quarta-feira, 15 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16203: Os nossos seres, saberes e lazeres (159): A pele de Tomar (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Abril de 2016:

Queridos amigos,
Era um dia baço de uma Primavera transviada. A pedra ganhou outro realce com o glauco dos céus e o verde-escuro dos campos. Em trabalho prévio, selecionei algumas portas, daquelas que me falam de um certo caráter tomarense quanto à arte de habitar. E depois lancei-me até ao Convento, são tais e tantos os prodígios da monumentalidade que há sempre surpresas a acontecer. Detive-me nos chamados pormenores e acabei na fachada limpa do Convento, muito airoso, a mirar a cidade ao fundo. Há superfícies que encantam, esta cidade tem uma pele interminável.

Um abraço do
Mário


A pele de Tomar (9)

Beja Santos




Confesso que sou um obcecado por portas, elas são o ponto de equilíbrio do que oferece a fachada, mesmo quando o edifício tem sobrados, lojas de diferente índole, duas entradas, e por aí adiante. Não escondo igualmente o gosto por ver uma porta cuidada, singular, encontrar um pormenor que é verdadeiramente uma pirueta do construtor, presume-se que o marceneiro, para além da obrigação de corresponder à encomenda deixa a sua marca talentosa. Esta correnteza de três imagens, fala de quê? Uma porta bem restaurada (procuro o anonimato, o leitor que se desembrulhe para encontrar o que deixo na imagem, neste caso há ali um pormenor identificativo que não posso iludir, paciência), a segunda porta tem história, entrei num estabelecimento de velharias, pediram-me prorrogação, a loja vai abrir em frente e com exposição, obviamente que acedi, e encontrei ao lado de uma porta manuelina uma outra que lembra um arrendado de toalha de mesa, há para ali uma arreliadora e deslocada caixa de correio, também paciência, e a terceira porta dá que pensar quantas vezes por ali se entrou e saiu tal o desgaste da pedra, é assim a vida dos homens e das casas que os abrigam.



Tive um professor de História de Arte, Jorge Heitor Pais da Silva, que insistia nas aulas que o turista, face a um monumento concelebrado, quer entrar, quase toiro desembolado, é-lhe indiferente quaisquer pormenores laterais, se vem ver o Convento de Cristo e a Charola tudo mais é meramente acessório, ponto final. Sabemos que não é assim, há mesmo turistas que cuidam de estudar o que vão ver, ataviam-se com informação. Sobe-se o castelo, entra-se naquele jardim perfumado, dá-se uma olhada à direita para o paço onde viveram, entre outros, o Infante de Sagres e a Rainha D.ª Catarina de Áustria, prossegue-se e temos esta bela fonte, seca e um tanto tristonha pois vê-nos passar com manifesta indiferença. E a grande ruína eclesial em frente ao convento desperta interesse mas lembra aquelas igrejas inglesas ao abandono depois de Henrique VIII ter declarado guerra a Roma e ao catolicismo. Este templo esplêndido acolheu cortes, aquelas que fizeram de Filipe II de Espanha, o tal rei que tinha um império onde o sol nunca se punha, rei de Portugal, ele ficou agradecido a Tomar e prodigalizou benesses, a começar pelo aqueduto.




Faço visitas a este local como se fosse um peregrino esfomeado pelos delírios do manuelino, e não me arrependo. Quando há muita luz sobre Tomar esta pedra perde gravidade, embora ganhe em imponência. Tenho para mim que este foi o sonho sublime de O Venturoso, o rei perdeu as medidas, autorizou a quebra de vários cânones, consentiu em delírios. Longe de mim brincar à superficialidade das comparações entre os Jerónimos e Tomar. O que encontro aqui é um vigor do homem dos Descobrimentos, uma mensagem sem fim da pedra feita mar, há borbulhões de espuma, lavra-se a pedra com restos do tardo-medieval, temos aberturas discretas ao Renascimento. Não conheço ecletismo tão transcendente na arte portuguesa.


Não é só a cara lavada do Convento que me faz pulsar o coração, o que aproxima o viajante também conta, quem pensou nos acessos encontrou soluções atinadas, tiro-lhe o chapéu e aproveito para convidar a ilustre população tomarense a por aqui circular, um convento renovado ajuda-nos a pensar em melhores dias para as nossas vidas e para os nossos monumentos.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16180: Os nossos seres, saberes e lazeres (158): A pele de Tomar (8) (Mário Beja Santos)

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