quarta-feira, 1 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16153: Os nossos seres, saberes e lazeres (157): A pele de Tomar (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março de 2016:

Queridos amigos,
O tempo chuvoso e os céus encobertos são elementos manifestamente hostis a captar pormenores da cidade e da sua envolvente.
Quando desembarquei em Tomar chamavam-me à atenção para a aura mística, o sentido templário que a cidade conserva. Pode ser que conserve, mas sou atraído por outras dimensões: a grandeza perdida e o denodo daqueles que procuram travar os sinais da decadência; o Nabão serpenteante, que é um chamariz para os olhos e que por ali circulando dá para perceber como a agricultura parece estar de rastos.
É esta comunicação entre a cidade e a sua envolvente que tem tornado a curiosidade inesgotável, os percursos à toa, sempre compensadores, como estas imagens testemunham.

Um abraço do
Mário


A pele de Tomar (7)

Beja Santos



Houvera chuva persistente, veio depois uma friagem daquela que esfarela os ossos, depois o céu abriu-se, foram abertas calorosas que não apagaram as poças de água mas deixaram as paredes enxutas. O viandante pôs-se ao caminho, era sol de pouca dura, por cima de Tomar as nuvens acinzentadas alertavam para as curtas tréguas. Ali para os lados dos Estaus captaram-se estes pedaços de história na via pública, quem os fixa sente-se enamorado pela qualidade das intervenções, a vida prossegue, os prédios requalificam-se, mas o passado não se encobre, muito provavelmente estas pedras viram passar o Infante D. Henrique quando ele andava a vistoriar as saboarias.




Perco-me diante das portas, vou bisbilhotar pormenores, aproximo-me e ponho-me noutro lado, não há portas perfeitas se não harmonizarem com o comprimento e a altura da fachada. A primeira porta é um chamamento do passado, atrai na irregularidade de uma pedra partida e de ser baixa, o que lhe dá ternura, intimidade. A segunda porta tem uma enxertia e de gosto duvidoso. É Arte Deco e muitos anos depois, aí pela década de 1960, enxertaram-lhe novos puxadores. Foi pena, caráter não falta a esta porta e com artes de serralharia ter-se-ia puxadores mais apurados.



Ali para os lados da Fonte do Caldeirão desce-se até junto ao rio Nabão e é-se apanhado por várias surpresas: há piscina, lugares de remanso, algo na outra margem que lembra um açude, já tenho motivos de conversa para apurar o historial deste ponto de lazer. Ter-se-á feito aqui uma comporta, as águas revoltam-se graças ao obstáculo. Por ali o viajante ficou melancólico, com duas pesadas lembranças. Por razões que não vêm ao caso, quando fez a guerra na Guiné, muitos meses a fio teve que que ir montar segurança às embarcações que circulavam num ponto do Geba onde a guerrilha pretendia fazer destruições de montra, era necessário ali estar a ver passar navios em duas direções, cerca de 30 homens com morteiros, bazucas e armas ligeiras. Águas barrentas como estas (no Nabão é assim por ser Inverno) com águas velozes a correrem para fluidos mais espaçosos, a lembrança do viajante foi até esses tempos de guerra, 25 quilómetros a pé com o sol na fornalha e o sol muitas vezes a soltar-se em pó. A outra lembrança eram as histórias da avó tomarense, o rio da sua infância até partir para Angola para casar com 14 anos. Quantas lembranças, tão desencontradas, oferece o Nabão neste fim de Fevereiro!

(Continua)
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Nota do editor

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