segunda-feira, 20 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16219: Nota de leitura (849): “A Estrela de Ganturé”, conto de Natal inserido na Revista Liber 25 de Dezembro de 1981 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,

Há surpresas impagáveis e uma delas é um sujeito ficar especado na Feira da Ladra a olhar a capa de uma revista que lhe diz qualquer coisa, não sabe bem o quê, a memória dá as suas mordidelas e, confuso, o sujeito remexe na publicação e encontra uma historieta da sua autoria escrita um pouco às três pancadas em 1981, a lembrança estava totalmente esvaída. O curioso disse tudo a que havia para ali torções e distorções em datas e lugares. Mas aquela criança, que foi possível rever cerca de 20 anos depois, fora mesmo uma estrela, iluminara a vida de um jovem alferes que vivia nos meandros do Cuor disfarçado de sentinela no Geba.

Coisas que aconteceram e assim se demonstra mais uma vez que a realidade supera em toda a linha a ficção.

Um abraço do
Mário


A estrela de Canturé 

Beja Santos

Desta feita, a surpresa deixou-me boquiaberto, folheava aquela publicação que me dizia algo, mas o inesperado de encontrar ali uma historieta minha era demasiado forte para memória tão curta. Comprei a revista e fui revendo todos aqueles acontecimentos que engendraram a minha colaboração. “A estrela de Canturé” terá sido redigida algures em Outubro de 1981.

Carlos Cruz Oliveira telefonara-me para me informar de um projeto sobre cadernos da guerra colonial, fora criada uma editora para tal efeito, Andrómeda. Que eu escolhesse os temas, se quisesse eu podia dar primazia ao consumo, falar das coisas da minha profissão, mas bom seria que escrevesse de vez em quando sobre as minhas memórias da participação da guerra da Guiné. A tudo foi dizendo sim, ao quem dera, logo que tivesse disponibilidade fazia o gosto ao dedo.

Passaram as semanas e os meses, e um dia o Carlos Cruz Oliveira lançou-me um ultimato suave, havia um número praticamente pronto para o fim do ano, insistiam num texto meu. Imprevidentemente, prometi entregar nas próximas 48 horas e dei comigo a pensar: numa revista militar para civis, simultaneamente revista civil para militares, era esta a consigna da “Liber 25”, porque não puxar pelos escaninhos da memória, trouxe-mouxe, e parturejar umas recordações não remíveis, daquelas que latejam intermitentemente para demonstrar que há memórias que não se apagam?

Sentei-me à mesa, e sem papéis de consulta, de um jato nasceu “A estrela de Canturé”:

De Missirá a Gã Gémeos, a água dos arrozais desfez a estrada, estávamos em meados de Novembro. Um daqueles riachos que vai para o Geba empapou o desgastado trilho de Finete a Bambadinca. Ficámos incomunicáveis, os enfermos da doença do sono sem médico, o municiamento ainda mais difícil, estávamos sem farinha, entregues a todas as contingências da chuva, eram colunas pedestres, já que o Unimog não podia vencer o lamaçal. Colunas diárias supliciantes, fardos às costas, cunhetes de granadas em padiolas, os doentes bamboleando-se em cadeirinhas de braço humano. E não nos aliviava saber que muitos outros, noutros sítios, viviam a mesma azáfama dentro da lama.

Foram colunas que se repetiram até àquela véspera de Natal. Para falar verdade, tive a premonição logo ao chegar a Finete, também nosso cordão umbilical até Bambadinca. A Finete que eu recordo estava nas faldas de um outeiro rochoso, outeiro escalvado numa argila dura onde, como dedos gretados de sangue, se erguiam os palanques dos sentinelas, vigiando o mato denso, ouvindo o piar lúgubre dos pássaros negros que remavam em direção ao Corubal.

Condoía-me a resignação de Finete, a sua milícia sustentando aquela posição vital, porque sem aquela retaguarda nem Missirá seria um ponto difuso no mapa, sem Finete não seríamos o tal alfinete vermelho espetado no mapa da sala de operações. Finete era um ponto de passagem antes de nos metermos ao caminho, no trilho enlameado até Bambadinca e regresso, e ajoujados de comida, munições e doentes na caixa do Unimog 404, rumávamos para Missirá.

Vamos então falar daquele menino que me aquecia o ânimo, que me encorajava a prosseguir, Abudu. Abudu era um menino deformado, um rosto lindo, no seu corpo explodira uma granada incendiária. Um dia, Malã Cassamá despiu as vestes de Abudu: dos braços esquálidos prendiam-se enoveladas cordas de pele, impedindo o crescimento natural do corpinho; nas costas, outras camadas de pele, uma teia de costuras descendo até às coxas, pele que se colava à cintura pélvica, dando o recorte ao abdómen disforme, a inchar a pletora, onde caíam regos de costura e carne arrepanhada. Mas é este Abudu o meu companheiro de trilhos alagados, é ele quem me sustenta a náusea da solidão e me incita a vida dentro da circunferência de horrores de que se faz a minha guerra, onde tenho os meus inimigos absurdos e onde há corpos desfeitos que enterramos à enxada. É Abudu quem me persigna dos irãs vingativos, é Abudu o meu último fio de música que me embala, numa véspera de Natal, por quatro quilómetros de lama com vermes, vamos apressados para organizar o dia de Natal.

É a estrela de Finete, o menino dilacerado por uma granada incendiária, que me acompanha no regatear de alimentos, nas idas às transmissões, ao depósito da engenharia, às viaturas, às munições. Abudu é este incêndio nas mãos e aquelas duas pupilas que atravessam o sol quente, saltitando ao meu lado enquanto eu desdobro morosas listas de víveres, munições, ligaduras, cimento, alicates, lençóis e fronha.

