganda do PAIGC com a ida do jornalista à ilha do Como, mais propriamente a Cachil, percorreu estradas, falou com muita gente, a guerrilha estava mais controlada. O documento não é fiável. Hélio Felgas(*) escreveu em 1965 “Guerra na Guiné”, ensaio publicado pela Secção de Publicações do Estado Maior do Exército (SPEME). É um documento que deve ser lido com atenção. O então Tenente-Coronel fora Comandante de Batalhão em Bula e estava ávido por deixar um registo para o seu currículo e para a história. Refere que se tinha obtido o concurso da quase totalidade da população, que no final de 1964 tinha sido eliminada a infiltração do inimigo no setor dos Manjacos. Descreve a guerrilha do Sul, no início de 1963, como se disseminou no Oio, no quadrilátero Mansoa/Bissorã/Olossato/Mansabá e se manifestou noutros diferentes pontos como Xime/Bambadinca, entre Binar e Bula, como passou a usar engenhos explosivos, etc. É sem dúvida uma obra apologética, a era Arnaldo Schulz passa a ser sinónimo de retração do inimigo, mas não deixa de se contraditar, mais à frente chama à atenção para Madina do Boé e Beli, o inimigo parecia dar mostras de recuo, no entanto Felgas apresentam-no em dinâmica e moral elevado: novos campos de treino na República da Guiné, frequentes visitas de Amílcar Cabral a esses campos, o aparecimento de enfermarias, até um grupo IN tentou afundar a jangada de João Landim. E o que escreve sobre a criação de companhias de milícias é um verdadeiro assombro, assim:
“A manutenção dos soldados nativos nas fileiras e o recrutamento das milícias conduziram a uma situação curiosa e pouco conhecida. É que na Guiné há hoje mais militares nativos que metropolitanos. A imensa maioria dos nativos não nutre qualquer idealismo político que nos seja favorável. O que eles pretendem é um emprego. E foi a falta de emprego, aliada a promessas sedutoras ou ameaças terríveis que obrigou muitos nativos a deixarem-se aliciar”.

Em síntese, a governação de Schulz apresenta-se-nos como um período muito mal referenciado em gritante contraste com o mediatismo a que está associada a governação de Spínola. O que não é nada bom para o conhecimento profundo da evolução deste teatro de operações.
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Notas do editor

(*) Vd. postes de:

24 de Outubro de 2010 Guiné 63/74 - P7168: Notas de leitura (161): Guerra na Guiné, por Hélio Felgas (1) (Mário Beja Santos)

27 de Outubro de 2010 Guiné 63/74 - P7183: Notas de leitura (162): Guerra na Guiné, por Hélio Felgas (2) (Mário Beja Santos)
e
30 de outubro de 2010 Guiné 63/74 - P7194: Notas de leitura (163): Guerra na Guiné, por Hélio Felgas (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 29 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15808: Notas de leitura (812): “Os Caminhos de Gadamael-Porto”, de Manuel da Silva Fernandes, edição de autor, Ponte de Lima, 2014 (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Anónimo disse...




As afirmações do tenente-coronel Hélio Felgas sobre as motivações económicas dos soldados e milícias nativos vêm ao encontro de pensamentos idênticos que tenho tido ultimamente. Pensando bem que outras alternativas de trabalho remunerado havia em toda a Guiné, onde a agricultura e os serviços, da indústria nem vale a pena falar, estavam paralisados pela guerra. A necessidade de sustento de tantos milhares de guineenses acabou por fidelizá-los ao nosso comando e à nossa bandeira. Para muitos sobretudo para os que estiveram nas tropas especiais essa opção de vida, após a independência, revelou-se trágica.
Um abraço. Francisco Baptista

Antº Rosinha disse...

"E foi a falta de emprego, aliada a promessas sedutoras ou ameaças terríveis que obrigou muitos nativos a deixarem-se aliciar”.

O Francisco Baptista toca aqui num ponto terrível em África, que foi ontem, é hoje e será amanhã, a falta de emprego.

Só que nos anos 50/60, das emancipações daqueles países da África sub-sariana, no caso as nossas colónias objectivamente, sem indústrias, apenas alguma construção civil,agricultura e comércio dentro das nossas eternas limitações, só havia uma fuga para os jovens guineenses que quisessem "fugir" da tabanca para a cidade.

Essa saída era, como se dizia em Lisboa: «Queres emprego? vai trabalhar para a estiva malandro»!

E não é que era exactamente no porto do Pidjiquiti, onde se deu o massacre dos 50 marinheiros, o número do PAIGC, em 3/8/59, que se abrigavam já com os governos do PAigc, centenas e centenas de jovens, diariamente durante vários anos? não sei hoje se ainda será assim.

Talvez não com a mecanização.

Se países como nós aqui, que não nos entendemos e os jovens têm que emigrar, imagine-se o problema que está acontecendo com milhões de jovens em Bissau, Luanda e outras cidades super-habitadas de jovens, por toda a África.

É muito mau, demasiado mau para África e para a Europa, vizinhos lado a lado, esta coisa do emprego sem alternativas, mesmo com ou sem estudos.

Foi este problema um dos pontos fracos da governação de Luís Cabral na Guiné-Bissau.

Mas no tempo colonial, e talvez ainda hoje, qualquer jovem seguia apenas o caminho que a família da tabanca decidia.

Naquele tempo, Francisco Baptista, qualquer jovem que estivesse no tropa, ou era obrigado pelo chefe de posto imposto aos mais velhos, (pai, mãe, tio...) ou então voluntário com reunião da família.

Ainda dei três recrutas a soldados I (indígenas) em Luanda.

Dizia a vendedora do Bulhão que a antiga colega, dela, agora retornada, foi para Angola com uma mão atraz e outra à frente, mas depressa arranjou lá três criados, um para levar os meninos à escola, outra para descascar as batatas e outro para lhe lavar as costas.

Enfim,também era dar emprego.

Não era como nas minas dos diamantes ou do ouro mas era emprego.

Cumprimentos.