Abudu quer ir passar o Natal a Missirá, a mãe consente. E lá vamos no Unimog em direção àquela paliçada em frente a capitosas matas onde, não muito longe, se acoitam os guerrilheiros. Sento-me ao lado do condutor, Abudu por ali perto, o anjo emudecido, o meu rei de presépio, para esta noite. Sacode-me a segunda premonição, é aquele silêncio opressivo na mata, e a segunda premonição vai ser consumada: Manuel Guerreiro Jorge, natural do Monte da Cabrita, Santana da Serra, concelho de Ourique, uma criança de olhos mansos, talvez um futuro seareiro, enconcha as suas mãos azeitonadas para acender o seu último cigarro. Porque logo a seguir se desfecha o enredo inextrincável, a picada abre uma garganta de dragão, fazendo estoirar naquele lusco-fusco, na curva de Canturé, um Unimog em fagulhas, corpos em estilhaços, braços dilacerantes, era um embriagado corno da morte, e eu a pensar em Abudu, meu presuntivo rei de um presépio. Quantos minutos ou segundos para eu ficar com Manuel Guerreiro Jorge transformado em tocha ardente.

Quantos minutos, segundos, que castigo para ver e sentir que uns se ferem e outros ferem, que aquele caminho aprazível para antílopes em viagem, ali se frecham irmãos e arroxeiam os corpos? Aos tombos, lá retomámos o caminho para Missirá, deixámos para trás o Unimog agonizante, somos agora uma coluna fantasmagórica, acobertados pela noite tropical num céu estrelado, a razão de ser de uma viagem ficou naquela curva de Canturé. Transportamos um moribundo e sete feridos graves, o arado desta guerra. Tarde e a más horas suplica-se um helicóptero, procura-se amenizar as dores dos feridos. Não há ânimo para a passagem de Natal, cada um recolhe-se à sua alfurja, uma casamata fria. É então que se dá o sonho ou o delírio. Inventa-se uma meia-noite de palha emplumada. A tremelicar, vai avançando para mim uma piroga festiva, Abudu acena-me, é uma estrela candente, e nesse preciso instante fecham-se para todo o sempre os olhos de Manuel Guerreiro Jorge. O que morre nasce, o que me faz estremecer alteia e eu pergunto-me, cheio de mágoa: qual o teu desígnio, Abudu, ao que vens neste teu repasto de consolação?


2. As coisas não se passaram assim, conforme as escrevi nesta historieta. Houve mina anticarro naquela curva de Canturé, mas tudo se passou no fim de tarde de 16 de Outubro. Abudu Cassamá existe, visitou-me em 1991, quando fui cooperante na Guiné. Sempre que via amigos ou conhecidos de Missirá e Finete pedia insistentemente para me trazerem notícias de Abudu. Eu vivia nas instalações da Cicer, e foi aí que ele me bateu à porta, às punhadas. Abri de repelão e dei-me com um desconhecido de cabelo hirsuto, parecia uma juba. Perguntei ao que vinha: “Sou o Abudu de Finete, quero saco de arroz, um rádio e um relógio, a vida está muito difícil na Guiné, tu tens que ser o meu paizinho”.



Pedi-lhe para passearmos, fomos a pé até Bissau, queria saber dos seus estudos, como lidava com o seu sofrimento, o que fazia, onde vivia. Ele ia respondendo aos solavancos, com respostas evasivas, insistia que eu era o seu paizinho, tinha obrigação de o trazer para Portugal, fora uma granada incendiária abandonada num reboque em Finete, em 1966, que lhe trouxera aquela maldição.

Contei-lhe que ele fora o personagem do meu primeiro auto de averiguações, que enviei deprecadas para Portugal continental e ilhas, instei um capitão, dois alferes, não sei quantos furriéis e primeiros-cabos a responder aos meus quesitos, nada se apurou, aquela criança tinha direito a uma compensação. E no grande incêndio de Missirá todo aquele volumoso processo ficou reduzido a cinzas. Recomeçou-se com menos ânimo, transferi o dossiê para o meu sucessor. Abudu Cassamá foi seguramente mais uma das grandes vítimas da guerra. Mas naquela noite, pressionado pelo Carlos Cruz Oliveira, deu-me para transformar Abudu em estrela, fi-lo rei de um presépio, dei-lhe o pleno poder de ser a minha paz navegante. E consegui-o.

Já me tinha esquecido desta estrela de Canturé, nos termos em que a alumiei para a revista Liber 25. Abudu Cassamá está seguro no meu coração, é uma das imagens do horror da guerra, da falta de sentido que premeia um ato negligente de deixar uma granada incendiária dentro de um reboque, numa povoação cheia de crianças.

Regresso da Feira da Ladra a olhar a capa da Liber, há qualquer coisa de familiar naquele desenho, intrigado vou ver a ficha para saber quem é o seu autor: nem mais nem menos de que Rolando Sá Nogueira, de quem fui muito amigo e nos deixou em 2002. Há estrelas que nos aproximam, depois disfarçam-se de cometas que esvoaçam no tempo e depois, inopinadamente, prantam-se diante dos olhos, iluminando passado, presente e futuro. Mal sabia eu em 1981 que 25 anos depois iria pôr em ordem toda aquela escrita e publicar o poema que dediquei a Abudu, a minha estrela de Canturé.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16212: Nota de leitura (848): “Bolama, a saudosa…”, autoria e edição de António Júlio Estácio (2) (Mário Beja Santos)

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